Considerações acerca da liberdade religiosa e do
Estado laico
Publicado em 05/2014. Elaborado em 05/2011.
Traçado teórico sobre os principais conceitos relativos ao problema do
Estado laico e da liberdade religiosa no mundo.
INTRODUÇÃO
A liberdade religiosa e a ideia de Estado Laico
são temas esquecidos pelos juristas brasileiros contemporâneos. São princípios
socialmente aceitos e seus limites raramente são testados pelo Poder Publico,
ou assim ele o faz crer. A maior parte da literatura brasileira em Direito
afasta maiores análises sobre esses conceitos, que são tratados com a maior
seriedade pelas tradições jurídicas ocidentais.
Talvez a obra que melhor trate essa questão
dentro da tradição jurídica luso-brasileira seja o do português Jônatas Eduardo
Mendes Machado, "Liberdade Religiosa numa Comunidade Constitucional
Inclusiva: dos direitos da verdade aos direitos dos cidadãos". Esse autor
caminha nas diversas veredas do constitucionalismo norte-americano, que
enfrenta ferozmente as questões relativas ao Estado Laico até hoje. De um lado,
propõe revisitar a jurisprudência da Suprema Corte daqueles pais e as mudanças
de paradigma que se deram no decorrer de seus dois séculos de existência. Nesse
meio, traça um paralelo com o pensamento jurídico europeu continental, que
sofreu diretamente com conflitos religiosos desde a Idade Média e hoje sofre um
tipo de refluxo pós-colonial com a chegada de muçulmanos de todas as partes da
África e Oriente Médio.
Diante dessa linha, com exemplos mais concretos
de nossa realidade tupiniquim, nossos constitucionalistas mais famosos se
debruçam, por via reversa, sobre essas questões, quando tratam de ponderação de
interesses, direitos fundamentais e limites da atuação estatal. Daniel Sarmento
e Ingo Sarlet, expoentes da tradição jurídica carioca e gaúcha,
respectivamente, revelam problemas que esses direitos e interesses enfrentam
quando são colocados ao lado dos princípios da igualdade e da liberdade de
expressão.
Além disso, a perspectiva da eficácia horizontal
dos direitos fundamentais traz novas luzes sobre o direito a liberdade de
religião. Os direitos das minorias, em foco com a Carta de 1988, ganham forca
para abranger a crença (ou descrença) de todos. Novos conflitos, com
novas soluções, são abordadas neste trabalho.
1.
CONCEITO DE RELIGIÃO
A primeira indagação que se deve fazer acerca do
tema liberdade religiosa é a da extensão jurídica do próprio vocábulo religião,
ligado ao valor maior da liberdade. Seu conteúdo semântico, como aponta Jônatas
E. M. Machado[1],
conduz a um campo vago, sem uma estrutura especificamente relacionada ao
Direito. Com efeito, os textos constitucionais e legais brasileiros e
estrangeiros não costumam abordar o tema diretamente, relegando as
situações-limite para a decisão no caso concreto. O autor recomenda a extração
do sentido normalmente dado na sua corrente utilização extraconstitucional,
principalmente nos domínios da Sociologia.
Louis Schneider, sociólogo da religião, analisa
o tema através de quatro elementos funcionais[2].
O primeiro guarda proximidade com o fato de a religião não ser algo racional, a
despeito de antiga tradição na Sociologia em considerar ao fenômeno religioso
como passível de ser intelectualmente construído. Para o autor, a noção de
religião comportaria “um conjunto de actividades sociales que no son
´estúpidas´ ni ´inteligentes´, ni ´racionales´, ni ´irracionales”. Seriam tão
racionais como um aperto de mãos entre velhos amigos ou o impulso sexual em um
homem adulto[3].
O segundo elemento relaciona a religião e o
postulado de unidade ou interconexão social. Escreve Schneider:
“El presupuesto del que parte el funcionalismo
cuando subraya la unidad en la religión podría formularse de esta forma:
Contemplada la religión desde el punto de vista de los actores implicados em um
sistema religioso es evidente que, em tanto la religión a la que ellos se
adhieren esté más o menos intacta, los dogmas y creencias de ésta, tomados como
punto de partida, no les atraen únicamente por su condición de dogmas o
creencias. Los dogmas llevan consigo la atracción que proviene de prácticas,
influídas a sua vez por la emoción, com lo que el sistema como um todo exibe la
interacción de sus partes, de modo tal que ninguna parte ejerce uma atracción
´independiente´ o meramente intrínseca, sino que cada uma se vê afectada
constantemente por las otras[4].”
A “unidade” não deve ser confundida, porém, com
a “integração social”, terceiro elemento funcional religioso. Esta recai sobre
a solidariedade humana, sobre a coesão dos indivíduos que participam de um
sistema religioso e sobre a mitigação das hostilidades entre eles, visando
sempre a valores comuns. Os sujeitos participantes da crença conjunta vêem na
estrutura erigida sobre a mesma uma forma de dignificar os laços sociais ali
existentes.
Por último, o autor aponta a questão dos “usos”
da religião e dos problemas que as manifestações das outras funções desenvolvem,
particularmente no que tange à utilização da religião como forma de controle
social. A função da religião como instrumento de manutenção de determinados
estratos sociais vêm sendo objeto de críticas da burguesia desde o século
XVIII, e convergem para a questão central da relação entre o Estado e as
religiões minoritárias.
O funcionalismo trouxe o espectro subjetivo para
a avaliação da situação normativa de uma suposta religião. A função determinada
do conjunto de ritos e crenças que une os indivíduos em comunidades parece
refletir melhor o panorama religioso do século XXI. Não mais os conceitos
pré-determinados de religião, com fulcro nos modelos tradicionais mundiais, mas
um conceito baseado na determinação subjetiva dos valores agregados pelo indivíduo
diante do corpo religioso será relevante para a definição do que é ou não
religião no Direito.
Sem embargo, como bem revela Jônatas Machado[5],
o funcionalismo pode apresentar problemas de caráter prático. A inquirição
judicial sobre a veracidade das convicções de um indivíduo é um processo tão
inquisitorial e inadmissível quanto aquele que se propõe a investigar a
natureza e o conteúdo objeto das doutrinas. Não é possível perceber o nível de
sinceridade do sujeito em relação a sua crença, e não cabe ao julgador fazer
exame profundo sobre a razoabilidade ou viabilidade da mesma.
O dilema caminha para outra dificuldade em torno
do conceito funcional-subjetivo de religião: a fluidez de sua incidência. Como
bem observa Laurence Tribe, “a generosa definição funcional parece classificar
qualquer filosofia radical como religião, como seria o marxismo da mesma forma
que o metodismo[6]”.
Com efeito, se tomado o funcionalismo a cabo, qualquer tipo de união em torno
de uma ideologia que abrace tais funções primordiais de uma religião seria
considerado como tal.
Jônatas Machado defende um terceiro conceito,
tipológico, de religião. Ele não seria demasiadamente abrangente como o
anterior, evitando abusos, mas também não seria restritivo como o modelo
objetivo[7].
Seria um conceito com “contornos esfumados”, apontando como critérios, ainda
que meramente indicativos, os conceitos anteriores, o valor social aparente da
crença, o número de adeptos, etc.
Note-se que no Brasil não há legislação
específica que incida sobre esse conceito. Em Portugal e na Espanha, da mesma
maneira, não há qualquer conceito positivado de religião; há outra solução
normativa, que é feita por meio negativo. A Lei Orgânica de Liberdade Religiosa
espanhola, de 1980, em seu art 3, §2º, dita que “quedan fuera del âmbito de
protección de la presente Ley las actividades, finalidades y Entidades
relacionadas com el estudio y experimentación de los fenômenos psíquicos o
parapsicológicos o la difusión de valores humanísticos o espiritualistas u
otros fines análogos ajenos a los religiosos”.
O emaranhado teórico acerca da natureza
sociológica da religião refrata no mundo jurídico através da determinação sobre
qual a real incidência dada às cláusulas constitucionais de proteção às
expressões religiosas minoritárias. A região nebulosa que aparece neste ponto é
exatamente sobre as chamadas “quase-religiões”, ou as crenças que se aproximam
dos conceitos supra apresentados[8],
mas que não estão sob o invólucro da liberdade religiosa propriamente dita. No
caso das “religiões ufológicas”, ou mesmo de alguns grupos de estudos de
fenômenos psíquicos no Brasil, o limiar entre religião e ideologia parece ser
tênue, não comportando soluções pré-definidas[9].
Por fim, note-se que toda a discussão perde o
sentido se considerarmos que a liberdade de religião é uma especificidade da
liberdade de opinião, também consagrada pelas constituições democráticas
contemporâneas, caso em que haveria amparo legal, de uma forma ou de outra. A
distinção dar-se-á mais adiante.
2
NATUREZA JURÍDICA DA LIBERDADE RELIGIOSA
A liberdade é um valor albergado pelo Direito,
que pode ser expresso na faculdade de decidir ou agir segundo a própria
determinação do indivíduo. Dentro da esfera religiosa, ela é consubstanciada no
poder de escolha e prática de uma crença ou série de ritos que funciona como
elemento de congregação social. Em meio às categorias jurídicas, a liberdade
religiosa têm sido tratada, primeiramente, como um direito fundamental.
No conjunto das cláusulas da Declaração de
Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, a liberdade de religião surge como uma
evolução da situação jurídica de tolerância experimentada pela Europa nos
séculos anteriores[10].
Aparece não mais como uma concessão estatal ou como um objeto de concordata
forçada em que os signatários se comprometem a suportar um ao outro. Revela-se
como um dos direitos fundamentais de primeira geração, dotado de
inalienabilidade e universalidade, como proclamavam os jusnaturalistas.
A “fundamentalidade” do direito à liberdade
religiosa no Brasil traduz-se em dois aspectos[11].
O primeiro, formal, conduz à idéia de que esse direito faz parte da
Constituição escrita, situando-se no cume de todo o ordenamento jurídico. Por
dedução, sua modificação sofre as limitações de uma norma dessa natureza,
denominada de cláusula pétrea. Também desse prisma decorre à idéia das normas
diretamente aplicáveis, vinculando diretamente os entes públicos e privados.
Enquadra-se, aqui, a liberdade religiosa como uma norma auto-executável
(self-executing), na perspectiva da tradicional doutrina norte-americana[12].
O aspecto material remete à noção de parte integrante da Constituição material,
que abrange as decisões fundamentais sobre a estrutura básica do Estado e da
sociedade.
Como norma definidora de direito[13],
essa liberdade pública, como chamam os franceses, figura também na qualidade de
um direito público subjetivo[14].
Nesse sentido, a liberdade religiosa pode ser demandada perante o Estado em um
sentido negativo, numa visão clássica, abstencionista, dos direitos
fundamentais. Nas palavras de Konrad Hesse[15]:
“Como direitos subjetivos, eles garantem a
liberdade de confessar uma fé ou uma ideologia, individual ou comunitariamente,
ou também, de recusar de se calar sobre ambas, eles fundamentam direitos à proteção
diante de perturbações e à omissão de qualquer coação à fé, direta ou indireta,
ou da coação para uma confissão ideológica”.
Por esse texto entende-se que o direito à
liberdade de religião pode ser exercido de forma coletiva ou individual, e
protegido da mesma maneira. Todas as ações concernentes a entidades
representativas de coletividades são plenamente cabíveis para tutelar direitos
oriundos de crença religiosa ameaçada ou violada. Diametralmente, um único
membro de uma comunidade que se sinta aviltado por ato contrário a sua religião
pode ajuizar demanda em face do agressor, sem necessidade de respaldo do grupo
vítima da atividade ilícita.
Mais que um direito fundamental, a liberdade de
religião é considerada, por Jônatas Machado, também uma garantia
constitucional, e espraia-se em dois importantes elementos dogmáticos. “Dele
procedem, a um tempo, direitos subjetivos de defesa e normas definitórias de
competências negativas estaduais[16]”,
conclui o jurista português. Não só o direito material, mas sua garantia
procedimental está englobada pelo arcabouço teórico do direito de liberdade de
religião.
Aldir Guedes Soriano, a seu turno, concebe essa
liberdade pública como um princípio constitucional independente, apoiado na
doutrina do espanhol Ramón Soriano[17]:
“La libertad religiosa – se dice – es el
principio jurídico fundamental que regula las relaciones entre el Estado y la
Iglesia en consonancia com el derecho fundamental de los indivíduos y de los
grupos a sostener, defender y propagar sus creencias religiosas. De manera que
el resto de los princípios, derechos y libertades em matéria religiosa son
coadjuvantes e solidários del principio básico de la libertad religiosa”.
Por fim, alguns doutrinadores desenvolveram a
idéia de um direito à liberdade de religião de caráter positivo, propugnando
que não subsiste apenas o conceito de um direito de abstenção, negativo,
tradicionalmente adotado para esse tipo de categoria jurídica. A atuação
positiva estatal, no sentido de promover a eficácia da liberdade de religião,
dar-se-ia mormente através de incentivos de caráter financeiro destinados a
entidades religiosas aptas a recebê-los[18].
Essa idéia tangencia os fundamentos da liberdade de religião; no entanto, já
não se fala de um direito fundamental aqui, de um dever de o Poder Público
fornecer meios materiais para a manutenção de atividades religiosas[19].
Com mais razão, extrapola-se deste âmbito normativo qualquer exigência de
“parceria” com entes privados para a realização de alguma das atividades-fim da
Administração Pública.[20].
3.
CONTEÚDO DO DIREITO À LIBERDADE RELIGIOSA
Inúmeras manifestações de ordem física e psíquica
podem ter origem no fenômeno religioso. O culto privado dentro do lar, o
proselitismo dentro do ambiente laboral, a interdição de avenidas para grandes
reuniões de fiéis, todos estes fatos têm relevância para o direito e estão
abarcados dentro do conceito maior de liberdade religiosa.
De início, cabe distinguir as manifestações do
direito à liberdade de religião individual. Ele pode ser entendido como
liberdade de crença, liberdade de atuação conforme às crenças e liberdade
de culto[21].
O primeiro, de foro mais íntimo, é o que revela o menor número de conflitos na
atualidade. A liberdade de culto, por sua vez, representa maiores problemas
quando é exercida pelas comunidades religiosas e acaba por afetar, de alguma
forma, a universalidade dos cidadãos. A liberdade de atuação conforme às
crenças, que deveria, num primeiro plano, representar o reflexo exato da
liberdade de crença, é a que mais tem gerado discussões na atualidade. O
direito à proteção da liberdade de religião fica mais proeminente quando se
fala na exteriorização de condutas minoritárias e não convencionais, muitas
vezes emanadas de um único indivíduo em meio a uma grande quantidade de
pessoas. Nesse esteio, soluções normativas abstratas não costumam lograr grande
êxito; o Judiciário ergue-se numa função fundamental de equacionar grande parte
das tensões oriundas de condutas incômodas aos standards maioritários.
3.1
LIBERDADE DE CRENÇA
É a liberdade de acreditar (ou não) em algum
tipo de realidade religiosa. No âmago do indivíduo, permite-se a decisão sobre
qual religião seguir, qual crença tomar para si como verdadeira, inclusive com
a possibilidade de negar ou mesmo não se importar com qualquer experiência
religiosa. As opções consideradas nesse domínio são da “essência íntima e
pessoal do homem[22]”,
sendo defeso qualquer ato que as violente[23].
