segunda-feira, 19 de maio de 2014

CONSIDERAÇÕES ACERCA DA LIBERDADE RELIGIOSA E DO ESTADO LAICO - POR FELIPE GERMANDO ACICEDO CIDAD


Considerações acerca da liberdade religiosa e do Estado laico


Publicado em 05/2014. Elaborado em 05/2011.

Traçado teórico sobre os principais conceitos relativos ao problema do Estado laico e da liberdade religiosa no mundo.

INTRODUÇÃO

A liberdade religiosa e a ideia de Estado Laico são temas esquecidos pelos juristas brasileiros contemporâneos. São princípios socialmente aceitos e seus limites raramente são testados pelo Poder Publico, ou assim ele o faz crer. A maior parte da literatura brasileira em Direito afasta maiores análises sobre esses conceitos, que são tratados com a maior seriedade pelas tradições jurídicas ocidentais.

Talvez a obra que melhor trate essa questão dentro da tradição jurídica luso-brasileira seja o do português Jônatas Eduardo Mendes Machado, "Liberdade Religiosa numa Comunidade Constitucional Inclusiva: dos direitos da verdade aos direitos dos cidadãos". Esse autor caminha nas diversas veredas do constitucionalismo norte-americano, que enfrenta ferozmente as questões relativas ao Estado Laico até hoje. De um lado, propõe revisitar a jurisprudência da Suprema Corte daqueles pais e as mudanças de paradigma que se deram no decorrer de seus dois séculos de existência. Nesse meio, traça um paralelo com o pensamento jurídico europeu continental, que sofreu diretamente com conflitos religiosos desde a Idade Média e hoje sofre um tipo de refluxo pós-colonial com a chegada de muçulmanos de todas as partes da África e Oriente Médio.

Diante dessa linha, com exemplos mais concretos de nossa realidade tupiniquim, nossos constitucionalistas mais famosos se debruçam, por via reversa, sobre essas questões, quando tratam de ponderação de interesses, direitos fundamentais e limites da atuação estatal. Daniel Sarmento e Ingo Sarlet, expoentes da tradição jurídica carioca e gaúcha, respectivamente, revelam problemas que esses direitos e interesses enfrentam quando são colocados ao lado dos princípios da igualdade e da liberdade de expressão.

Além disso, a perspectiva da eficácia horizontal dos direitos fundamentais traz novas luzes sobre o direito a liberdade de religião. Os direitos das minorias, em foco com a Carta de 1988, ganham forca para abranger a crença (ou descrença) de todos.  Novos conflitos, com novas soluções, são abordadas neste trabalho.



1.  CONCEITO DE RELIGIÃO

A primeira indagação que se deve fazer acerca do tema liberdade religiosa é a da extensão jurídica do próprio vocábulo religião, ligado ao valor maior da liberdade. Seu conteúdo semântico, como aponta Jônatas E. M. Machado[1], conduz a um campo vago, sem uma estrutura especificamente relacionada ao Direito. Com efeito, os textos constitucionais e legais brasileiros e estrangeiros não costumam abordar o tema diretamente, relegando as situações-limite para a decisão no caso concreto. O autor recomenda a extração do sentido normalmente dado na sua corrente utilização extraconstitucional, principalmente nos domínios da Sociologia.

Louis Schneider, sociólogo da religião, analisa o tema através de quatro elementos funcionais[2]. O primeiro guarda proximidade com o fato de a religião não ser algo racional, a despeito de antiga tradição na Sociologia em considerar ao fenômeno religioso como passível de ser intelectualmente construído. Para o autor, a noção de religião comportaria “um conjunto de actividades sociales que no son ´estúpidas´ ni ´inteligentes´, ni ´racionales´, ni ´irracionales”. Seriam tão racionais como um aperto de mãos entre velhos amigos ou o impulso sexual em um homem adulto[3].

O segundo elemento relaciona a religião e o postulado de unidade ou interconexão social. Escreve Schneider:

“El presupuesto del que parte el funcionalismo cuando subraya la unidad en la religión podría formularse de esta forma: Contemplada la religión desde el punto de vista de los actores implicados em um sistema religioso es evidente que, em tanto la religión a la que ellos se adhieren esté más o menos intacta, los dogmas y creencias de ésta, tomados como punto de partida, no les atraen únicamente por su condición de dogmas o creencias. Los dogmas llevan consigo la atracción que proviene de prácticas, influídas a sua vez por la emoción, com lo que el sistema como um todo exibe la interacción de sus partes, de modo tal que ninguna parte ejerce uma atracción ´independiente´ o meramente intrínseca, sino que cada uma se vê afectada constantemente por las otras[4].”