A religião, como manifestação ancestral da humanidade, recebe, nesse ponto, a
proteção jurídica sob seu aspecto mais fundamental e, de alguma forma,
absoluto.
A Constituição de 1988 traz o termo “liberdade
de consciência” (art. 5º., VI), que, para Aldir G. Soriano[24],
abarcaria a liberdade de crença – que compreende o direito de aderir a uma
religião e também modificar sua postura a qualquer tempo – e o direito de crer
ou não crer em qualquer religião, enunciando, então, a prerrogativa de os ateus
e agnósticos manterem-se alheios ao fenômeno religioso. Jorge Miranda coaduna
com essa posição, e, inclusive, determina outra diferença, baseado no fato de a
liberdade de consciência ser dirigida ao foro individual, ao passo que a outra
teria uma dimensão social e institucional[25] –
decorrentes, por óbvio, da idéia de religião como fator agregador. Data maxima
venia, a visão do constitucionalista português não alcança situações relevantes
como associações de grupos anti-religiosos ou que difundem teorias agnósticas e
relativas ao ateísmo. Os elementos social e institucional a que se refere não
são próprios apenas das religiões, mas pertencem a todo grupo que se une em
torno de uma idéia. Além disso, cabe ressaltar que não há lógica em considerar
um sem o outro, pois seus efeitos e disciplina no direito são idênticos. O fato
de um deles conter o exato conteúdo do outro sem um terceiro conceito para
contrapor já demonstra a desnecessidade de diferenciação. Neste trabalho, são
considerados sinônimos.
Os ordenamentos jurídicos democráticos, no
início, conceberam esse direito sem restrições, visto que é eminentemente de
cunho pessoal. Em se tratando de um direito que dialoga constantemente com o
princípio da igualdade, geralmente não se cogita discipliná-lo, pois, ao
Estado, não é importante a natureza da crença do indivíduo; seu estatuto
jurídico não será alterado por tal condição. Essa visão, de cunho notadamente
republicanista[26],
foi revista diante de uma nova perspectiva que se concebe de uma sociedade
plural e que respeita valores de todas as crenças. Não se restringe a
democracia pela adaptação de normas e atos do Poder Público em prol do respeito
a algumas condutas religiosas pessoais; ao contrário, a uniformização
legislativa[27],
pensada como maior das conquistas dos revolucionários franceses, só demonstrou
gerar desigualdades, se interpretada literalmente.
3.2
LIBERDADE DE ATUAÇÃO CONFORME A CRENÇA
A miríade de religiões do mundo contemporâneo
comporta todo o tipo de conduta conforme a crença individualizada. Dentro da
liberdade religiosa, o conceito anterior de liberdade de crença é inócuo se seu
par diametral – o de liberdade de atuação conforme a crença – não for
assegurado[28].
A dicotomia entre crença (belief) e conduta
(action) não encontra respaldo em discussões anteriores ao próprio Estado de
Direito. Na época em que a liberdade religiosa era tratada mais como tolerância
ao diferente, e os modelos concordatários reinavam na Europa, o direito de
atuação conforme a crença era ínsito ao direito reconhecido na religião
tolerada. A discussão entra em pauta na jurisprudência norte-americana, quando
o modelo da Primeira Emenda começa a ser debatido.
A Suprema Corte daquele país sustenta a tese de
que leis não podem interferir na liberdade de crença pessoal, mas podem
restringir as condutas que dela emanam[29].
Por certo que ações têm, via de regra, repercussões muito maiores na sociedade
do que convicções íntimas, mas o problema não deve ser tratado de forma
categórica. Deve haver a adequação de certas condutas em prol da manutenção de
uma democracia em que as idéias possam ser viabilizadas dentro da comunidade
maior[30].
Impedir atos individuais que têm por base a mais tenra boa-fé em relação às
próprias convicções religiosas significa mutilar o núcleo fundamental do
direito à liberdade de religião, e, em última análise, à própria expressão
humana, em sua maior dignidade e existência.
Para atingir um estatuto jurídico diferenciado,
o Poder Público necessita de meios para perquirir a existência de uma condição
prévia – a verdadeira filiação à comunidade que carece de especial disciplina.
Sob a perspectiva subjetivo-funcionalista, a determinação de uma crença esbarra
num parâmetro de difícil aferição, que é o da sinceridade em relação ao credo
que se presume adotado[31].
Laurence Tribe demonstra que a sinceridade é requisito para a consolidação de
exceção a qualquer exigência estatal (government requirement), seja ela uma
norma penal ou uma lei de concessão de benefícios[32].
Nesse caminho, a Suprema Corte americana decidiu, no caso United States v.
Ballard[33],
que um júri popular poderia determinar se há sinceridade na crença do
demandante, mas jamais fazer juízo sobre sua veracidade[34].
Naturalmente, essas balizas servem para coibir
abusos na auto-declaração religiosa, quando ela têm relevância no tratamento
jurídico dos concidadãos. Basta citar o caso da revolta tributária da cidade de
Hardenburgh, NY, em fins da década de 70, em que mais de 90% dos cidadãos
adultos tornaram-se ministros da Universal Life Church – que enviava pelo
correio credenciais eclesiásticas a quem as solicitasse – pois, naquela
localidade, eram concedidas inúmeras isenções a grupos religiosos e sacerdotes,
agravando a exação sobre os demais. Foram ordenados, durante quinze anos,
mais de seis milhões de ministros[35].
Outro ponto fundamental que se espraia da
liberdade de atuar conforme as crenças é a chamada liberdade de divulgação das
crenças. O proselitismo é uma prática comum a inúmeras religiões, notadamente
as relacionadas com o monoteísmo, e tem gerado diversas controvérsias,
principalmente quando se utilizam meios de comunicação ou estão em jogo outros
direitos fundamentais, como os referentes à proteção do consumidor[36].
A liberdade de divulgação de crença apresenta um
núcleo que por vezes extrapola ao permitido a outras liberdades, como a de
expressão ou mesmo a de veicular propaganda comercial. Dentre todas essas, a
liberdade de religião, assim concebida, é a que guarda maior nível de
subjetividade. O próprio Supremo Tribunal Federal já decidiu, em caso sobre
publicação de livros anti-semitas, a limitação da liberdade de expressão[37],
enquanto que o próprio Antigo Testamento, livro sagrado para cristãos e judeus,
apresenta mandamentos de caráter amplamente discriminatórios[38] e
não se cogita sua proibição.
A Suprema Corte norte-americana no caso
Watchtower Bible Track Society of New York, INC. et al. v. Village of
Stratton et al (17/06/2002) decidiu proteger a liberdade de divulgação da
crença exceptuando os testemunhas de Jeová da aplicação de regulamento que
proíbe a peregrinação de “angariadores de voto” sem autorização da
municipalidade. O escopo do regulamento é proteger os moradores de serem
incomodados por propaganda indesejada, mas, do outro lado, está a natureza da
religião das testemunhas que carece da publicação e entrega de material
religioso[39].
O direito a não ser incomodado por idéias contrárias a sua sucumbe, diante de
um contexto democrático e plural, aos direitos relativos à liberdade de
comunicação de idéias.
O Tribunal Constitucional Federal Alemão decidiu
sobre o tema em Reclamação Constitucional movida pelo Movimento Católico da
Juventude Rural (Katolische Landjungebewegung Deutschlands), em 1968[40].
Em 1965, a juventude católica de toda a Alemanha promove uma campanha chamada
“Campanha quarto de despejo” (Aktion Rumpelkammer) para arrecadar trapos e
papéis com o fim de vendê-los a atacadistas. O montante arrecadado seria
destinado à juventude correspondente nos países pobres, e, assim, recebeu ampla
adesão das comunidades católicas do país.
Algumas empresas de coleta de material velho
foram à bancarrota graças a essa campanha, e uma delas ajuíza demanda contra o
movimento alegando concorrência desleal, já que fora feita propaganda da
campanha diretamente do púlpito das igrejas. A empresa ganha em todas as
instâncias.
Chegando ao TCF, alega o movimento que a decisão
impugnada viola o direito ao livre exercício religioso, constante do art.
4,(2), da Constituição Alemã[41].
Diz a Corte Excelsa:
“Uma vez que o exercício da religião tem
significado central para toda crença e toda confissão, esse conceito precisa
ser, em face de seu conteúdo histórico, interpretado extensivamente (...).
De acordo com sua interpretação extensiva, fazem
parte do exercício da religião não somente os procedimentos litúrgicos e a
prática e a observância dos usos religiosos, como culto religioso, coleta de
contribuições, orações, recebimento dos sacramentos, procissão, hastear as bandeiras
das igrejas e tocar os sinos, mas também a educação religiosa, festas laicas e
atéias, bem como outras manifestações da vida religiosa e filosófica.
Coletas organizadas pela Reclamante por motivos
caritativos e o anúncio no púlpito por ela realizado fazem parte do exercício
de religião garantido pelo art. 4º., II, GG”.
A exteriorização da crença guarda também um
conflito latente do fenômeno religioso – a figura da demonização. O “inimigo”,
o “infiel”, o “demoníaco” não são prerrogativas das religiões oriundas do
judaísmo. Pelo contrário, a noção de figuras e condutas que são consideradas
negativamente está presente em quase todas as religiões do mundo. Num contexto
democrático, a diminuição valorativa de alguns comportamentos ou crenças em
relação aos outros é vedada, se houver como parâmetro o Poder Público. Porém,
quando se menciona a liberdade religiosa particular, se procura proteger o
núcleo fundamental de uma crença, ainda que este venha a ferir o núcleo
fundamental de outra. Para um católico, tão importante é a idéia de sacramento
como é a concepção de céu e inferno. É fundamental, para essa religião, a
construção da filosofia de que aquele que não segue os mandamentos de Deus
através de sua única Igreja, sofrerá danação eterna. O mesmo ocorre com todo
tipo de crença que procura superestimar seus próprios dogmas em relação aos dos
demais grupos religiosos[42].
As soluções de conflitos nesse terreno não são dadas pelas máximas kantianas de
respeito ao outro ou pela utilização do princípio do neminem laedere, baluarte
da teoria da responsabilidade civil romana. É preciso construir paradigmas
renovados que consigam coibir abusos, sem provocar o esvaziamento da própria
religião.
Entra em cena uma discussão basilar, a dos
limites à liberdade religiosa. Se o Estado não pode fazer juízo sobre o
conteúdo das crenças praticadas ou veiculadas, indaga-se como seria determinada
uma divisória entre a licitude e o abuso desse direito fundamental. Com o fito
de resguardar a eficácia máxima dessa liberdade, entende-se que o parâmetro
para controle da atividade religiosa é a configuração de um comportamento
ilícito[43].
Um ilícito de natureza criminal ou administrativa, se praticado continuamente e
sendo considerado altamente relevante para a existência daquela religião,
possibilitaria a intervenção no sentido da proibição da prática – mas jamais do
conjunto de crenças em si[44].
Outro lado da liberdade de divulgação da crença
pode ser entendido como o direito ao silêncio relativo à convicção religiosa.
Dentro do Estado de direito, não se protege apenas o amplo debate de idéias e a
possibilidade de fazê-las serem ouvidas, mas também a intimidade e privacidade
do indivíduo que, ao contrário do prosélito, não quer que sua filiação
religiosa – ou, logicamente, o conteúdo de sua religião – seja de conhecimento
da comunidade. No caso Wooley v. Maynard [430 US 705 (1977)], a Suprema Corte
norte-americana decidiu que “existe o direito de falar e o de abster-se de
falar[45]”.
Em última instância, trata-se do direito a não ter a própria consciência
violada e, conseqüentemente, manter o resguardo à dignidade humana.
3.3
LIBERDADE DE CULTO
A celebração do conteúdo das crenças através de
atos de adoração também é um dos caracteres protegidos no seio da liberdade
religiosa[46].
A liberdade de cultuar traduz, em si, à idéia de comportamentos[47],
individuais ou coletivos, motivados religiosamente, e que são, de alguma forma,
ritualizados[48].
É importante anotar que não é necessária a comunicação da doutrina para que
seja caracterizado um culto, pode este aparecer, por exemplo, em forma de
oração individual, meditação, jejuns, estudo de livros sagrados ou a prestação
de serviços religiosos nos templos.
A liberdade de culto apresenta, em paridade, a
necessidade da existência de lugares de culto[49].
A proteção aos locais de celebração é, sem dúvida, corolário da própria noção
do direito a realizar culto religioso sem intervenção externa. Em última
análise, essa facção do direito à liberdade religiosa é uma especificação do
direito maior à privacidade do cidadão ou dos grupos religiosos.
Outro problema que se apresenta é o referente à
intervenção estatal nos locais de culto. A lei francesa sobre laicidade do
Estado, de 9 de dezembro de 1905, em seu artigo 25, estipula que as reuniões de
culto estão “sob a vigilância das autoridades no interesse da ordem
pública”. Jacques Robert ensina que:
“O prefeito (maire) pode intervir na igreja caso
a ordem pública esteja ameaçada, seja a pedido do padre, seja próprio motu, mas
somente durante as reuniões públicas pertencentes à igreja (não em caso de
cerimônias privadas como batismo ou casamentos). Esse poder de polícia (pouvoir
de police) é limitado na ocasião por ser o edifício destinado ao culto com
finalidade religiosa. Desse modo, o Conselho do Estado declarou ilegal uma
ordem dada por certo prefeito de colocar na igreja o cadáver de um suicida
(C.E. 9 janeiro 1931. Cadel. S. 1931.3.41). O prefeito poderá igualmente fechar
a igreja quando um perigo iminente de confronto ameaçar os fiéis (C.E., 26 maio
1911. Ferrey et al.).[50]”.
A intervenção dar-se-á sempre em prol da
comunidade exterior, quando esta tiver sido afetada[51],
ou em favor dos membros da religião presentes na celebração, quando os mesmos
estão sob qualquer risco concreto de lesão a um bem jurídico. Note-se que,
quando se fala em religiões animistas e neo-pagãs, que preconizam rituais de
intenso esforço físico e mental para alguns indivíduos, o Poder Público deve
estar atento para não ferir a liberdade de culto dos participantes, mas também
não permitir que indivíduos tenham sua dignidade violada mediante coação ou
fraude perpetrada pelo sacerdote ou pelo restante do grupo. A autonomia da
vontade, quando houver disponibilidade dos direitos em jogo, deve ser a coluna
mestra para valorar eventual ilegalidade.
3.4
LIBERDADE DE ORGANIZAÇÃO RELIGIOSA
A liberdade de religião protege, na
individualidade, os diversos reflexos que o fenômeno religioso carece para
atingir sua completude. Numa sociedade de massa, em que as violações pontuais a
direitos parecem não influir na enorme gama de relações jurídicas que se travam
a todo momento, nada mais aceitável que as corporações religiosas também venham
a gozar da mesma amplitude desse direito fundamental. A luta pela eficácia da
liberdade de religião passa pela problemática das minorias políticas que,
certamente, ganham mais força quando concentradas em entes representativos. Nas
palavras de Jônatas Machado:
“A titularidade de direitos fundamentais pelas
pessoas colectivas reveste-se de particular importância no caso do fenômeno
religioso. A história demonstra a existência e influência de inúmeros grupos
que surgem da dinâmica social do homem e da religião. No caso particular do
Cristianismo, por exemplo, a idéia de assembléia (ecclesiae), marcou tão
profundamente os hábitos sociais que se torna hoje difícil conceber a religião
desligada de sua dimensão associativa. Acresce que um dos actos mais
significativos através dos quais o indivíduo exerce sua liberdade religiosa
consiste, justamente, na adesão de uma comunidade moral de natureza religiosa.
Assim, dado o caráter eminentemente social do fenómeno religioso, o
reconhecimento do direito à liberdade religiosa individual tem como corolário o
respeito pela autonomia das formações sociais a que aquele naturalmente dá
lugar[52]”.
A proteção do individual necessariamente se
reporta à proteção do coletivo, quando o objeto de resguardo é um fato comum a
vários personagens. Retirar a armadura normativa que se dispõe à liberdade
religiosa coletiva significa mitigar a expressão de cada um de seus crentes.
Assim, declarar a liberdade religiosa individual sem suscitar a coletiva é um
engodo que mascara um movimento discriminatório. Basta recordar o discurso do
Conde de Clermont-Tonnerre, em 23 de dezembro de 1789, sobre os judeus e sua
comunidade:
“Não há caminho intermediário possível: ou se
admite uma religião nacional, e se submetem a ela todas as vossas leis,
dando-lhe o poder temporal, e se excluem de vossa sociedade os homens que
professam outra crença e, então, apagais o artigo da declaração de direitos
(sobre liberdade religiosa), ou permitis que cada um tenha sua própria opinião
religiosa e não excluís dos cargos públicos os que fizerem uso de tal faculdade
(...). Devemos recusar tudo aos judeus como nação e dar tudo aos judeus como
indivíduos. Devemos tirar-lhes o reconhecimento de seus juízes; eles devem ter
apenas nossos juízes. Devemos recusar proteção legal à manutenção das assim
chamadas leis de organizações judaicas; eles não devem ser autorizados a formar
dentro do Estado nem um corpo político, nem uma ordem. Devem ser cidadãos
individuais. (...) Em resumo, senhores, o estado presumido de todos os
residentes de um país é o de cidadãos[53]”.
Decerto que interferências desmotivadas no seio
das comunidades religiosas são eivadas de ilegalidade. Todavia, o Direito
necessita enquadrar esses agrupamentos com o fim de discipliná-los e concebê-los
como titulares de liberdades fundamentais. A forma de organização que se tem
proposto para as comunidades religiosas é a pessoa jurídica de direito privado,
padrão nos ordenamentos ocidentais. Historicamente, porém, a Igreja Católica
tem ostentado um patamar diferenciado em diversos países – inclusive, na
atualidade, é tratada a Santa Sé como pessoa jurídica de direito público
internacional – o que é uma excrescência. Entende-se que qualquer diferenciação
na qualificação jurídica das entidades religiosas constitui uma discriminação
odiosa e irrazoável.
No Brasil, as organizações religiosas são
regidas pelo Código Civil, que contém a seguinte regra:
“Art 53. Constituem-se as associações pela união
de pessoas que se organizem para fins não econômicos.
Parágrafo único. Não há, entre os associados,
direitos e obrigações recíprocos”.
O regramento legal de uma associação religiosa
deve ser feito em conformidade com duas balizas. Primeiramente, a da liberdade
de religião num sentido amplo, com o escopo de delimitar o intuito legítimo
pelo qual se reúnem os fiéis. Além disso, os dogmas e princípios éticos
próprios da religião devem servir para reger as relações dentro da comunidade.
Veda-se, por assim dizer, a imposição de regras de organização que venham a ferir
princípios de fé. Nas palavras de Paulo Sanches Campos[54]:
“Os católicos entendem que o poder do Papa é
divino e que o mesmo poderá ordenar os bispos e estes, os padres, não podendo o
legislador interferir nesse dogma, sob pena de violação do mencionado art. 5º.,
VI, da CF. Seria o caso, indaga-se, da lei impor (sic) que os fiéis de uma
paróquia elejam a quem eles queiram para padre ou para bispo que, a rigor,
também é administrador da igreja?
Seria o caso de uma entidade espírita prestar
contas aos fiéis, no final de um exercício, de todos os animais sacrificados
nos rituais?
Os pastores, que também administram a igreja,
deverão ser eleitos ou a organização da igreja poderá dispor a esse respeito?”
Embutir, no seio de um dispositivo genérico,
como faz o Código Civil brasileiro, parece significar que a regulação de uma
associação religiosa é idêntica a de um clube esportivo ou de dança, quando, na
verdade, não guardam as mesmas características. Logicamente, o Estado pode
exigir comportamentos em relação à estrutura das organizações religiosa com o
fim, por exemplo, de apurar ilícitos criminais, administrativos ou fiscais[55],
quanto a isso não há dúvida. O que se questiona é a validade de normas legais
que imponham regras sobre a formação e administração de associações religiosas
e que violem princípios éticos das mesmas.
O vínculo que une cada crente não é outro senão
o de natureza espiritual[56],
e impor um dever jurídico obrigacional de natureza civil no momento em q se
ingressa numa religião é uma violação absoluta à própria noção geral de livre
escolha de crença. Como ensina Paulo Sanches Campos[57]:
“Ora, o vínculo jurídico estabelecido entre
fiéis e igreja é meramente ideal, de fé, dispensando requisitos objetivos ou
condições para o exercício de direitos subjetivos, juridicamente aferíveis.
Qual o requisito para ser cristão, senão crer em Cristo? O vínculo de uma
igreja cristã exige do crente apenas que ele comungue dos mesmos princípios de
fé e forma de adoração daquela comunidade.
(...) As igrejas não possuem associados, mas sim
fiéis, membros.
Os direitos e deveres decorrentes das convicções
religiosas são de foro íntimo, isto é, são essencialmente espirituais e não
passíveis de apuração jurídica. São vínculos ideais, espirituais entre o fiel e
a divindade professada”.
Além da tutela do direito fundamental à
liberdade religiosa coletiva e da proteção de sua organização, vale apontar um
último aspecto protetivo que aparece nesse diapasão. As comunidades religiosas
são dotadas de um direito de autodeterminação[58],
cujo conteúdo se traduz delimitação de um “círculo vital”, apartado da atuação
estatal, em que residem questões internas às próprias religiões. Estas são,
v.g., a definição da doutrina basilar e sua interpretação, o modo e requisitos
para admissibilidade dos membros, a seleção dos meios de financiamento de suas
atividades, a aplicação de sanções disciplinares, etc. Estas matérias não podem
sequer ser objeto de deliberação estatal, seja por lei, por ato administrativo
ou por intervenção jurisdicional[59].
3.5
PROBLEMA DA ACOMODAÇÃO
O entendimento dado à liberdade religiosa no
mundo, nos países em que é concebida plenamente, sempre foi o de sua conjugação
ao princípio da igualdade, no sentido de que todos os crentes, ateus ou agnósticos
têm a mesma prerrogativa de serem tratados de forma idêntica pelo Estado, sem
qualquer discrímen possível, ao menos com base em suas convicções pessoais.
Trata-se, em última análise, de um direito público subjetivo à igualdade
jurídica[60].
Até então, a violação desse direito era tratada
como uma discriminação, partindo-se para a solução jurídica da modificação da
situação do ofendido até atingir o nível de igualdade perante todos os membros
da sociedade. O status jurídico igualitário era equivalente ao fato de que a
ação do Poder Público é neutra em relação a todos os credos.
A discriminação, num sentido lato, poderia ser
dividia de três formas[61]:
discriminação direta (direct discrimination), que ocorre quando, por exemplo,
uma escola pública abre e encerra suas atividades com uma oração ao Deus
cristão; discriminação indireta (indirect discrimination), como no caso de um
proprietário que deseja alugar seu apartamento, mas dá preferências a quem é de
sua religião); e assédio moral (harassment), que é o caso de piadas ou
comentários perniciosos em relação à crença alheia.
Ocorre que, com a evolução da jurisprudência dos
países da América do Norte, verificaram-se situações em que o direito
fundamental à liberdade religiosa também seria lanhado, mas numa nova espécie
de violação, chamada discriminação construtiva (constructive discrimination).
Esta viria à tona no momento em que uma exigência (requirement) supostamente
neutra tem um impacto adverso em determinados membros de um grupo protegido
pelas leis do país, gerando uma desigualdade proibida. Essa pode ser expressa
tanto numa exclusão de direitos, como em uma restrição ou preferência.
A maior parte dos casos de discriminação
construtiva nos Estados Unidos e Canadá surge na esfera laboral envolvendo
questões de vestimentas religiosas e a observância de feriados. Casos dessa
natureza também surgem na área dos serviços públicos, particularmente nos relativos
à educação (orações públicas em escolas, intolerância religiosa por parte dos
professores, etc.) Há também casos lidando com o direito de instituições
religiosas de empregar pessoas que aderem a crenças específicas.
Em decorrência dessa situação de desigualdade
ilegal, surge para o agente violador – seja privado, seja público – um “dever
de acomodar” (duty to accomodate) socialmente os indivíduos cujas crenças não
permitem a manutenção de um status geral de cumprimento àquela exigência.
A exceção ao dever de acomodar, segundo a seção
11 (2), do Código de Direitos Humanos do Estado de Ontário, seria quando este
dever implica indevida dureza (undue hardship) ao sujeito que deve agir para
equilibrar as desigualdades. Os padrões considerados para aferição da dureza
indevida são três: custo (cost), inexistência de outros meios para
financiamento (outside sources of funding) e riscos para saúde e segurança
(health and safety risks), do que está em estado de desigualdade ou dos demais
à sua volta[62].
O Canadá é, sem dúvida, um dos países que mais
aplica a acomodação de minorias religiosas sem maiores restrições. São inúmeros
exemplos de jurisprudência pacífica em diversos temas[63]:
vestimentas religiosas[64],
políticas de intervalo no trabalho (break polices), processo de recrutamento
profissional, remuneração por feriados religiosos não-oficiais[65],
flexibilização de horários e outros.
A questão da acomodação, no entanto, é bem
controvertida nos Estados Unidos. Pode-se dizer que a interpretação da cláusula
constitucional do livre do exercício da religião (free exercise clause) pela
Suprema Corte norte-americana completou um círculo[66].
De sua leitura restritiva em 1878 em com o caso Reynolds[67],
passou a um entendimento muito mais amplo nos anos 60 do século XX, e tem
retornado ao ponto inicial no controverso Employment Division of Oregon v Smith[68],
de 1990.
Essa decisão da corte gerou críticas quase
unânimes, e o Congresso americano respondeu rapidamente editando o Religious
Freedom Restoration Act (1993), desenhado para restaurar o entendimento perdido
em Smith. Este esforço, entretanto, falhou, porque a Suprema Corte acabou
decidindo pela inconstitucionalidade do ato, alegando que o Congresso violou o
pacto federativo ao instituir aquela “acomodação” de práticas religiosas
significativamente onerosas aos crentes pelo Poder Público estadual.
O Magno Pretório daquele país defrontou-se com
esse tipo de questão pela primeira vez quando um mórmon poligâmico do Utah
desafiou uma lei federal anti-poligamia com base em suas crenças
pessoais. A corte rejeitou a tese do apelante de que sua religião o
compelia à violação da lei federal, o que seria escusável. A corte leu a
cláusula do livre exercício da religião no sentido de proteger a opinião religiosa,
mas não as práticas que funcionam contra às leis criminais neutras aplicáveis.
Nos anos do Justice Warren E. Burguer (década de
60), a corte tinha adotado uma visão muito mais expansiva da cláusula, lendo-a
no sentido de compelir a acomodação governamental de conduta religiosamente
motivada, na ausência de um interesse estatal coercitivo, e com o uso dos meios
que menos transtornassem as práticas religiosas. Aplicando esta
interpretação estrita às leis que oneravam significativamente o exercício
religioso, a Corte entendeu uma lei da Carolina do Sul inconstitucional por
negar benefícios de desemprego a um adventista do sétimo dia que recusasse uma
oportunidade de trabalho em que a função incluísse disponibilidade no sábado[69].
A Suprema Corte continuou a aplicar esse
entendimento, utilizando-o, por exemplo, em 1972 para declarar inconstitucional
uma lei do Wiscosin que exigia o comparecimento nas escolas de crianças e
adolescentes até a idade de dezessete anos[70].
Nessa época, os estados e as cortes federais de menor instância também
aplicavam o controle apertado (strict scrutiny[71])
para examinar uma variedade de leis criminais que vinham sendo editadas nos
anos 70 e 80 nos Estados Unidos. Em 1979, v.g., em Frank v. Alaska[72],
a Suprema Corte do Alaska entendeu que o estado não poderia aplicar suas leis
de caça de encontro à cultura dos índios Athabascan, que eram religiosamente
motivados a caçar alces fora da estação – alces que são um ingrediente-chave em
um potlatch – o funeral religioso da comunidade.
Pelos idos dos anos 80, a Suprema Corte do país,
quando ainda usava a o exame restrito, começou a fazer exame mais cético em
relação às reivindicações com base no livre exercício da religião. A
cisão do Tribunal sobre o tema foi revelada, de vez, no seu affirmance de 1985,
em razão de uma decisão do Oitavo Círculo que permitia ao estado de Nebraska
continuar aplicando uma lei que exigia a identificação por foto em carteiras de
motorista locais, indo de encontro às convicções de um condutor que acreditava
que tais retratos violavam o segundo mandamento bíblico sobre adorar imagens de
escultura[73]. Já no ano seguinte, o juízo se mostraria em desfavor dos
requerentes do livre exercício da religião, quando, numa decisão apertada (5 a
4), o pedido para não usar capacete feito por um psiquiatra judeu ortodoxo do
exército, que se sentia obrigado a usar um yamulke em seu serviço, foi negado[74].
Em 1988, o caso Lyng v Northwest Protective
Cemetery Association (485 U.S. 439) forneceu a maior evidência da mudança da opinião
daquele Pretório. Passou-se a entender que o governo não necessita se preocupar
com o impacto que suas decisões pudessem ter nas práticas religiosas.
Baseado neste princípio recentemente anunciado, a corte permitiu ao Governo
Federal prosseguir com a construção de uma estrada através de uma floresta que
era considerada sagrada por uma religião nativa americana.
A grande evolução no direito à liberdade de
religião, porém, veio com o julgado em Employment Division v Smith (494 U.S.
872), em 1990. Desperdiçando décadas de avanço na matéria, cinco membros
da Suprema Corte concluíram que uma lei criminal aplicável em sua normalidade
não geraria nenhuma garantia de liberdade religiosa, extinguindo a exigência
dos estados em demonstrar ao menos um relevante interesse público (important
state interest) quando aplicasse leis que pudessem onerar significativamente a
prática religiosa. A corte reinterpretou alguns casos sobre o livre
exercício da religião – e.g., o dos Yoder – como sendo híbridos, levantando questões
não apenas concernentes ao direito de liberdade de religião, mas também ao
devido processo legal substantivo. A partir de então, segundo a maioria
na corte, os estados teriam que satisfer ao controle apertado (scrutiny
heightened) somente quando uma lei alveja especificamente a prática religiosa[75].