A “unidade” não deve ser confundida, porém, com a “integração social”, terceiro elemento funcional religioso. Esta recai sobre a solidariedade humana, sobre a coesão dos indivíduos que participam de um sistema religioso e sobre a mitigação das hostilidades entre eles, visando sempre a valores comuns. Os sujeitos participantes da crença conjunta vêem na estrutura erigida sobre a mesma uma forma de dignificar os laços sociais ali existentes.

Por último, o autor aponta a questão dos “usos” da religião e dos problemas que as manifestações das outras funções desenvolvem, particularmente no que tange à utilização da religião como forma de controle social. A função da religião como instrumento de manutenção de determinados estratos sociais vêm sendo objeto de críticas da burguesia desde o século XVIII, e convergem para a questão central da relação entre o Estado e as religiões minoritárias.

O funcionalismo trouxe o espectro subjetivo para a avaliação da situação normativa de uma suposta religião. A função determinada do conjunto de ritos e crenças que une os indivíduos em comunidades parece refletir melhor o panorama religioso do século XXI. Não mais os conceitos pré-determinados de religião, com fulcro nos modelos tradicionais mundiais, mas um conceito baseado na determinação subjetiva dos valores agregados pelo indivíduo diante do corpo religioso será relevante para a definição do que é ou não religião no Direito.

Sem embargo, como bem revela Jônatas Machado[5], o funcionalismo pode apresentar problemas de caráter prático. A inquirição judicial sobre a veracidade das convicções de um indivíduo é um processo tão inquisitorial e inadmissível quanto aquele que se propõe a investigar a natureza e o conteúdo objeto das doutrinas. Não é possível perceber o nível de sinceridade do sujeito em relação a sua crença, e não cabe ao julgador fazer exame profundo sobre a razoabilidade ou viabilidade da mesma.

O dilema caminha para outra dificuldade em torno do conceito funcional-subjetivo de religião: a fluidez de sua incidência. Como bem observa Laurence Tribe, “a generosa definição funcional parece classificar qualquer filosofia radical como religião, como seria o marxismo da mesma forma que o metodismo[6]”. Com efeito, se tomado o funcionalismo a cabo, qualquer tipo de união em torno de uma ideologia que abrace tais funções primordiais de uma religião seria considerado como tal.

Jônatas Machado defende um terceiro conceito, tipológico, de religião. Ele não seria demasiadamente abrangente como o anterior, evitando abusos, mas também não seria restritivo como o modelo objetivo[7]. Seria um conceito com “contornos esfumados”, apontando como critérios, ainda que meramente indicativos, os conceitos anteriores, o valor social aparente da crença, o número de adeptos, etc.

Note-se que no Brasil não há legislação específica que incida sobre esse conceito. Em Portugal e na Espanha, da mesma maneira, não há qualquer conceito positivado de religião; há outra solução normativa, que é feita por meio negativo. A Lei Orgânica de Liberdade Religiosa espanhola, de 1980, em seu art 3, §2º, dita que “quedan fuera del âmbito de protección de la presente Ley las actividades, finalidades y Entidades relacionadas com el estudio y experimentación de los fenômenos psíquicos o parapsicológicos o la difusión de valores humanísticos o espiritualistas u otros fines análogos ajenos a los religiosos”.

O emaranhado teórico acerca da natureza sociológica da religião refrata no mundo jurídico através da determinação sobre qual a real incidência dada às cláusulas constitucionais de proteção às expressões religiosas minoritárias. A região nebulosa que aparece neste ponto é exatamente sobre as chamadas “quase-religiões”, ou as crenças que se aproximam dos conceitos supra apresentados[8], mas que não estão sob o invólucro da liberdade religiosa propriamente dita. No caso das “religiões ufológicas”, ou mesmo de alguns grupos de estudos de fenômenos psíquicos no Brasil, o limiar entre religião e ideologia parece ser tênue, não comportando soluções pré-definidas[9].

Por fim, note-se que toda a discussão perde o sentido se considerarmos que a liberdade de religião é uma especificidade da liberdade de opinião, também consagrada pelas constituições democráticas contemporâneas, caso em que haveria amparo legal, de uma forma ou de outra. A distinção dar-se-á mais adiante.