A decisão do caso Smith foi altamente impopular,
tanto no Congresso como nas comunidades religiosas. Assim sendo, em 1993,
o Parlamento respondeu ao julgado promulgando o Religious Freedom Restoratation
Act, projetado para fazer retornar aos padrões de tratamento da
liberdade religiosa antes do caso Smith. Sob a RFRA, atos do governo
federal, estados e locais que interferissem no exercício religioso deveriam ser
fundados em um relevante interesse estatal e ser o menos restritivo
possível. O Tribunal Supremo, entretanto, no caso City of Boerne v Flores
[521 U.S. 507 (1997)], declarou a inconstitucionalidade da RFRA, ao menos para
o governo federal e administrações locais. A corte concluiu que a Constituição,
na seção cinco da décima quarta emenda, não deu nenhum poder ao Congresso para
adotar mais que as medidas corretivas consistentes com as interpretações da
corte sobre a décima quarta emenda, e que o Parlamento havia tentado mudar a
lei substantiva (substantive law) – substituindo sua interpretação da cláusula
do livre exercício religioso pela da Suprema Corte.
Em 25.02.2004, foi julgado o caso Locke v Davey,
em que o programa de bolsas estudantis do estado de Washington se negou a
conceder auxílio a Joshua Davey pelo fato de este querer cursar uma faculdade
de teologia confessional. O Chief Justice Rehnquist, redigindo pela
maioria de 7 a 2, entendeu que a cláusula constitucional da liberdade religiosa
permitia ao estado de Washington que excluísse a referida graduação do quadro
de possíveis contemplados, pois uma vocação religiosa estaria além do que o
contribuinte deveria financiar com seus esforços.
Uma inesperada atitude dos Justices foi
evidenciada recentemente, no caso Cutter v. Wilkinson [544 US 709 (2005)], em
que a Suprema Corte, decidiu sobre a constitucionalidade da Religious Land Use
and Institutionalized Persons Act, de 2000. Primeiramente designada para tratar
de questões sobre uso da terra, a lei federal também trata de discriminação em
razão de religião e da acomodação de eventuais práticas religiosas[76] que,
em confronto com exigências comuns em instituições estatais, apresentem um ônus
substancialmente elevado (substancial burden) para o crente. No caso em tela,
cinco seguidores de religiões não convencionais (Asatru – religião de
politeísmo viking, Wicca, Church of Jesus Christ-Christian – que prega a
supremacia da raça ariana – e Satanismo) ajuízam demanda contra diretor de uma
prisão no Ohio alegando que houve violação da RLUIPA, pois não lhes era
permitido cultuar ou ter acesso à literatura de suas respectivas religiões, o
que não ocorria com os demais. Decidindo a Magna Corte que o Estado tem dever
de adequar suas instalações pra proteger o livre exercício da religião, um novo
entendimento surge. Todavia, ainda é nebuloso o pensamento geral dos Justices.
Com a nova lei, a razoabilidade impera novamente nas restrições e na acomodação
de religiões minoritárias, ao menos no que tange a presídios, hospitais, etc..
De qualquer modo, prenuncia-se, talvez, uma guinada na postura da Alta Corte.
No Brasil, a questão da acomodação não tem sido
bem acolhida pelo Supremo Tribunal Federal[77].
Na medida cautelar em representação de inconstitucionalidade 1371, do Distrito
Federal, tramitada antes da Constituição de 1988[78],
julgou-se improcedente o pedido de religioso que necessitava guardar o sábado
no dia em que foram marcadas eleições gerais. Pleiteavam eles a alteração do
horário de votação estabelecido no Código Eleitoral, pois, segundo os mesmos,
seria inconstitucional por violar o direito à liberdade religiosa. O Relator,
Ministro Rafael Mayer, inicia seu voto transformando a natureza da questão,
depois dispõe sua impressão sobre o Estado Laico:
“O que me parece que está, realmente, em jogo é
a chamada escusa de consciência, ou cláusula de consciência, ou objeção de
consciência que a nossa Constituição, no §6º. do art. 153 resguarda aos
cidadãos brasileiros, dando-lhes certas conseqüências. (...) Isso se verifica,
por exemplo, e classicamente, com relação ao serviço militar, onde pode ocorrer
a objeção de consciência dos pacifistas de alto bordo.
Ora, Sr. Presidente, estabelecer um horário
diferente para que resguardasse aos adventistas e outros cultos sabatistas, um
horário diferente para que realizassem o seu direito de voto e realizassem as
obrigações do seu culto, na verdade, imporia ao Estado, que é um Estado leigo e
separado da religião, que se fizesse discriminação favorecedora daqueles que
tenham uma determinada religião. A concepção de nossa Constituição é de admitir
a objeção de consciência, mas que, aqui, não pode ser levada em conta, para
induzir a inconstitucionalidade da lei, que dispõe, genericamente, para todos
os cidadãos”.
O Ministro Moreira Alves, a quem cabia o segundo
voto na decisão, acompanha o Relator, alertando a necessidade de alteração do
horário de votação em todas as circunscrições do país, para que fosse saciado o
suposto direito do autor. Em verdade, o princípio da proporcionalidade, foi
atendido nessa decisão, pois seria por demais oneroso ao Estado fazer a
modificação em nome de um só candidato. No entanto, sequer menciona o STF
qualquer tipo de argumento abordando a questão fundamental da sujeição de
práticas minoritárias aos atos do Poder Público.
Já no seio na nova ordem constitucional, A ADI
2806 / RS (DJ 27-06-2003), relatada pelo Ministro Ilmar Galvão, foi julgada
procedente para declarar a inconstitucionalidade de uma lei gaúcha que
pretendia acomodar a guarda de feriados religiosos não estabelecidos em lei. In
casu, foi considerado um problema de vício formal de competência. Na ementa:
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI N.º
11.830, DE 16 DE SETEMBRO DE 2002, DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. ADEQUAÇÃO
DAS ATIVIDADES DO SERVIÇO PÚBLICO ESTADUAL E DOS ESTABELECIMENTOS DE ENSINO
PÚBLICOS E PRIVADOS AOS DIAS DE GUARDA DAS DIFERENTES RELIGIÕES PROFESSADAS NO
ESTADO. CONTRARIEDADE AOS ARTS. 22, XXIV; 61, § 1.º, II, C; 84, VI, A; E 207 DA
CONSTITUIÇÃO FEDERAL. No que toca à Administração Pública estadual, o diploma
impugnado padece de vício formal, uma vez que proposto por membro da Assembléia
Legislativa gaúcha, não observando a iniciativa privativa do Chefe do
Executivo, corolário do princípio da separação de poderes. Já, ao estabelecer
diretrizes para as entidades de ensino de primeiro e segundo graus, a lei
atacada revela-se contrária ao poder de disposição do Governador do Estado,
mediante decreto, sobre a organização e funcionamento de órgãos
administrativos, no caso das escolas públicas; bem como, no caso das
particulares, invade competência legislativa privativa da União. Por fim, em
relação às universidades, a Lei estadual n.º 11.830/2002 viola a autonomia
constitucionalmente garantida a tais organismos educacionais. Ação julgada
procedente.
Outro aresto envolvendo a adequação de condutas
religiosas a atos da Administração Pública é o RMS 16107 / PA, relatado pelo
Ministro Paulo Medina (DJ 01.08.2005), no Superior Tribunal de Justiça,
tratando também da questão da guarda de sábado pelos adventistas do 7º dia.
Segue a ementa:
RECURSO ORDINÁRIO - MANDADO DE SEGURANÇA -
CONCURSO PÚBLICO – PROVAS DISCURSIVAS DESIGNADAS PARA O DIA DE SÁBADO -
CANDIDATO MEMBRO DAIGREJA ADVENTISTA DO SÉTIMO DIA - PEDIDO ADMINISTRATIVO PARA
ALTERAÇÃO DA DATA DA PROVA INDEFERIDO INEXISTÊNCIA DE ILEGALIDADE - NÃO
VIOLAÇÃO DO ART. 5º, VI E VII, CR/88 – ISONOMIA E VINCULAÇÃO AO EDITAL -
RECURSO DESPROVIDO.
1. O concurso público subordina-se aos
princípios da legalidade, da vinculação ao instrumento convocatório e da
isonomia, de modo que todo e qualquer tratamento diferenciado entre os
candidatos tem que ter expressa autorização em lei ou no edital. 2. O
indeferimento do pedido de realização das provas discursivas, fora da data e
horário previamente designados, não contraria o disposto nos incisos VI e VIII,
do art. 5º, da CR/88, pois a Administração não pode criar, depois de publicado
o edital, critérios de avaliação discriminada, seja de favoritismo ou de
perseguição, entre os candidatos.
3. Recurso não provido.
A jurisprudência dos Tribunais superiores
brasileiros sequer menciona o modelo da acomodação em seus julgados (ainda que
estes revelem-se adequados à luz da proporcionalidade), o que demonstra uma
postura tradicional de liberdade religiosa e de separação entre credos e o
Estado, ainda moldado no princípio da igualdade restrita e formal[79].
Entretanto, os padrões utilizados na América do Norte, sobretudo no Canadá,
representam excelente prumo para oxigenação jurisprudencial do Judiciário
pátrio, no sentido de otimizar a garantia dos direitos estabelecidos na
Constituição de 1988.
4 O
ESTADO LAICO
Antes de começar o estudo da natureza jurídica
do Estado laico, faz-se imprescindível uma análise política da separação entre
Poder Público e confissões religiosas. Primeiramente, quando se utiliza o termo
“separação”, considera-se, mormente, a existência ou a possibilidade eventual
de ocorrer uma confusão[80] entre
Estado e credos religiosos. De fato, o modelo estatal primário que a História
conhece é o da sublimação da religião na política, dos sacerdotes e deuses em
imperadores. A religião é a base para a agremiação e estrutura da sociedade
antiga; por ela é justificado o poder dos governantes e a manutenção do status
quo. A religião do rei é a religião do Estado e do cidadão (cujus regio eius
religio).
O Cristianismo[81] pós-Império
Romano inaugurou um novo modelo de relacionamento entre a confissão dominante e
o Estado. O monarca europeu ocidental encontrou-se diante de uma inusitada
situação: sua espada não era forte o suficiente para definir a crença de seu
povo, mas deveria estar empunhada para defendê-la. Há um poder maior, de cunho
espiritual, que paira sobre todos: a Igreja de Roma. Sua estrutura se mistura à
do Estado, porém sem se confundir com ele. Ambos servem a um objetivo comum: a
manutenção de uma sociedade pacífica sob o beneplácito de Cristo. Surge o
sistema da união.
Essa coligação sofreria algum abalo somente com
a Reforma Protestante, quando a homogeneidade religiosa européia foi
quebrada.Um dever de tolerância passou a surgir a partir das concordatas que davam
fim às inúmeras guerras de religião travadas nos séculos XVI e XVII. Com ele, a
própria idéia de direitos humanos desenvolveu-se.
Pelas mãos dos revolucionários franceses e
norte-americanos, no final do século XVIII, a situação de união entre Igreja e
Estado não encontra mais lugar. A independência da “América livre” em relação à
Coroa britânica, um estado oficialmente religioso, inaugurou um novo paradigma
no campo da laicidade. Os sacerdotes, nessa qualidade, não assumem mais cargos
temporais; o Poder Público não financia mais nenhum tipo de culto. As
comunidades minoritárias passam a gozar dos mesmos direitos dos demais.
Na França, o anticlericalismo toma lugar[82].
A postura revolucionária provoca, num primeiro momento, uma ruptura total com
Roma, para depois encontrar no modelo de tratados entre o Estado e as
confissões a melhor forma de equacionar o problema da laicidade. Surge o modelo
europeu concordatário, adotado até hoje por alguns países do velho continente,
como a Espanha[83].
No modelo de separação, o Brasil conheceu duas
fases. A republicanista, com o Decreto 119-A, de 1890, que pregava a absoluta
separação entre atos religiosos e atos civis estatais, e a fase atual, surgida
na Constituição de 1934, que é a da laicidade, mas com certas concessões sobre
a eficácia jurídica de atitudes tomadas no âmbito da religião[84].
Esse novo contato entre Igreja e Estado visa, primariamente, a conformar a
religião como uma manifestação não só cultural, mas ínsita à existência humana.
Sua expressão não deve ser tomada como uma afronta à continuidade democrática;
ao contrário, perfaz-se a comunidade política com o reconhecimento das
manifestações religiosas e sua ajuda na manutenção dos valores fundamentais da
República.
Quando se constrói a noção de “separação”, e,
mais ainda quando essa não é tão rígida como nos parâmetros clássicos, vem à
tona a idéia de um conflito iminente. De fato, o início e a formação do
conceito de laicidade guardou, em seu bojo, a necessidade de uma disputa para
poder aflorar. As elites religiosas jamais idealizariam um Estado separado da
Igreja se seu poderio não fosse ao menos ameaçado por uma força ideológica
contrária com aspirações a tornar-se também a classe controladora. A ruptura
nasce, precisamente, quando forças tradicionalmente hegemônicas tendem a serem
estremecidas por outras dentro de seu próprio domínio. Como bem explica Joseph
G. La Palombara[85]:
“Não devemos, contudo, subestimar o potencial
conflitivo entre elites existentes e elites potenciais ou contra-elites. Até o
começo do século XVI, a Europa era religiosamente homogênea. A condenação, por
Roma, do cisma de Martim Lutero pôs em movimento uma reação em cadeia de ódio e
violência, cujas ramificações políticas reverberam séculos depois, em lugares
tão diversos com a Irlanda do Norte e Burundi.
(...) Conflitos interreligiosos, ou religiosos
versus seculares, mostram claramente que muitas divisões prolongadas ocorrem
dentro da própria elite e não necessariamente (ou muitas vezes até
provavelmente) dentro das massas ou entre as mesmas. O mesmo Lutero e suas
noventa e cinco teses podem ser citados para ilustrar o papel da elite na
criação de divisões; João XXIII e os concílios do Vaticano podem ser
contrapostos como um exemplo da ação das elites na moderação e talvez eliminação
das dissensões. Em nenhum dos extremos desse conflito de cinco séculos, nenhum
momento mesmo, foram as massas completamente irrelevantes; mas seu papel de
criação, manutenção e exploração da diversidade empalidece em confronto com o
desempenhado pela elite”.
Os embates que levaram à origem da separação
entre Estado e a religião dominante sempre revelaram, como pano de fundo, a
bandeira da elite intelectual que se pretendia livre. No Brasil, nunca se fugiu
dessa realidade. A laicidade nasceu nas mentes dos ricos defensores da
República durante o Segundo Reinado. Atualmente, as Igrejas evangélicas
pentecostais clamam por respeito a seus cultos, pois sua cristalização como
elite política lhe permitiu tal feito. Num Estado supostamente laico, e que, de
fato, preconiza pela liberdade de religião, qualquer ato do Poder Público que
envolva a atuação de determinada confissão deve ser analisada sob dois
parâmetros: o jurídico e o político. Não há bons nem maus no jogo, apenas
forças determinadas a manter ou estender seu poder. O Judiciário nacional,
ultrapassando o papel de mero aplicador das leis, deveria realizar uma leitura
política dos atos estatais que lhes são dados à apreciação. Se a inércia
permanece, quem sai perdendo são as religiões minoritárias sem identidade
política, como as afro-brasileiras, que são objeto de discriminação há mais de
400 anos no país.
4.1
NATUREZA JURÍDICA E FINALIDADES DO ESTADO LAICO
A laicidade[86] do
estado pode ser traduzida como a separação das confissões religiosas do Estado[87].
Todavia, essa separação figura nos ordenamentos jurídicos ocidentais como um
princípio[88],
andando pari passu com o direito à liberdade de religião. Enquanto que o último
se centra no bem da liberdade de profissão de fé ou sua abstenção, o primeiro
“atende ao impacto produzido pela atividade estatal no processos espirituais de
formação e revisão da consciência individual[89]”.
Entende-se, aqui, a indissolubilidade dessas duas categorias jurídicas, pois a
história comprova que, onde há violação ao princípio da separação, a liberdade
religiosa não pode estar fielmente garantida[90].
Como ensina Fábio Konder Comparato[91]:
“Com efeito, não há autêntica liberdade de
crença e de opinião, num Estado que adota uma religião oficial. As pressões de
toda sorte – políticas, econômicas e profissionais – contra os não seguidores
da religião do Estado tornam essa liberdade ilusória. Aliás, os Estado
totalitários mais virulentos da atualidade são, justamente, aqueles que
oficializam crimes de confissão religiosa. A interferência estatal na vida
privada torna-se sufocante”.
A laicidade estatal surge como um atributo das
funções públicas[92] que
pode, dependendo da visão que se projeta dele, resultar em conseqüências
diversas. A religião apresenta-se com necessário caráter público, de identidade
e união dos próprios cidadãos, mas a confissão majoritária não pode se valer
disso para requerer privilégios em relação às demais.
Inúmeras teorias já foram aventadas, no seio das
nações democráticas, com o fim de destacar a crença de maior expressão nos
quadros das atividades estatais. A primeira delas foi a da religião civil
(civil religion), que propugnaria pela existência de uma cúpula de valores
sobrepairando todas as religiões. Sobre essa pauta fundacional, existiriam virtudes
cívicas segundo as quais seria conduzida a nação – naturalmente, a inspiração
para essas virtudes seria a da religião dominante. A tese, oriunda dos
pensadores iluministas franceses e adotada pelos republicanistas
norte-americanos da época da constituinte, não passa desapercebida pelo
contexto contemporâneo de sociedade pluralista[93].
No Brasil, muitas vezes recorre-se a uma “moralidade pública” quando é
discutido o problema da criminalidade alta em grandes centros ou da falta de
decoro em programas de televisão ou propaganda. Os indícios da catequese
católica podem ser sentidos quando da utilização de expressões indeterminadas
como “bons costumes”, “desvirtuamento da família” ou “cidadão de bem”.
Outros argumentos mais sofisticados, porém que
redundam também em uma claudicante interpretação em favor das religiões
majoritárias são as teses do princípio democrático e da tradição cultural e
histórica do país. A primeira concebe que os cidadãos, imbuídos de igualdade de
voto constitucionalmente assegurada, podem determinar um estatuto jurídico
preferencial à confissão dominante. Todavia, isso pode representar o
esvaziamento da própria essência do direito à liberdade de religião, uma vez
que a democracia não representa apenas a regra de que a vontade vencedora na
comunidade deve ser efetivada, mas também a proteção da igual dignidade e
liberdade de todos os indivíduos. Esse tipo de corrente dá fulcro para a
manutenção dos feriados religiosos, ostentação de símbolos religiosos em locais
públicos e, eventualmente, subvenções substanciais à confissão de mais agrega
fiéis na sociedade.
Negar o panorama histórico-religioso de um país
é tão atentatório à cultura do mesmo como impedir a liberdade religiosa o seria
à própria idéia de democracia. Por isso, equacionar a diversidade religiosa com
o reconhecimento da influência que determinada crença gerou na formação daquela
nação é um imperativo fundamental para a conivência solidária. Isso representa
que o Poder Público não pode conceder regalias à confissão dominante, mas
também não deve esquecer do peso histórico da mesma. Uma interessante aplicação
pacífica deste argumento, sem pender para nenhum dos lados, é a do
financiamento da restauração de templos seculares por parte do Poder Público,
como parte não só do patrimônio da associação religiosa, mas também da tradição
cultural daquele Estado.
O princípio da separação, portanto, guarda
finalidades adstritas à higidez da atuação dos entes públicos em relação às
comunidades religiosas, sem, entretanto, negar o reconhecimento da existência
das mesmas. Jônatas Machado crê que o princípio da laicidade guarda fins
específicos perseguidos pelo Estado contemporâneo[94].
Entre eles, está a garantia da liberdade religiosa individual, no sentido de
que o princípio atua de forma instrumental para a plena eficácia desse direito
fundamental. Também visa a não interferir na esfera de auto-organização das
associações religiosas, deixando cada uma a cargo da decisão de seus membros ou
de seu clero, conforme seja estruturada.
No sentido oposto, a laicidade não só implica a
proteção da liberdade religiosa individual e coletiva perante o Estado, mas
também a garantia de que o Estado não será objeto de influência das confissões
religiosas. Não se trata aqui de um autêntico “direito de Estado”, como pensado
nos regimes totalitários, mas um resguardo de toda a sociedade civil. No
Brasil, essa finalidade é especialmente importante diante de nossa paisagem
cultural. O Regimento Interno do Senado assim dispõe:
Art 155. A sessão terá início de segunda a
quinta-feira, às 14 horas e 30 minutos, e, às sextas feiras, ás 9h, pelo
relógio do plenário, presentes no recinto pelo menos um vigésimo da composição
do Senado, e terá a duração máxima de quatro horas, salvo prorrogação, ou no
caso do disposto nos arts. 178 e 179.
§1º Ao declarar aberta a sessão, o Presidente
proferirá as seguintes palavras: “Sob a proteção de Deus iniciamos nossos
trabalhos.
A função cardinalícia de um Presidente da Câmara
Alta de um país parece distorcer do princípio da laicidade. Encontra-se também
uma peculiaridade no Regimento Interno da Câmara dos Deputados:
Art. 79. À hora do início da sessão, os membros
da Mesa e os Deputados ocuparão os seus lugares.
§1º A Bíblia Sagrada deverá ficar, durante todo
o tempo da sessão, sobre a mesa, à disposição de quem dela quiser fazer uso.
§2º Achando-se presente na Casa pelo menos a
décima parte do número total de Deputados, desprezada a fração, o Presidente
declarará aberta a sessão, proferindo as seguintes palavras:
“Sob a proteção de Deus e em nome do povo
brasileiro iniciamos nossos trabalhos”.
Estes são singelos exemplos da interseção
religiosa nas atividades estatais. Outros feitos de, no mínimo, estranheza ao
processo democrático da separação entre Estado e Igreja estão nas atividades do
TRT da 7ª Região:
“A cada primeira sexta-feira do mês, a Diretoria
Administrativa promove uma missa para a comunidade católica de juízes e
funcionários do Tribunal Regional do Trabalho da 7ª Região. O ato religioso
recebe sempre expressivo comparecimento de devotos. A realizada no dia três
deste mês a homilia versou sobre o Advento, abrindo as comemorações do período
natalino neste Regional. Antes da celebração aconteceu a sessão de confissões
com numerosos participantes. Este preceito será mantido no próximo ano,
atendendo ao apelo da maioria dos servidores da Igreja Católica” (grifou-se;
07/12/04 – consulte-se em http://www. trt7.gov.br/webtrt2/noticias/index.htm).
Na 13ª Região, as cerimônias religiosas são
celebradas pelos altos sacerdotes da Igreja Romana no país:
“Já na quinta, 27, serão inauguradas mais duas
Varas do Trabalho em Campina Grande, a 4ª e a 5ª. Neste mesmo dia acontecerá o
lançamento da Revista do TRT e a abertura da exposição itinerante
´Retrospectiva dos 20 anos´. Esta solenidade contempla os municípios de Areia,
Guarabira, Picuí e Monteiro. O aniversário do Tribunal teve início no dia 6 com
a abertura da exposição de arte "Retratos do Nordeste" na Área de
Integração Cultural.
Na segunda semana, a programação seguiu com
missa solene celebrada no Pleno do TRT pelo arcebispo da Paraíba, Dom Aldo
Pagotto. Depois de lançada a 13ª edição da Revista do TRT e a apresentada a
exposição "Retrospectiva dos 20 anos", foi inaugurada a Galeria dos
Ex-presidentes” (comemorações pelos 20 anos de trabalho – notícia de 18/10/2005
– consulte-se em http://www.trt13.gov.br/engine/interna.php?tit=Destaques
&pag=exibeDestaque&codDest=3).
Esses e muitos outros exemplos podem ser destacados
para exemplificar como a religião tem um incômodo espaço dentro das estruturas
políticas civis de nosso país. Essa postura viola a terceira finalidade do
princípio da separação entre Estado e Igreja, que é o da garantia institucional
do princípio da igualdade. Para a ideal expressão da liberdade de religião,
faz-se necessário, num plano mais dilargado, a consolidação do princípio do
igual tratamento perante o Estado. A dignidade da pessoa, entendida como um
fulcro para sua livre expressão, resta tolhida se não houver paridade no
mercado livre de idéias (abertura e pluralismo no espaço público), na grande
“feira” onde são veiculadas todas as crenças. Uma confissão que recebe o
beneplácito estatal para atuar de forma diferente das outras demonstra seu caráter
opressor; ela é desigual, recebeu “mais liberdadades” que as demais, atuou num
campo onde é vedado a todas as outras. O princípio da laicidade não comporta
muitos parâmetros objetivos além destes; no entanto, a partir do momento em que
um Estado determina que a laicidade impede que religião esteja presente em
determinado aspecto da vida pública, isso quer dizer que nenhuma convicção
religiosa poderá fazê-lo, sob pena de fazer tombar o ordenamento
jurídico-constitucional.
Lawrence Tribe esclarece algumas visões sobre a
exigência da neutralidade (neutrality) no direito norte-americano[95].
A primeira delas é a chamada neutralidade estrita (strict neutrality), que
demanda que o Estado não utilize a religião como padrão para qualquer tipo de
atuação, seja pra conceder benefícios, seja para impor um dever[96].
É a visão clássica de neutralidade estatal, conduzindo ao não-reconhecimento de
qualquer crença por parte do Poder Público ou mesmo conceder validade jurídica
a qualquer de seus atos privados (casamento, v.g.).
A segunda perspectiva sobre a neutralidade é sua
forma política. Aqui, organizações religiosas e não religiosas têm a mesma
estrutura perante o Estado e gozam dos mesmos direitos (capacidade de ser
proprietário e de contratar). No entanto, permite-se a distinção com base na
religião em alguns casos. A Municipalidade pode, por exemplo, manter igrejas
longe de estabelecimentos incompatíveis com elas, como bares e boates. Leva-se
em consideração um “relevante fator secular” (secularly relevant factor).
Também pode o Estado negar benefícios a entidades religiosas com base no abuso
de direito .Se, por exemplo, um hospital que recebe subsídio público começa a
tentar converter os pacientes para aquela doutrina a que está ligada,
notoriamente não está atingindo um fim almejado pelo Estado, o que é o bastante
para suspender o aporte econômico.
A neutralidade denominacional (denominational
neutrality), segundo Tribe, refere-se a uma vedação ao Estado de traçar linhas
de diferenciação entre as diversas igrejas ou cultos. Exigências, supostamente
de caráter geral, acabam por distinguir as comunidades religiosas – v.g., a
obrigação de inscrição junto ao poder Público de religiões que arrecadem mais
que uma determinada quantia anualmente.
A última forma de neutralidade, uma evolução da
primeira, é a neutralidade conforme o direito à liberdade religiosa (free
exercise neutrality). De acordo com esse conceito, “o Estado pode (e, algumas
vezes, deve) acomodar algumas práticas religiosas que diferem da maioria[97]”.
O problema já foi abordado neste trabalho, sendo apontado como uma das soluções
que mais se adequam ao manto de pluralidade conferido às democracias
contemporâneas.
Com o advento do chamado Estado Social, o papel
dos agentes estatais e das próprias religiões modificou-se. O cunho
assistencialista, antes relegado às instituições de caridade, agora passa
paulatinamente à Administração Pública. Como resultado, encontram-se dois entes
com finalidades comuns. Não basta separá-los por área de atuação, eles muitas vezes
se confundem. Concretizar o dever prestacional positivo torna-se uma tarefa
difícil para os defensores da igualdade formal: como conceber o subsídio e
atuação do Estado através de entes privados seculares e a vedação do
investimento em associações religiosas? O princípio da separação deve ser
revisitado.
No direito norte-americano, a questão foi
discutida pelo caso Lemon v. Kurtzman[98],
sobre auxílio estadual a escolas religiosas. Nesse litígio foi determinado um
parâmetro para a atuação estatal em relação às atividades promovidas pelas
instituições religiosas. Explica Jônatas Machado[99]:
“De acordo com os critérios propostos, um acto
dos poderes públicos não será inconstitucional pelo simples facto de prestar
algum auxílio à religião. A inconstitucionalidade só se verificará, em
princípio, 1) se o acto não tiver um propósito secular, 2) se o seu efeito
primário for a promoção ou a inibição da religião, ou 3) se provocar um
envolvimento excessivo entre os poderes públicos e a religião”.
Este é o comumente chamado “Lemon test”, em que
três conceitos jurídicos indeterminados: propósito secular, alteração do status
religioso e envolvimento excessivo são valorados pelo juiz para concluir ou não
pela violação do princípio da neutralidade constitucional. No entanto, há quem
critique a Suprema Corte por oferecer critérios absolutamente casuísticos, só
podendo ser aferidos na demanda específica, nos moldes do we know it when we
see it[100].
Outros parâmetros surgidos na jurisprudência da
Suprema Corte, em resposta à insatisfação doutrinária ao Lemon test são o
endorsement test e o coercion test. O primeiro, surgido no caso Lynch v.
Donnelly[101],
toma por base o significado de inclusão ou exclusão que um apoio a determinada
confissão leva aos cidadãos aderentes e não aderentes a ela. Aqui, os crentes
são considerados como cidadãos com pela capacidade para gozar de sua liberdade
religiosa, enquanto que o resto da comunidade política fica excluído. Essa
idéia é importante para completar o sentido da igualdade constitucional em
matéria religiosa, pois o estatuto privilegiado odioso não deve ser permitido
apenas porque deve haver separação entre Igreja e Estado, mas também porque o
quadro de liberdades entre os afiliados à religião contemplada é maior do que o
dos demais.
O coercion test é um refinamento do anterior[102].
Endossa a idéia de que o Estado, ao promover apoio a uma determinada expressão
religiosa, está pressionando o restante da sociedade a conformar-se com ela.
Como, em geral, as confissões favorecidas pelo Poder Público são as
majoritárias, a coerção das minorias à adaptação torna-se evidente. O
endorsement test e o coercion test são criticados muitas vezes por
possibilitar a retirada da religião do espaço público, além de não atentar para
situações em que há violação da separação entre Estado e religião, mas não se
compele, de forma patente, à observância pelas minorias de um comportamento
dominante.
Nos sistemas periféricos, a questão da laicidade
tem tomado caminho diverso. Na Ásia, a idéia de secularismo, importada da
Europa no século XIX, ganha enorme força, principalmente entre a classe média
dos Estados do sul do continente[103].
Mas, como já criticado aqui, a idéia central da separação nos moldes clássicos
visa a tornar o Estado um elemento estranho ao fenômeno religioso, não
reconhecendo suas verdadeiras necessidades. Como alerta de Ashis Nandy[104]:
“O secularismo tem pouco a dizer sobre as
culturas – sendo, por definição, etnofóbo e , muitas vezes etnocida, a menos
que, obviamente, as culturas e aqueles que vivem de acordo com elas estejam
dispostos a ser totalmente subservientes ao estado-nação moderno, e se tornar
ornamentos ou adjuntos da vida moderna – e os secularistas ortodoxos não têm a
menor idéia de como uma religião pode articular diferentes fés ou estilos de
vida segundo seus próprios princípios configuradores.