2 NATUREZA JURÍDICA DA LIBERDADE RELIGIOSA

A liberdade é um valor albergado pelo Direito, que pode ser expresso na faculdade de decidir ou agir segundo a própria determinação do indivíduo. Dentro da esfera religiosa, ela é consubstanciada no poder de escolha e prática de uma crença ou série de ritos que funciona como elemento de congregação social. Em meio às categorias jurídicas, a liberdade religiosa têm sido tratada, primeiramente, como um direito fundamental.

No conjunto das cláusulas da Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, a liberdade de religião surge como uma evolução da situação jurídica de tolerância experimentada pela Europa nos séculos anteriores[10]. Aparece não mais como uma concessão estatal ou como um objeto de concordata forçada em que os signatários se comprometem a suportar um ao outro. Revela-se como um dos direitos fundamentais de primeira geração, dotado de inalienabilidade e universalidade, como proclamavam os jusnaturalistas.

A “fundamentalidade” do direito à liberdade religiosa no Brasil traduz-se em dois aspectos[11]. O primeiro, formal, conduz à idéia de que esse direito faz parte da Constituição escrita, situando-se no cume de todo o ordenamento jurídico. Por dedução, sua modificação sofre as limitações de uma norma dessa natureza, denominada de cláusula pétrea. Também desse prisma decorre à idéia das normas diretamente aplicáveis, vinculando diretamente os entes públicos e privados. Enquadra-se, aqui, a liberdade religiosa como uma norma auto-executável (self-executing), na perspectiva da tradicional doutrina norte-americana[12]. O aspecto material remete à noção de parte integrante da Constituição material, que abrange as decisões fundamentais sobre a estrutura básica do Estado e da sociedade.

Como norma definidora de direito[13], essa liberdade pública, como chamam os franceses, figura também na qualidade de um direito público subjetivo[14]. Nesse sentido, a liberdade religiosa pode ser demandada perante o Estado em um sentido negativo, numa visão clássica, abstencionista, dos direitos fundamentais. Nas palavras de Konrad Hesse[15]:

“Como direitos subjetivos, eles garantem a liberdade de confessar uma fé ou uma ideologia, individual ou comunitariamente, ou também, de recusar de se calar sobre ambas, eles fundamentam direitos à proteção diante de perturbações e à omissão de qualquer coação à fé, direta ou indireta, ou da coação para uma confissão ideológica”.

Por esse texto entende-se que o direito à liberdade de religião pode ser exercido de forma coletiva ou individual, e protegido da mesma maneira. Todas as ações concernentes a entidades representativas de coletividades são plenamente cabíveis para tutelar direitos oriundos de crença religiosa ameaçada ou violada. Diametralmente, um único membro de uma comunidade que se sinta aviltado por ato contrário a sua religião pode ajuizar demanda em face do agressor, sem necessidade de respaldo do grupo vítima da atividade ilícita.

Mais que um direito fundamental, a liberdade de religião é considerada, por Jônatas Machado, também uma garantia constitucional, e espraia-se em dois importantes elementos dogmáticos. “Dele procedem, a um tempo, direitos subjetivos de defesa e normas definitórias de competências negativas estaduais[16]”, conclui o jurista português. Não só o direito material, mas sua garantia procedimental está englobada pelo arcabouço teórico do direito de liberdade de religião.

Aldir Guedes Soriano, a seu turno, concebe essa liberdade pública como um princípio constitucional independente, apoiado na doutrina do espanhol Ramón Soriano[17]:

“La libertad religiosa – se dice – es el principio jurídico fundamental que regula las relaciones entre el Estado y la Iglesia en consonancia com el derecho fundamental de los indivíduos y de los grupos a sostener, defender y propagar sus creencias religiosas. De manera que el resto de los princípios, derechos y libertades em matéria religiosa son coadjuvantes e solidários del principio básico de la libertad religiosa”.

Por fim, alguns doutrinadores desenvolveram a idéia de um direito à liberdade de religião de caráter positivo, propugnando que não subsiste apenas o conceito de um direito de abstenção, negativo, tradicionalmente adotado para esse tipo de categoria jurídica. A atuação positiva estatal, no sentido de promover a eficácia da liberdade de religião, dar-se-ia mormente através de incentivos de caráter financeiro destinados a entidades religiosas aptas a recebê-los[18]. Essa idéia tangencia os fundamentos da liberdade de religião; no entanto, já não se fala de um direito fundamental aqui, de um dever de o Poder Público fornecer meios materiais para a manutenção de atividades religiosas[19]. Com mais razão, extrapola-se deste âmbito normativo qualquer exigência de “parceria” com entes privados para a realização de alguma das atividades-fim da Administração Pública.[20].             