Para esses secularistas, a religião é uma
ideologia oposta à do sistema de estado moderno e, assim, precisa ser contida.
Eles se sentem ainda mais desconfortáveis com a ´religião como fé´, que
reivindica seus próprios princípios de tolerância e intolerância, pois essa
afirmação nega ao estado e a seus ideólogos de classe média o direito de ser a
reserva derradeira de sanidade e o árbitro final entre as diferentes religiões
e comunidades”.
Na China, a figura do secularismo recebe
tonalidade especial. O regime comunista local, naturalmente inimigo das
manifestações religiosas, editou, em 1º de março de 2005, um regulamento de
proteção de liberdade de crença. No entanto, essa norma enxertou inúmeros
conceitos vagos sobre a extensão da proteção legal dada ao povo chinês,
inclusive mencionando expressões como “atividades religiosas normais” para
determinar quais seriam as crenças com complacência estatal mais alargada[105].
O resultado é a continuidade de repressão a minorias, com fechamento de templos
e prisão de líderes religiosos, semelhantes às praticadas à época da Revolução
socialista.
O secularismo turco representa um modelo
diametralmente oposto ao regime teocrático dos países muçulmanos em sua
maioria. O Tribunal Constitucional do país chegou a proibir um partido (Refah)
por indicar que, entre suas finalidades, haveria a implantação da sharia, ou
lei islâmica. A Corte Européia de Direitos Humanos, ao julgar apelação sobre a
decisão de dissolução do partido, considerou que não houve violação da
Convenção Européia de Direitos Humanos no que tange às liberdades fundamentais
de organização e atuação política. No julgado, entendeu-se que a incursão
estatal seria “necessária à democracia[106]”,
numa forma de preservar o Estado Laico.
Outro caso de ato do Poder Público turco julgado
pela Corte Européia de Direitos Humanos é o da vedação do uso de véus em
universidades públicas do país, também considerado em conformidade com a
Convenção de Direitos Humanos[107].
É uma decisão polêmica, mas parece seguir os parâmetros europeus de tratamento
da laicidade.
De fato, o conflito entre o poder de controlar,
inerente ao Estado contemporâneo, e a luta pela liberdade de religião nunca
terminará. O esforço deve ser feito para que as religiões não saiam do espaço
público, mas que também não sejam sufocantes umas às outras. O papel do Estado,
antes vigilante dos abusos e, muitas das vezes, hostil às manifestações
religiosas, hoje atua como um elemento de inclusão e proteção das minorias na
comunidade política.
CONCLUSÕES
A concepção de religião que se descortina no século XXI exige alta
sensibilidade metodológica. Referências a um Deus único, a ritos grandiosos ou
número considerável de adeptos não devem ser mais mencionadas, sob pena de
escapar-se da normativa constitucional. Tampouco é viável juízo de valor sobre
a veracidade das crenças, e os agentes de criminalização secundária devem estar
atentos, principalmente no que tange à repressão do curandeirismo e do
estelionato em terreno religioso. A “fraude” deve ser patente e determinante
para a existência daquele fenômeno. Do contrário, estar-se-ia diante de uma
odiosa perseguição estatal.
A proteção dada à liberdade religiosa começa com a fundamentalidade
desse direito. Também revela-se como garantia, além de coadunar-se com a figura
do Estado laico. Essas duas realidades devem conjugar-se com o escopo de
atingir uma ampla gama de situações em que periga a manutenção do livre
exercício do direito das minorias.
Da mesma forma, o campo de atuação desse princípio dual do Estado livre
e laico é dirigido, primeiramente, às minorias religiosas, históricas ou não.
Depois, abre-se uma via de mão dupla ao entender-se o Estado laico como
protetor do Ente público das influências religiosas, da mesma maneira que as
comunidades de fiéis do aparato estatal.
O exercício da liberdade religiosa no Brasil tem apresentado alguns
problemas de caráter prático. Enquanto muitos doutrinadores e juízes se
encasulam nas antigas teorias republicanistas de extrema separação entre Igreja
e Estado, surgem políticos que, em nome do povo – ou de uma parcela desse –
legislam em favor de suas convicções religiosas. A questão, aqui, não é o
de levar a ética religiosa ao Parlamento, mas obrigar a certos tipos de conduta
toda uma nação. De um lado, a religião e seus enviados aos Poderes
Constituídos; do outro, a sociedade civil, que também tem religião, mas que
sofre com a desigualdade que muitas vezes é provocada com o detrimento de umas
crenças em relação às outras.
Diante desse quadro de sutil casamento entre a Assembléia e as diversas
crenças, a tentativa do jurista não deve ser no sentido de coibir a ascensão de
uma classe de representantes eleitos com base em suas perspectivas religiosas,
mas a de procurar desenvolver o diálogo democrático com a devida interpretação
das normas promanadas desses órgãos políticos.
A democracia, o pluralismo e a dignidade da pessoa humana são os fundamentos
do direito à liberdade religiosa. Dessa maneira, afastar-se da religião não é a
tarefa que se exige do Estado constitucional contemporâneo. Ao contrário,
reconhecê-la como uma manifestação cultural e basilar para a vida em sociedade
é um imperativo, e o respeito e adequação de situações anômalas deve ser sua
bandeira capital. Em rota contrária, assiste-se ao desenvolvimento da doutrina
européia da laicidade, que parece sinalizar uma perseguição disfarçada aos
símbolos e atos públicos religiosos, mormente dos muçulmanos.
Do outro lado da moeda, temos o exemplo norte-americano, que, malgrado
os últimos posicionamentos da Suprema Corte daquele país, construiu uma nação
baseada na tolerância. Primeiramente, pelo simples fato de que, se não houvesse
tal respeito mútuo, não existiria um só país. Fugidos da perseguição anglicana,
puritanos, batistas, metodistas, pietistas e católicos saíram das Ilhas
Britânicas para tentar um novo meio de convivência e diálogo em uma terra para
eles inóspita e cruel. Em segundo lugar, o contínuo espírito inconformado
daquele povo permitiu que os cidadãos lutassem pela neutralidade estatal dia
após dia – e estão longe de conseguir! O desenvolvimento da doutrina da
liberdade religiosa parece ser o mais adequado a inspirar o jurista brasileiro.
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[1] MACHADO, Jônatas Eduardo Mendes. Liberdade Religiosa numa
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[2] SCHNEIDER, Louis. Problemas de la Sociologia de la religión. In: FARRIS, Robert E. L. (org.), Las Instituciones
Sociales IV. Trad. Joan Faré I Miró. Barcelona: Editorial Hispano Europea, p.
437. Encabeça-se a discussão com um teórico subjetivo-funcionalista, dado
que as concepções objetivas de religião remontam, em sua maioria, ao século
XIX. Nessa época, as cortes européias e americanas costumavam traduzir a
expressão ´religião´ com as noções deístas de divindidade, moralidade e louvor.
Ou seja, os moldes ocidentais deveriam ser observados para que uma crença
alçasse tal categoria (TRIBE, Laurence. American Constitutional Law. 2nd Ed. Mineola: The Foundation Press,
1988, p. 1179.). Laurence Tribe rememora também os primeiros Mormon Cases, que espelhavam
tal ideologia, v.g., Reynold v. United States [98 US (8 Otto) 145, 164-66
(1878)]: “a prática mórmon da poligamia não é protegida pelas cláusulas
de liberdade de religião da Primeira Emenda”; e também Davis v. Beason [133
U.S. 333, 342-44 (1890)]: “sustenta que as opiniões dos apelantes mórmons sobre
a poligmia, de acordo com o ´senso comum da humanidade´, não constituem credo
religoso, e determina que não só a prática, mas também o ensino ou
aconselhamento da poligamia constituía prática de crime” (op.cit., p. 1179).
Segundo o mesmo autor, a Suprema Corte Americana, no decorrer do século XX,
abandonou seus estreitos parâmetros para englobar o crescente número de crenças
de cunho religioso que nascia na América, algumas delas sendo indiferentes ou
até contrárias à existência de uma divindade. No entanto, continuaram a
aportar alguns elementos de cunho objetivo ao determinar a proteção da free
exercise clause. Para Tribe, “mais promissórias são as analogias dos
funcionalistas, que definem religião em termos do papel que a crença do
indivíduo tem na vida da comunidade” (op. cit., p. 1182, grifou-se).
Ainda aponte-se que doutrina nacional contemporânea trabalha com conceitos
objetivos em matéria religiosa (MORAES, Alexandre. Direito Constitucional.
11ed. São Paulo: Atlas, 2002, p. 73 – “a abrangência do preceito constitucional
é ampla, pois sendo a religião o complexo de princípios que dirigem os
pensamentos, ações e adoração do homem para com Deus, acaba por compreender a
crença, o dogma, a moral, a liturgia e o culto”).
[3] SCHNEIDER, Louis, Problemas de la Sociologia de la religión. In: FARRIS, Robert E. L. (org.), Las Instituciones
Sociales IV. Trad. Joan Faré I Miró. Barcelona: Editorial Hispano Europea, p. 444.
Sobre esse aspecto, cabe a crítica de Nietzsche sobre uma possível “origem”
(Ursprung) da religião. Para ele, é um erro procurar uma origem da religião em
um sentimento metafísico, que estaria presente em todos os homens e conteria,
por antecipação, o núcleo de toda religião, um modelo ao mesmo tempo verdadeiro
e essencial. A religião, assim como o conhecimento, foi fabricada. Em algum
momento da história da humanidade, ocorreu sua “invenção” – Erfindung. Sua
natureza, portanto, não pode ser a mesma dos instintos humanos; não está o
germe da religião dentre os mesmos. (FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas
jurídicas. Rio de Janeiro: Nau Editora, 2003, p. 14-15). Essa concepção,
além de romper com o tradicional conceito objetivo de religião, também renova o
conceito funcional-subjetivo, na medida em que o desloca da esfera individual
existencial e, portanto, metafísica, para a uma idéia de religião como escolha
unicamente individual, decidindo o sujeito se deve partilhar ou não de alguma
crença nesse nível.
[4] SCHNEIDER, Louis, op. cit. 450.
[5] MACHADO, Jônatas E. M., op. cit., p. 215.
[6] Op. cit., p. 1182-1183.
[7] Op. cit., p. 219.
[8] Nos Estados Unidos, os casos Gerhardt vs. Lazaroff [221 F. Supp.
2d 827 (SD Ohio 2001] e Cutter vs. Wilkinson (2005 US Lexis 4346) são emblemas
dessa discussão. Os demandantes são praticantes de religiões não convencionais
(non-mainstream religions) e pleiteavam a atuação governamental para o
exercício efetivo de sua liberdade religiosa dentro dos estabelecimentos
públicos que viviam, visando a resguardar a igualdade em relação ao tratamento
dispensado às outras crenças. In casu, Gerhardt era membro da Church of Jesus
Christ Christian, que guarda ligações com o movimento Aryan Nation, enquanto
que Cutter pertencia ao satanismo. O mesmo se passa com as chamadas religiões
neo-pagãs, como os asatru (ou odinistas) e os wiccans, que apresentam formas
peculiares de manifestar sua religiosidade (EILERS, Dana D. Supreme Court rules
in favor of Pagans. Encontrado em
http://www.witchvox.com/va/dt_va.html?a=usma&c=White &id=9826. Visitado
em 11/04/2011.
[9] No caso Church of Scientology vs. Sweden (05/05/1979), julgado
por um Tribunal Comercial sueco e com revisão rejeitada pela Suprema Corte dos
EUA, a Igreja da Cientologia foi proibida de veicular propaganda de venda de
seu “E-meter”, um instrumento eletrônico que seria capaz de medir o estado
mental do indivíduo e suas variações, sob alegação de violação de direitos do
consumidor. Aqui, distinguiu-se a propaganda meramente informativa da
comercial, caso em que o lucro é o principal escopo do organismo que anuncia.
Nesse território, os direitos de informação e boa-fé objetiva devem ser
minimamente resguardados, malgrado exista a convicção dos membros da igreja que
o aparelho realmente funcione.
[10] Canotilho observa que “alguns autores, como G. Jellinek, vão ao
ponto de ver na luta pela liberdade de religião a verdadeira origem dos
direitos fundamentais. Parece, porém, que se tratava mais da idéia de
tolerância religiosa para credos diferentes do que propriamente da concepção da
liberdade religiosa e crença, como direito inalienável do homem, tal como veio
a ser proclamado nos modernos documentos constitucionais” (CANOTILHO, J. J.
Gomes, Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 3ª.
Ed., 2003, p. 359).
[11] SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 3ª
ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 82.
[12] TEIXEIRA, J.H. Meirelles. Curso de Direito Constitucional. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, p. 300-301. O autor aponta três requisitos para
a aferição da auto-executoriedade de uma norma: a não-designação, pela
Constituição, de órgãos ou autoridades especiais incumbidos à sua execução, a
dispensa de processos executórios especiais e a não-reclamação de novas normas
legislativas que lhe completem o sentido. Em José Afonso da Silva, o direito à
liberdade de religião está na categoria dos de eficácia plena, uma
classificação próxima da adotada por Meirelles Teixeira.
[13] BARROSO, Luis Roberto. O Direito Constitucional e a efetividade
de suas normas – limites e possibilidades da Constituição Brasileira. 7ª. Ed.
Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 99.
[14] Juan Carlos Gavara de Cara explica que a teoria do direito
público subjetivo nasce das distinções clássicas entre Direito Público e Direito
Privado. Disserta que “la diferencia entre el derecho subjetivo privado y
público consiste en que los primeros combinan el poder con una licitud,
mientras que en los segundos únicamente se da un poder. El poder comportaría
relaciones entre el individuo y el Estado, mientras que la licitud comportaría
relciones de unos individuos com otros excluyéndose al Estado de estas
relaciones.(...) De este modo no se puede diferenciar desde los efectos
jurídicos el derecho subjetivo privado del derecho público subjetivo, aunque se
puede concluir que el derecho público subjetivo presenta las mismas
dificultades que el concepto de derecho subjetivo privado, es decir, la
relación entre Derecho subjetivo y Derecho objetivo, la relación entre derecho
subjetivo y el poder de la voluntad o los intereses protegidos y la relación
entre derecho subjetivo y su protección jurídica. Estos tres problemas fueron
tratados por Bühler em su definición de derecho público subjetivo, que
consideraba que la posición jurídica del súbdito la que le permite basar uma
pretensión frente a la Administración en razón de um negócio jurídico o una
proposición jurídica coactiva dictada para la protección de um interes
individual”. (Derechos Fundamentalesy desarollo legislativo – la garantia
del contenido esencial de los derechos fundamentales en la Ley Fundamental de
Bonn.Madrid: Centro de Estúdios Constitucionales, 1994, p. 44-45)
[15] Elementos de Direito Constitucional na República Federal da
Alemanha. Trad. Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris Editor,
1998, p. 298.
[16] Op. cit., p. 199.
[17] Las Libertades Públicas. Madrid: Tecnos, 1990, p.61..