3. CONTEÚDO DO DIREITO À LIBERDADE RELIGIOSA

Inúmeras manifestações de ordem física e psíquica podem ter origem no fenômeno religioso. O culto privado dentro do lar, o proselitismo dentro do ambiente laboral, a interdição de avenidas para grandes reuniões de fiéis, todos estes fatos têm relevância para o direito e estão abarcados dentro do conceito maior de liberdade religiosa.

De início, cabe distinguir as manifestações do direito à liberdade de religião individual. Ele pode ser entendido como liberdade de crença, liberdade de atuação conforme às crenças e  liberdade de culto[21]. O primeiro, de foro mais íntimo, é o que revela o menor número de conflitos na atualidade. A liberdade de culto, por sua vez, representa maiores problemas quando é exercida pelas comunidades religiosas e acaba por afetar, de alguma forma, a universalidade dos cidadãos. A liberdade de atuação conforme às crenças, que deveria, num primeiro plano, representar o reflexo exato da liberdade de crença, é a que mais tem gerado discussões na atualidade. O direito à proteção da liberdade de religião fica mais proeminente quando se fala na exteriorização de condutas minoritárias e não convencionais, muitas vezes emanadas de um único indivíduo em meio a uma grande quantidade de pessoas. Nesse esteio, soluções normativas abstratas não costumam lograr grande êxito; o Judiciário ergue-se numa função fundamental de equacionar grande parte das tensões oriundas de condutas incômodas aos standards maioritários.

3.1 LIBERDADE DE CRENÇA

É a liberdade de acreditar (ou não) em algum tipo de realidade religiosa. No âmago do indivíduo, permite-se a decisão sobre qual religião seguir, qual crença tomar para si como verdadeira, inclusive com a possibilidade de negar ou mesmo não se importar com qualquer experiência religiosa. As opções consideradas nesse domínio são da “essência íntima e pessoal do homem[22]”, sendo defeso qualquer ato que as violente[23]. A religião, como manifestação ancestral da humanidade, recebe, nesse ponto, a proteção jurídica sob seu aspecto mais fundamental e, de alguma forma, absoluto.

A Constituição de 1988 traz o termo “liberdade de consciência” (art. 5º., VI), que, para Aldir G. Soriano[24], abarcaria a liberdade de crença – que compreende o direito de aderir a uma religião e também modificar sua postura a qualquer tempo – e o direito de crer ou não crer em qualquer religião, enunciando, então, a prerrogativa de os ateus e agnósticos manterem-se alheios ao fenômeno religioso. Jorge Miranda coaduna com essa posição, e, inclusive, determina outra diferença, baseado no fato de a liberdade de consciência ser dirigida ao foro individual, ao passo que a outra teria uma dimensão social e institucional[25] – decorrentes, por óbvio, da idéia de religião como fator agregador. Data maxima venia, a visão do constitucionalista português não alcança situações relevantes como associações de grupos anti-religiosos ou que difundem teorias agnósticas e relativas ao ateísmo. Os elementos social e institucional a que se refere não são próprios apenas das religiões, mas pertencem a todo grupo que se une em torno de uma idéia. Além disso, cabe ressaltar que não há lógica em considerar um sem o outro, pois seus efeitos e disciplina no direito são idênticos. O fato de um deles conter o exato conteúdo do outro sem um terceiro conceito para contrapor já demonstra a desnecessidade de diferenciação. Neste trabalho, são considerados sinônimos.

Os ordenamentos jurídicos democráticos, no início, conceberam esse direito sem restrições, visto que é eminentemente de cunho pessoal. Em se tratando de um direito que dialoga constantemente com o princípio da igualdade, geralmente não se cogita discipliná-lo, pois, ao Estado, não é importante a natureza da crença do indivíduo; seu estatuto jurídico não será alterado por tal condição. Essa visão, de cunho notadamente republicanista[26], foi revista diante de uma nova perspectiva que se concebe de uma sociedade plural e que respeita valores de todas as crenças. Não se restringe a democracia pela adaptação de normas e atos do Poder Público em prol do respeito a algumas condutas religiosas pessoais; ao contrário, a uniformização legislativa[27], pensada como maior das conquistas dos revolucionários franceses, só demonstrou gerar desigualdades, se interpretada literalmente.             