[18] Cf. MACHADO, Jônatas Eduardo Mendes. Op. cit., p. 342. Critica o
autor essa corrente: “curiosamente, esta é uma linha de pensamento que
raramente surge associada aos direitos de confissões religiosas minoritárias,
sem dúvida as que se deparam com uma maior dificuldade em assegurar os
pressupostos necessários para o exercício da liberdade religiosa” (op. cit.,
p.342).
[19] Não se enquadra em qualquer molde de direito originário ou
derivado à prestação, jurídica ou material (cf. SARLET, Ingo. Op. cit., p. 198,
199.
[20] Estaria no âmbito da impessoalidade a decisão sobre que
instituição escolher para destinar algum tipo de recurso ou mesmo contratar
(MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo Moderno. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2003, p. 138). A exigência de exclusividade de organismos de cunho
religioso para realizar certas atividades com financiamento do Estado é
patentemente inconstitucional.
[21] Classificação baseada em Jônatas E. M. Machado (op. cit., p.220 e
segs.)
[22] MACHADO, Jônatas E. M., op. cit., p. 230.
[23] Refere-se, no caso, à eventual declaração de um sujeito sobre
qual religião pertence ou de que não pertence a nenhuma. Se há silêncio, não
haveria meios materiais de o Estado influir nessa liberdade (ORLANDO, Principii
di Diritto Constituzionale. 5ª. Ed.,
Firenze: Ed. Firenze Barbera, 1909, p. 279).
[24] Op. cit, p.11. Nesse sentido,
BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. 21ª. Ed.. Sâo Paulo:
Saraiva, 2000, p. 190.
[25] MIRANDA, Jorge, Manual de Direito Constitucional. 3ª. Ed., tomo
IV. Coimbra: Coimbra Editora, 2000, p. 216.
[26] CRETELLA Junior, José. Curso de Liberdades Públicas. Rio de
Janeiro: Forense, 1986, p. 91-92.
[27] Leia-se, o princípio maior da igualdade formal. A expressão
“republicanista” remete-se aos ideais anti-monarquistas e liberais do século
XIX na Europa e no Brasil.
[28] Como ensina Regina Reyes Novaes: “as identidades e pertencimentos
religiosos não são feitos apenas de argumentos de foro íntimo. A religião se
inscreve na cultura e freqüenta o espaço público, é locus de agregação social”
(Crenças religiosas e convicções políticas: fronteiras e passagens. In:
FRIDMAN, Luis Carlos (org.). Política e Cultura: século XXI. Rio de Janeiro:
Relume Dumará –ALERJ, 2002, p. 63-64).
[29] O leading case foi Reynolds v. United States [98 U.S. (8 Otto)
145 (1878)], que tratava da proibição da poligamia no país, a despeito
das práticas da religião mórmon.
[30] Nathan Glazer explica que a expansão de direitos civis em matéria
de liberdade religiosa guarda duas facetas: é uma ameaça aos valores
tradicionais dos grupos majoritários e também uma preocupação para aqueles que
propugnam pelas idéias de caráter liberal, pois, assim como se permite que
surjam condutas liberalizantes com fulcro em determinada crença, pode-se
legitimar também posturas ultra-conservadoras e isolacionistas dentro de uma
sociedade. (GLAZER, Nathan. A Constituição e a diversidade americana. In:
KRISTOL, Irving et al. A Ordem Constitucional Americana (1787-1987).
trad.José Lívio Dantas. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1988, p. 31).
[31] MACHADO, Jônatas. Op. cit., p.216-217.
[32] Op. cit., p. 1242 e segs. A fluidez do conceito de sinceridade é
traduzia na jurisprudência americana. No caso Thomas v. ReviewBoard [450 US 707
(1981)], a Suprema Corte daquele país determinou que não havia a necessidade de
consistência, lógica, aceitação ou compreensão da fé do apelante pela maioria
dos membros de sua comunidade – que não concordavam com sua visão – para
que fosse legitimada sua escusa teológica. Em Bowen v. Roy [106, S.Ct. 2147
(1986)], a decisão foi no sentido de aceitar a declaração de que o apelante,
que entendia que o ato de inscrição de um número de seguro social junto
ao nome de sua filha macularia seu espírito – algo que não é sustentado por
nenhum grupo oficialmente – estava movido de ímpeto verdadeiramente
religioso. No Brasil, o HC 21129/BA (DJ 16.09.2002 p. 212 – Relator: Ministro
Gilson Dipp), julgado pelo STJ, manteve a continuidade de ação penal por posse
sexual mediante fraude contra um pai-de-santo que, dizendo-se incorporado,
mantinha relações sexuais com suas seguidoras religiosas. Na ementa, decide-se
que “não há que se falar em trancamento da ação penal por atipicidade da
conduta, se os autos dão conta de que o procedimento do paciente reúne os três
elementos necessários para a configuração do crime de posse sexual mediante
fraude: conjunção carnal, honestidade das vítimas e fraude empregada pelo
agente”. A chamada fraude, no direito brasileiro, nada mais é que a ausência de
sinceridade relativamente a sua conduta, adulterando-se a realidade para obter
algum tipo de vantagem (cf. PRADO, Luis Regis. Curso de Direito Penal
Brasileiro, volume 2: parte especial: arts. 121 a 183 – 2ª ed. rev., atual. e
ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 522 e segs).
[33] 322 US 78 (1944).
[34] TRIBE, Laurence. Op. cit., 1244.
[35] MACHADO, Jônatas, op. cit., p. 216.
[36] No caso Church of Scientology v. Sweden, já citado, a questão
gira em torno de que regramento tomar: o da liberdade de religião, surgida de
uma escolha subjetiva e sem possibilidade de valoração de conteúdo por parte do
Estado, ou da proteção ao consumidor, eminentemente objetiva, que o resguarda
da chamada “propaganda enganosa”. Segundo Cláudia Lima Marques, “a
característica principal da publicidade enganosa, segundo o CDC, é ser
suscetível de induzir ao erro o consumidor, mesmo através de suas omissões. A
interpretação dessa norma deve ser necessariamente ampla, uma vez que ´erro´ é
a falsa noção da realidade (...)” (Contratos no Código de Defesa do Consumidor:
o novo regime das relações contratuais. 4ª ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2002, p. 676). Em sede de liberdade de divulgação de crença,
não há que se falar em falsa noção da realidade; esse parâmetro não pode ser
aferido. Os limites tornam-se muito mais tênues.
[37] HC-QO 82424 / RS - Relator: Min. MOREIRA ALVES, DJ
19-03-2004 P:17.
[38] Como as referências em Êxodo e Levítico sobre a eliminação dos
povos que habitavam a terra de Canaã.
[39] MELLO, Celso Albuquerque de. et TORRES, Ricardo Lobo. Arquivos de
Direitos Humanos. v.5. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 391-392.
[40] BVERFGE 24, 236. cf. SCHWABE, Jürgen. Cinqüenta anos de
Jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal alemão.trad. Beatriz Hennig.
Montevideo: Fundação Konrad Adenauer, 2005, p.357.
[41] Art 4º. (Liberdade de crença, consciência e confessional, Recusa
da prestação do serviço militar de guerra)(1) A liberdade de
crença, de consciência e a liberdade de confissão religiosa e ideológica são
invioláveis.(2) É garantido o livre exercício da religião.(3) Ninguém
pode ser obrigado, contra a sua consciência, ao serviço militar com armas.
[42] Recorde-se o ato do bispo Sérgio Von Helde, da Igreja
Universal do Reino de Deus, ao proferir golpes com mãos e pés contra uma imagem
de Nossa Senhora Aparecida, em 12 de outubro de 1995. O episódio rendeu furor
de grupos católicos e gerou debates sobre o limite da liberdade de divulgação
de crença no Brasil. Vale aqui lembrar as palavras de Lo>
[43] Soriano, Aldir Guedes. Op. cit, p. 168.
[44] Um ilícito criminal praticado por algumas correntes islâmicas é a
tradição da fatwa, um decreto de morte contra algum dissidente ou contraventor
da fé muçulmana. Na seara do Direito Administrativo, mais propriamente no
âmbito ambiental, encontram-se as igrejas que excedem, durante a realização dos
cultos, o limite máximo de decibéis permitidos pela legislação. O modo de
concretização da crença, nos dois casos, é feito mediante uma violação da lei.
Entretanto, não é possível a proibição total da religião, apenas das práticas
ilícitas, tal qual dita o princípio da proporcionalidade.
[45] O mesmo é indicado na BVERFGE 24, 236 (Aktion Rumpelkammer),
julgada pelo Tribunal Constitucional Federal Alemão.
[46] Vale citar aqui o art 2, a, da Lei Orgânica 7/1980, disciplinando
a liberdade religiosa na Espanha:Art 2. La libertad religiosa y de culto
garantizada por la Constitución
[47] BULOS, Uadi Lammêgo. Constituição Federal Anotada. 2ª ed., São
Paulo: Saraiva, 2001, p. 100.
[48] MACHADO, Jônatas. Op.cit., p. 230.
[49] Vale lembrar que “na expressão mais extensa de “manifestação
cultual”, englobar-se-iam todas as manifestações que se apresentam seja como
complemento de uma cerimônia principal que se desenrolou no interior da igreja
(caso típico das procissões religiosas tradicionais), seja como uma prática
regular da religião (por exemplo os enterros – sem excluir desta operação a
extrema-unção dos moribundos)” (ROBERT, Jacques. Droits de l´homme et libertes
fondamentales. Paris: Montchréstien, 1994, p. 527).
[50] Op. cit., p. 529.
[51] O tema recorrente no Brasil, nessa seara, é o da violação de leis
do silêncio locais por celebrações em templos religiosos. Na França, o Conselho
de Estado entendeu que manifestações tradicionais, como algumas procissões, não
violam a ordem pública supostamente, não havendo razão para limitação da
atividade por parte do Poder Público (C.E., 10 dezembro 1920, Behague; C.E. 24
dezembro 1920, Loeuillet).
[52] MACHADO, Jônatas. Op. cit., p. 235.
[53] LOPES, José Reinaldo de Lima. Op. cit., p. 316.
[54] As associações no Código Civil e a liberdade de religião.
In.: Revista dos Tribunais. No. 819, jan 2004, p. 78.
[55] CAMPOS, Paulo Sanches. Op. cit., p. 79. O mesmo vale quanto às
normais gerais de direito civil e o princípio do neminem laedere, que decorre da
própria Constituição. É importante ressaltar que as associações podem ser
organizadas como um clube, com direitos a prestação de contas, assembléias para
decisão sobre o ministro religioso e administrador e outros direitos e deveres
inscritos no Código Civil. A questão é se são obrigadas ou não a fazê-lo.
[56] “Ningún miembro de una asociación religiosa puede estar
atado por otros lazos que no sean los que proceden de la esperanza cierta de la
vida eterna. Una iglesia es, entonces, una sociedad de miembros que se unen
voluntariamente para esta finalidad” (LOCKE, John. Op. cit., p. 9.)
[57] Op. cit., p. 81.
[58] MACHADO, Jônatas. Op. cit., p. 245.
[59] Em 26/04/2005, a Primeira Igreja Batista de Goiânia foi obrigada
a celebrar um casamento por ordem judicial. O pastor da igreja havia se
recusado a realizar a cerimônia porque a nubente estava grávida, regra
aplicável a todos os membros da igreja (Fonte:
http://www.mp.go.gov.br/jornais/comments.php?id=681, visitado em 11/06/02).
Entende-se que essa decisão violou os princípios da liberdade religiosa
coletiva ao adentrar em terreno absolutamente afeito à denominação evangélica.
[60] MACHADO, Jônatas. Op. cit., p. 288.
[61] A classificação é dada e exemplificada pelo site da Comissão de
Direitos Humanos de Ontário, Canadá, órgão governamental que cuida da
vigilância sobre guarda dos direitos fundamentais dentro do estado, no
artigo Policy on Creed and the Acccomodation of Religious Observances
(disponível em
http://www.ohrc.on.ca/english/publications/creed-religion-policy.shtml,
visitado em 11/04/2011).
[62] O problema da acomodação é afeito a vários princípios e
teorias do direito contemporâneo. A razoabilidade na adaptação de minorias
religiosas é uma exigência fundamental, e os três critérios nada mais fazem que
esmiuçar essa realidade. O interessante, aqui, é o segundo critério, que exige
que o agente obrigado a acomodar procure meios, inclusive econômicos, de
fazê-lo, ainda que não os tenha no momento inicial da verificação da
desigualdade, mas sem que isso possa prejudicar sua higidez financeira.
Inevitável, aqui, não comparar com o princípio da reserva do possível, que,
como pode se ver, não atua apenas nos chamados direitos de segunda geração, ou
direitos positivos. Na verdade, como bem afirma Ingo W. Sarlet, todos os
direitos fundamentais “são, de certo modo, sempre positivos, no sentido de que
também os direitos de liberdade e os direitos de defesa em geral exigem – para
sua realização – um conjunto de medidas positivas por parte do poder
público”(op. cit., p. 275). E não só do Poder Público, como se pode depreender,
pois o direito fundamental à liberdade religiosa também vincula os
particulares, como no caso dos empregadores que se recusam a respeitar as
vestimentas e costumes religiosos dos empregados. Como afirma Daniel Sarmento:
“De fato, a extensão destes direitos à esfera privada traduz a intenção de
redefinir as relações travadas na sociedade civil, no mercado e na
família, partir dos valores humanitários de igualdade, liberdade e
solidariedade, inscritos nos textos constitucionais. Trata-se, portanto, de
algo que os pós-modernos não hesitariam em caracterizar como uma
´metanarrativa´; como uma afirmação do universal em detrimento do particular”
(Direitos Fundamentais e Relações Privadas. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2004,
p. 63).
[63] Fonte:
http://www.ohrc.on.ca/english/publications/creed-religion-policy.shtml,
visitado em 10/06/06.
[64] Um problema que visitava em demasia os tribunais canadenses era o
da religião Sikh, oriunda da Índia. Os membros dessa religião tem como tradição
a utilização de roupas específicas, turbante (no caso dos homens), e também uma
espécie de adaga cerimonial, chamada kirpan. As cortes canadenses já
pacificaram o uso do kirpan como religioso, retirando qualquer aplicação de
códigos de restrição a armas brancas [ver Singh v. Workmen's Compensation Board
Hospital and Rehabilitation Centre (Ontario Bd. of Inquiry 1981) e Pandori v.
Peel Board of Education, 47 O.A.C. 234]. Na Inglaterra, a questão foi resolvida
por lei (Criminal Justice Act, 1988, c. 33 Pt. XI s. 139), excetuando
nominalmente o uso de espadas para fins cerimoniais como permitido.
[65] No caso Commission scolaire régionale de Chambly v. Bergevin
(1994) 22 C.H.R.R. D/1 (S.C.C.), três professores judeus de uma escola católica
requisitaram sua ausência durante o feriado do Yom Kippur. A escola permitiu
que eles faltassem as aulas, mas que não fossem remunerados por tal dia, como o
seriam se fosse num feriado cristão. A decisão judicial sobre essa lide foi no
sentido de permitir que eles recebessem como se tivessem trabalhado no dia, à
semelhança dos feriados religiosos reconhecidos por lei (statutory holidays).
[66] Expressão no texto Free Exercise of
Religion: The issue: When may the government enforce a law that burdens an
individual's ability to exercise his or her religious beliefs?, disponível no
site http://www.law.umkc.edu/faculty/projects/ftrials/conlaw/freeexercise.htm,
visitado em 10/06/2006.