3.2 LIBERDADE DE ATUAÇÃO CONFORME A CRENÇA

A miríade de religiões do mundo contemporâneo comporta todo o tipo de conduta conforme a crença individualizada. Dentro da liberdade religiosa, o conceito anterior de liberdade de crença é inócuo se seu par diametral – o de liberdade de atuação conforme a crença – não for assegurado[28].

A dicotomia entre crença (belief) e conduta (action) não encontra respaldo em discussões anteriores ao próprio Estado de Direito. Na época em que a liberdade religiosa era tratada mais como tolerância ao diferente, e os modelos concordatários reinavam na Europa, o direito de atuação conforme a crença era ínsito ao direito reconhecido na religião tolerada. A discussão entra em pauta na jurisprudência norte-americana, quando o modelo da Primeira Emenda começa a ser debatido.

A Suprema Corte daquele país sustenta a tese de que leis não podem interferir na liberdade de crença pessoal, mas podem restringir as condutas que dela emanam[29]. Por certo que ações têm, via de regra, repercussões muito maiores na sociedade do que convicções íntimas, mas o problema não deve ser tratado de forma categórica. Deve haver a adequação de certas condutas em prol da manutenção de uma democracia em que as idéias possam ser viabilizadas dentro da comunidade maior[30]. Impedir atos individuais que têm por base a mais tenra boa-fé em relação às próprias convicções religiosas significa mutilar o núcleo fundamental do direito à liberdade de religião, e, em última análise, à própria expressão humana, em sua maior dignidade e existência.

Para atingir um estatuto jurídico diferenciado, o Poder Público necessita de meios para perquirir a existência de uma condição prévia – a verdadeira filiação à comunidade que carece de especial disciplina. Sob a perspectiva subjetivo-funcionalista, a determinação de uma crença esbarra num parâmetro de difícil aferição, que é o da sinceridade em relação ao credo que se presume adotado[31].  Laurence Tribe demonstra que a sinceridade é requisito para a consolidação de exceção a qualquer exigência estatal (government requirement), seja ela uma norma penal ou uma lei de concessão de benefícios[32]. Nesse caminho, a Suprema Corte americana decidiu, no caso United States v. Ballard[33], que um júri popular poderia determinar se há sinceridade na crença do demandante, mas jamais fazer juízo sobre sua veracidade[34]

Naturalmente, essas balizas servem para coibir abusos na auto-declaração religiosa, quando ela têm relevância no tratamento jurídico dos concidadãos. Basta citar o caso da revolta tributária da cidade de Hardenburgh, NY, em fins da década de 70, em que mais de 90% dos cidadãos adultos tornaram-se ministros da Universal Life Church –  que enviava pelo correio credenciais eclesiásticas a quem as solicitasse – pois, naquela localidade, eram concedidas inúmeras isenções a grupos religiosos e sacerdotes, agravando a exação sobre os demais.  Foram ordenados, durante quinze anos, mais de seis milhões de ministros[35].

Outro ponto fundamental que se espraia da liberdade de atuar conforme as crenças é a chamada liberdade de divulgação das crenças. O proselitismo é uma prática comum a inúmeras religiões, notadamente as relacionadas com o monoteísmo, e tem gerado diversas controvérsias, principalmente quando se utilizam meios de comunicação ou estão em jogo outros direitos fundamentais, como os referentes à proteção do consumidor[36].

A liberdade de divulgação de crença apresenta um núcleo que por vezes extrapola ao permitido a outras liberdades, como a de expressão ou mesmo a de veicular propaganda comercial. Dentre todas essas, a liberdade de religião, assim concebida, é a que guarda maior nível de subjetividade. O próprio Supremo Tribunal Federal já decidiu, em caso sobre publicação de livros anti-semitas, a limitação da liberdade de expressão[37], enquanto que o próprio Antigo Testamento, livro sagrado para cristãos e judeus, apresenta mandamentos de caráter amplamente discriminatórios[38] e não se cogita sua proibição.