[67] 98 U.S. 145.
[68] 494 U.S. 872. No caso, Alfred Smith era membro de uma comunidade
nativa indígena que tinha por costume consumir o peyote, uma substância
entorpecente de uso controlado, durante cerimônias sagradas. Tomado
conhecimento da prática, Alfred foi demitido de seu emprego por má-conduta
(misconduct), e, portanto, sem direito a receber benefícios de
seguro-desemprego pelo estado de Oregon. Implacável, a Suprema Corte manteve
decisão anterior em negar esses benefícios.
[69] Sherbert v. Verner. 374 U.S. 398 (1963). Adeil Sherbert,
adventista do 7o dia, foi demitida por não querer trabalhar aos sábados, dia
sagrado para sua religião. Com base nessa postura, o governo negou-lhe
benefícios de seguro-desemprego. A Suprema Corte, porém, invalidou esse ato e
condenou o estado a pagar as devidas verbas.
[70] Wisconsin v. Yoder, 406 U.S. 205 (1972). Jonas Yoder era
membro da antiga ordem dos Amish, grupo religioso que se recusa a manter
contato e submeter-se às instituições do Estado norte-americano. Crêem estes
que as crianças devem preservar-se do contato com o mundo, sendo educados em
casa por seus pais. A Suprema Corte decidiu pela manutenção da recusa dos amish
em matricular seus filhos em escolas primárias e secundárias do Wiscosin.
[71] Segundo ele, “é necessário que as autoridades públicas provem que
se está perante a prossecução de uma finalidade estadual ponderosa, e que a
restrição ao direito à liberdade religiosa é o meio menos restritivo para alcançar
o fim em vista” (MACHADO, Jônatas, op. cit., p. 313).
[72] 604 P.2d 1068.
[73] Jensen v. Quaring, 472 U.S. 478 (1985).
[74] Goldman v. Weinberger, 475 U.S. 503 (1986).
[75] Escetuando os casos híbridos e os que envolvem situação de
desemprego (ver site http://www.law.umkc.
edu/faculty/projects/ftrials/conlaw/freeexercise.htm)
[76] Seção 3: Proteção do exercício de religião de pessoas sob
guarda do Estado (institutionalized persons):(a) regra geral: nenhum governo
deve impor ônus substancialmente elevado (substantial burdeni) na prática
religiosa de uma pessoa que resida ou esteja confinada em uma instituição
estatal, como definido na Seção2 do Civil Rights of Institutionalized Persons
Act (42 U.S.C. 1997), mesmo que o ônus resulte de uma regra de aplicação geral,
ao menos que o Estado demonstre que aquela imposição:(1) é motivada por
relevante interesse público (compelling governmental interest); e (2) é o modo
menos restritivo para atingir aquele relevante interesse público. (b) Escopo da
aplicação- Esta seção se aplica em qualquer caso que: (1) o ônus
substancialmente elevado é imposto num programa ou atividade que recebe
financiamento do governo federal; ou (2) o ônus substancialmente elevado, ou a
sua retirada, afetem o comércio internacional, interestadual ou com tribos
indígenas.
[77] Na França, o problema da chamada “laicidade positiva”
(laïcité positif) também não é bem aceito pelos tribunais (ROBERT, Jacques. op.
cit., p. 523-524). A Assembléia Nacional, por sua vez, caminha numa direção
ainda mais radical, vide o caso da exigência da retirada do véu por
alunas muçulmanas em escolas públicas do país, em dezembro de 2003. Na
Alemanha, em 01/04/2004, o Estado Baden-Württemberg aprovou uma lei que proíbe
o uso do véu islâmico como símbolo político nas escolas públicas, mas continua
admitindo crucifixos, o hábito das freiras e símbolos judaicos nas salas de
aula (notícia veiculada em
http://www.dw-world.de/dw/article/0,2144,1158621,00.html, visitado em
11/04/2011).
[78] Julgada em 12/11/86. Ementa: REPRESENTAÇÃO DE
INCONSTITUCIONALIDADE. ART. 144 DO CE. HORARIO DE VOTAÇÃO. OBJEÇÃO DE
CONSCIENCIA. MEDIDA CAUTELAR. PRESSUPOSTOS (INOCORRENCIA). PARA QUE SE CONCEDA
A MEDIDA CAUTELAR RECLAMA-SE NÃO SÓ A OCORRENCIA DO 'PERICULUM IN MORA' QUANTO
O 'FUMUS BONUS IURIS', RELEVÂNCIA DA QUESTÃO JURÍDICA QUE, SOB O PRISMA
PROPOSTO, NÃO SE VERIFICA NA HIPÓTESE. MEDIDA CAUTELAR INDEFERIDA.
[79] Cabe, por último, apontar a existência da ADI 3118/ES, que
deliberará acerca da constitucionalidade de lei capixaba (6.667/01) que “dispõe
sobre a liberdade de consciência, convicção religiosa e estabelece a vedação de
concursos públicos, vestibulares, aulas e provas no dia escolhido para descanso
e atividades religiosas” (ementa).
[80] O termo é de José Afonso da Silva. Ele classificou os modelos de
relação Estado-Igreja em três: o da confusão, o da união e o da separação (op.
cit., p. 250). Norberto Bobbio chamará o sistema de confusão de reductio
ad unum, pois pretende-se reduzir as duas figuras, Igreja e Estado, a um só,
sendo chamado de teocracia quando se reduz o segundo ao primeiro, e
cesaropapismo, quando se reduz o primeiro ao segundo. (Teoria do Ordenamento
Jurídico, 10ª ed., Brasília: UnB, 1999, p. 181).
[81] Desnecessário dissertar sobre a influência do Cristianismo na
modificação das formas de governo no ocidente. Quando Cristo dita “Daí a César
o que é de César, e a Deus, o que é de Deus” (Lucas 20:25), cinde duas
existências, a mundana e a espiritual, discernindo o governo da religião.
Somado a isto, a doutrina da evangelização, baseada no texto de Mateus 28:19
(“Portanto, ide, ensinai todas as nações, batizando-as em nome do Pai, do
Filho, e do Espírito Santo”), impõe a necessidade de expandir o cristianismo
para as fronteiras exteriores do Império e considerá-lo a religião mundial,
sobrepairando todos os reinos (não por menos a Igreja Católica chama-se dessa
forma – katholicos, em grego, quer dizer universal). Dessa maneira, ao menos no
Ocidente, considerou-se a Igreja como um ente apartado da figura do monarca –
basta lembrar a idéia das três ordens medievais – os que oram (religiosos), os
que combatem (nobres) e os que trabalham (camponeses).
[82] Jacques Robert aponta quatro momentos no processo de separação do
Estado com a Igreja na França. Primeiramente, o estado de união, em que se
ostentava uma religião de Estado (religion d´Etat). Posteriormente, as
incertezas revolucionárias, em que se tentou “afrancesar” a religião católica,
separando-a de Roma, para alguns anos mais tarde, tomar-se uma postura
radicalmente contrária ao cristianismo da Santa Sé, propondo-se uma “religião
nacional” (les cultes nationaux) para substituir a antiga O terceiro
momento seria o concordatário, em que o Estado se propõe a celebrar pactos com
as crenças mais expressivas do país, até chegar ao momento atual, que é o da
separação (divorce) entre Igreja e Estado (op. cit, p. 511 e seg.). De qualquer
maneira, o modelo francês de laicidade é peculiar, na medida em que procura
uniformizar as diversas crenças aos padrões nacionais de civilidade. Isso ficou
claro, nos últimos anos, com a lei que proibia o uso do véu em escolas públicas
por alunas muçulmanas.
[83] O princípio geral do regime de concordata é o da liberdade
religiosa. Todavia, uma distinção é estabelecida entre os cultos: alguns são
simplesmente lícitos, outros gozam de um reconhecimento oficial. Na França,
entre 1801 e 1905, chegou-se a elevá-los a um status de serviço público
(service public), sendo o sacerdócio financiado pela Fazenda (ROBERT, Jacques.
op. cit, p. 513) . Essa categorização lembrava a do regime absolutista, com a
diferença de serem diversas manifestações religiosas patrocinadas. Na Espanha,
a separação é sustentada constitucionalmente, no art 16, 3., que diz: “Ninguna
confesión tendrá carácter estatal. Los poderes públicos tendrán em cuenta las
creencias religiosas de la sociedade española y mantendrán las conseguientes
relaciones de cooperación com las Iglesias Católica y las demás confesiones”. O
regime de concordata é esmiuçado pela Lei de Liberdade Religiosa, em seu art
7º: “art. 7º El Estado, teniendo em cuenta las creencias religiosas existentes
em la sociedad española, estabelecerá, em su caso, Acuerdos o Convenio de
cooperación com las Iglesias, Confesiones y Comunidades religiosas, inscritas
em el registro que por su âmbito y número de creyentes hayan alcanzado notório
arraigo em Espana. Em todo caso, estos acuerdos se aprobarán por Ley de las
Cortes Generales”.
[84] Nas palavras de Iso Chaitz Scherkerkewitz: “O fato de ser um país
secular, com separação quase que total entre Estado e Religião, não impede que
tenhamos em nossa Constituição algumas referências ao modo como deve ser
conduzido o Brasil no campo religioso. Tal fato se dá uma vez que o
Constituinte reconheceu o caráter inegavelmente benéfico da existência de todas
as religiões para a sociedade, seja em virtude da pregação para o
fortalecimento da família, estipulação de princípios morais e éticos que acabam
por aperfeiçoar os indivíduos, o estímulo à caridade, ou simplesmente pelas
obras sociais benevolentes praticadas pelas próprias instituições” (O direito
de religião no Brasil. Revista da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo, n.
45-46, jan-dez, 1996, p. 7)
[85] A política no interior das nações. Brasília: Editora Universidade
de Brasília, 1982, p. 457.
[86] Cumpre distinguir o que se tem entendido como laicidade e
laicismo. O primeiro é aqui identificado como uma atitude de neutralidade
do Poder Público perante as diversas manifestações religiosas. O segundo é uma
ideologia ou filosofia que não toma por base qualquer referência teológica
transcendente ou verdade metafísica (MACHADO, Jônatas. Op. cit, p. 306).
[87] É considerado de forma dúplice, tanto para proteger o Estado de
influências religiosas, como para proteger as religiões da influência estatal.
[88] SORIANO, Aldir Guedes. Op. cit., p. 78.
[89] MACHADO, Jônatas. Op. cit., p. 196.
[90] No entanto, anote-se algumas experiências em que a liberdade
religiosa andou supostamente separada do princípio da laicidade. Nos países
nórdicos, não há separação entre o Estado nacional e a Igreja Luterana local,
mas se verifica o mais pleno respeito ao direito à liberdade religiosa. No
regime comunista, o Estado não é apenas separado, mas inimigo das experiências
religiosas – para Marx, a religião é o ópio do povo – e, assim, o homo
sovieticus não deveria ter o direito de professar a crença que fosse, apenas o
dever de abraçar o ateísmo (cf. SORIANO, Ramón. Las liberdades públicas. Madri:
Tecnos, 1990. p. 84.)
[91] A afirmação histórica dos direitos humanos -3ª ed. ver. e ampl.
São Paulo:Saraiva, 2003, p. 310.
[92] Salo de Carvalho ensina que a secularização é a principal
característica dos regimes republicanos (CARVALHO, Salo et CARVALHO, Hamilton.
Aplicação da Pena e Garantismo. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2002, p. 14).
[93] Para Irving Kristol, “a secularização e o ´adelgaçamento´ cada
vez maiores de nossa ´religião civil´ , embora ampliando seu raio de ação, não
apenas a vulgarizou como a enfraqueceu. A vulgarização toma a forma de conceber
a sociedade americana, e a sociedade burguesa de um modo geral, como pouco mais
que uma ´sociedade aquisitiva´ onde floresce a ´livre empresa´. Isso provoca um
ânimo antiburguês entre as pessoas mais bem educadas, que vêem tal sociedade
como uma versão moderna da ´cidade dos porcos´ de Platão, ao mesmo tempo em que
incita a juventude a um hedonismo libertário que, pelos padrões tradicionais
não está muito longe da licenciosidade. Simultaneamente, a população maior se torna
insegura de seus ´valores´ (como se diz agora), e seu compromisso com nossas
tradições constitucionais, apesar de aparentemente firme, ganha fragilidade. A
verdade, que corremos o risco de esquecer, é que uma ´religião civil´ tanto
engendra como exige o endosso utilitário. Foi esse endosso moral que sempre
levou os americanos a acreditarem que sua ordem constitucional não é apenas
eficiente e exeqüível, mas também justa. Para que tal endosso prevaleça, faz-se
mister que a ´religião civil´ seja nutrida, quando nada no mínimo, por suas
raízes religiosas” (O espírito de 87. In.: KRISTOL, Irving et al. A
OrdemConstitucional Americana (1787-1987), trad, José Lívio Dantas. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 1988, p. 12-13). A direita moderna ainda vale-se
do princípio do idem cives et christianus (o bom cidadão é o bom cristão).
[94] Op. cit., p. 347.
[95] Op. cit., p. 1188.
[96] É a forma utilizada na França (ROBERT, Jacques, op. cit, p. 514).
[97] Op. cit., p. 1193.
[98] 403 US 602 (1971).
[99] Op. cit., p 315.
[100] Essa frase tornou-se célebre em julgados da Suprema Corte em que
se questionava a natureza e o conteúdo de termos do tipo “ordem pública” ou
“obscenidade”.
[101] 465, U.S, 668 e 771 (1984).
[102] Foi desenvolvido pelo Justice Kennedy no caso Engel v. Vitale
[370 U.S. 421 e 431 (1962)].
[103] NANDY, Ashis. A política do secularismo e o resgate da tolerância
religiosa. Trad. Roberto Cataldo Costa. In.: BALDI, César Augusto. Direitos
Humanos na sociedade cosmopolita. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 381. O
sociólogo indiano revela que, na Ásia, a idéia de secularismo é sentida de duas
formas. A primeira é a concepção oficial, dos dicionários, indicando “uma
área da vida pública onde a religião não é admitida”. A outra, segundo ele não
existente no ocidente, seria o “respeito a todas as religiões, assim
sendo geralmente representado por figuras públicas. Explicando melhor, essa
idéia de secularismo implica que, embora a vida pública possa ou não ficar
livre da religião, ela deve dar espaço para um diálogo contínuo entre as
tradições religiosas, e entre o religioso e o secular. Ou seja, em última
análise, cada fé de maior relevância na região traz em si uma versão caseira de
outras fés, tanto como crítica interna quanto na forma de um lembrete da
diversidade da teoria da transcendência” (grifos no original, op. cit, p. 385).
[104] Op. cit., p.381-382.
[105] Notícia divulgada em
http://hrw.org/english/docs/2006/03/01/china12740.htm, visitado em 11/04/2011.
[106] Refah Partisi e outros v. Turkey (13.02.2003). Disponível em
http://www.echr.coe.int/Eng/Press/2003/ feb/RefahPartisiGCjudgmenteng.htm,
visitado em 11/04/2011.
[107] Notícia disponível em
http://hrw.org/english/docs/2005/11/16/turkey12038.htm, visitado em 11/04/2011.
Autor
-
Procurador Federal, graduado em Direito pela UERJ e especialista em Direito Público pela UNB.
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