A Suprema Corte norte-americana no caso Watchtower Bible  Track Society of New York, INC. et al. v. Village of Stratton et al (17/06/2002) decidiu proteger a liberdade de divulgação da crença exceptuando os testemunhas de Jeová da aplicação de regulamento que proíbe a peregrinação de “angariadores de voto” sem autorização da municipalidade. O escopo do regulamento é proteger os moradores de serem incomodados por propaganda indesejada, mas, do outro lado, está a natureza da religião das testemunhas que carece da publicação e entrega de material religioso[39]. O direito a não ser incomodado por idéias contrárias a sua sucumbe, diante de um contexto democrático e plural, aos direitos relativos à liberdade de comunicação de idéias.

O Tribunal Constitucional Federal Alemão decidiu sobre o tema em Reclamação Constitucional movida pelo Movimento Católico da Juventude Rural (Katolische Landjungebewegung Deutschlands), em 1968[40]. Em 1965, a juventude católica de toda a Alemanha promove uma campanha chamada “Campanha quarto de despejo” (Aktion Rumpelkammer) para arrecadar trapos e papéis com o fim de vendê-los a atacadistas. O montante arrecadado seria destinado à juventude correspondente nos países pobres, e, assim, recebeu ampla adesão das comunidades católicas do país.

Algumas empresas de coleta de material velho foram à bancarrota graças a essa campanha, e uma delas ajuíza demanda contra o movimento alegando concorrência desleal, já que fora feita propaganda da campanha diretamente do púlpito das igrejas. A empresa ganha em todas as instâncias.

Chegando ao TCF, alega o movimento que a decisão impugnada viola o direito ao livre exercício religioso, constante do art. 4,(2), da Constituição Alemã[41]. Diz a Corte Excelsa:

“Uma vez que o exercício da religião tem significado central para toda crença e toda confissão, esse conceito precisa ser, em face de seu conteúdo histórico, interpretado extensivamente (...).

De acordo com sua interpretação extensiva, fazem parte do exercício da religião não somente os procedimentos litúrgicos e a prática e a observância dos usos religiosos, como culto religioso, coleta de contribuições, orações, recebimento dos sacramentos, procissão, hastear as bandeiras das igrejas e tocar os sinos, mas também a educação religiosa, festas laicas e atéias, bem como outras manifestações da vida religiosa e filosófica.

Coletas organizadas pela Reclamante por motivos caritativos e o anúncio no púlpito por ela realizado fazem parte do exercício de religião garantido pelo art. 4º., II, GG”.

A exteriorização da crença guarda também um conflito latente do fenômeno religioso – a figura da demonização. O “inimigo”, o “infiel”, o “demoníaco” não são prerrogativas das religiões oriundas do judaísmo. Pelo contrário, a noção de figuras e condutas que são consideradas negativamente está presente em quase todas as religiões do mundo. Num contexto democrático, a diminuição valorativa de alguns comportamentos ou crenças em relação aos outros é vedada, se houver como parâmetro o Poder Público. Porém, quando se menciona a liberdade religiosa particular, se procura proteger o núcleo fundamental de uma crença, ainda que este venha a ferir o núcleo fundamental de outra. Para um católico, tão importante é a idéia de sacramento como é a concepção de céu e inferno. É fundamental, para essa religião, a construção da filosofia de que aquele que não segue os mandamentos de Deus através de sua única Igreja, sofrerá danação eterna. O mesmo ocorre com todo tipo de crença que procura superestimar seus próprios dogmas em relação aos dos demais grupos religiosos[42]. As soluções de conflitos nesse terreno não são dadas pelas máximas kantianas de respeito ao outro ou pela utilização do princípio do neminem laedere, baluarte da teoria da responsabilidade civil romana. É preciso construir paradigmas renovados que consigam coibir abusos, sem provocar o esvaziamento da própria religião.

Entra em cena uma discussão basilar, a dos limites à liberdade religiosa. Se o Estado não pode fazer juízo sobre o conteúdo das crenças praticadas ou veiculadas, indaga-se como seria determinada uma divisória entre a licitude e o abuso desse direito fundamental. Com o fito de resguardar a eficácia máxima dessa liberdade, entende-se que o parâmetro para controle da atividade religiosa é a configuração de um comportamento ilícito[43]. Um ilícito de natureza criminal ou administrativa, se praticado continuamente e sendo considerado altamente relevante para a existência daquela religião, possibilitaria a intervenção no sentido da proibição da prática – mas jamais do conjunto de crenças em si[44].

Outro lado da liberdade de divulgação da crença pode ser entendido como o direito ao silêncio relativo à convicção religiosa. Dentro do Estado de direito, não se protege apenas o amplo debate de idéias e a possibilidade de fazê-las serem ouvidas, mas também a intimidade e privacidade do indivíduo que, ao contrário do prosélito, não quer que sua filiação religiosa – ou, logicamente, o conteúdo de sua religião – seja de conhecimento da comunidade. No caso Wooley v. Maynard [430 US 705 (1977)], a Suprema Corte norte-americana decidiu que “existe o direito de falar e o de abster-se de falar[45]”. Em última instância, trata-se do direito a não ter a própria consciência violada e, conseqüentemente, manter o resguardo à dignidade humana.

3.3 LIBERDADE DE CULTO

A celebração do conteúdo das crenças através de atos de adoração também é um dos caracteres protegidos no seio da liberdade religiosa[46]. A liberdade de cultuar traduz, em si, à idéia de comportamentos[47], individuais ou coletivos, motivados religiosamente, e que são, de alguma forma, ritualizados[48]. É importante anotar que não é necessária a comunicação da doutrina para que seja caracterizado um culto, pode este aparecer, por exemplo, em forma de oração individual, meditação, jejuns, estudo de livros sagrados ou a prestação de serviços religiosos nos templos.

A liberdade de culto apresenta, em paridade, a necessidade da existência de lugares de culto[49]. A proteção aos locais de celebração é, sem dúvida, corolário da própria noção do direito a realizar culto religioso sem intervenção externa. Em última análise, essa facção do direito à liberdade religiosa é uma especificação do direito maior à privacidade do cidadão ou dos grupos religiosos.

Outro problema que se apresenta é o referente à intervenção estatal nos locais de culto. A lei francesa sobre laicidade do Estado, de 9 de dezembro de 1905, em seu artigo 25, estipula que as reuniões de culto estão “sob a vigilância das autoridades no interesse da ordem pública”.  Jacques Robert ensina que:

“O prefeito (maire) pode intervir na igreja caso a ordem pública esteja ameaçada, seja a pedido do padre, seja próprio motu, mas somente durante as reuniões públicas pertencentes à igreja (não em caso de cerimônias privadas como batismo ou casamentos). Esse poder de polícia (pouvoir de police) é limitado na ocasião por ser o edifício destinado ao culto com finalidade religiosa. Desse modo, o Conselho do Estado declarou ilegal uma ordem dada por certo prefeito de colocar na igreja o cadáver de um suicida (C.E. 9 janeiro 1931. Cadel. S. 1931.3.41). O prefeito poderá igualmente fechar a igreja quando um perigo iminente de confronto ameaçar os fiéis (C.E., 26 maio 1911. Ferrey et al.).[50]”.           

A intervenção dar-se-á sempre em prol da comunidade exterior, quando esta tiver sido afetada[51], ou em favor dos membros da religião presentes na celebração, quando os mesmos estão sob qualquer risco concreto de lesão a um bem jurídico. Note-se que, quando se fala em religiões animistas e neo-pagãs, que preconizam rituais de intenso esforço físico e mental para alguns indivíduos, o Poder Público deve estar atento para não ferir a liberdade de culto dos participantes, mas também não permitir que indivíduos tenham sua dignidade violada mediante coação ou fraude perpetrada pelo sacerdote ou pelo restante do grupo. A autonomia da vontade, quando houver disponibilidade dos direitos em jogo, deve ser a coluna mestra para valorar eventual ilegalidade.

3.4 LIBERDADE DE ORGANIZAÇÃO RELIGIOSA

A liberdade de religião protege, na individualidade, os diversos reflexos que o fenômeno religioso carece para atingir sua completude. Numa sociedade de massa, em que as violações pontuais a direitos parecem não influir na enorme gama de relações jurídicas que se travam a todo momento, nada mais aceitável que as corporações religiosas também venham a gozar da mesma amplitude desse direito fundamental. A luta pela eficácia da liberdade de religião passa pela problemática das minorias políticas que, certamente, ganham mais força quando concentradas em entes representativos. Nas palavras de Jônatas Machado:

“A titularidade de direitos fundamentais pelas pessoas colectivas reveste-se de particular importância no caso do fenômeno religioso. A história demonstra a existência e influência de inúmeros grupos que surgem da dinâmica social do homem e da religião. No caso particular do Cristianismo, por exemplo, a idéia de assembléia (ecclesiae), marcou tão profundamente os hábitos sociais que se torna hoje difícil conceber a religião desligada de sua dimensão associativa. Acresce que um dos actos mais significativos através dos quais o indivíduo exerce sua liberdade religiosa consiste, justamente, na adesão de uma comunidade moral de natureza religiosa. Assim, dado o caráter eminentemente social do fenómeno religioso, o reconhecimento do direito à liberdade religiosa individual tem como corolário o respeito pela autonomia das formações sociais a que aquele naturalmente dá lugar[52]”.

A proteção do individual necessariamente se reporta à proteção do coletivo, quando o objeto de resguardo é um fato comum a vários personagens. Retirar a armadura normativa que se dispõe à liberdade religiosa coletiva significa mitigar a expressão de cada um de seus crentes. Assim, declarar a liberdade religiosa individual sem suscitar a coletiva é um engodo que mascara um movimento discriminatório. Basta recordar o discurso do Conde de Clermont-Tonnerre, em 23 de dezembro de 1789, sobre os judeus e sua comunidade:

“Não há caminho intermediário possível: ou se admite uma religião nacional, e se submetem a ela todas as vossas leis, dando-lhe o poder temporal, e se excluem de vossa sociedade os homens que professam outra crença e, então, apagais o artigo da declaração de direitos (sobre liberdade religiosa), ou permitis que cada um tenha sua própria opinião religiosa e não excluís dos cargos públicos os que fizerem uso de tal faculdade (...). Devemos recusar tudo aos judeus como nação e dar tudo aos judeus como indivíduos. Devemos tirar-lhes o reconhecimento de seus juízes; eles devem ter apenas nossos juízes. Devemos recusar proteção legal à manutenção das assim chamadas leis de organizações judaicas; eles não devem ser autorizados a formar dentro do Estado nem um corpo político, nem uma ordem. Devem ser cidadãos individuais. (...) Em resumo, senhores, o estado presumido de todos os residentes de um país é o de cidadãos[53]”.

Decerto que interferências desmotivadas no seio das comunidades religiosas são eivadas de ilegalidade. Todavia, o Direito necessita enquadrar esses agrupamentos com o fim de discipliná-los e concebê-los como titulares de liberdades fundamentais. A forma de organização que se tem proposto para as comunidades religiosas é a pessoa jurídica de direito privado, padrão nos ordenamentos ocidentais. Historicamente, porém, a Igreja Católica tem ostentado um patamar diferenciado em diversos países – inclusive, na atualidade, é tratada a Santa Sé como pessoa jurídica de direito público internacional – o que é uma excrescência. Entende-se que qualquer diferenciação na qualificação jurídica das entidades religiosas constitui uma discriminação odiosa e irrazoável.

No Brasil, as organizações religiosas são regidas pelo Código Civil, que contém a seguinte regra:

“Art 53. Constituem-se as associações pela união de pessoas que se organizem para fins não econômicos.

Parágrafo único. Não há, entre os associados, direitos e obrigações recíprocos”.

O regramento legal de uma associação religiosa deve ser feito em conformidade com duas balizas. Primeiramente, a da liberdade de religião num sentido amplo, com o escopo de delimitar o intuito legítimo pelo qual se reúnem os fiéis. Além disso, os dogmas e princípios éticos próprios da religião devem servir para reger as relações dentro da comunidade. Veda-se, por assim dizer, a imposição de regras de organização que venham a ferir princípios de fé.  Nas palavras de Paulo Sanches Campos[54]:

“Os católicos entendem que o poder do Papa é divino e que o mesmo poderá ordenar os bispos e estes, os padres, não podendo o legislador interferir nesse dogma, sob pena de violação do mencionado art. 5º., VI, da CF. Seria o caso, indaga-se, da lei impor (sic) que os fiéis de uma paróquia elejam a quem eles queiram para padre ou para bispo que, a rigor, também é administrador da igreja?

Seria o caso de uma entidade espírita prestar contas aos fiéis, no final de um exercício, de todos os animais sacrificados nos rituais?

Os pastores, que também administram a igreja, deverão ser eleitos ou a organização da igreja poderá dispor a esse respeito?”          

Embutir, no seio de um dispositivo genérico, como faz o Código Civil brasileiro, parece significar que a regulação de uma associação religiosa é idêntica a de um clube esportivo ou de dança, quando, na verdade, não guardam as mesmas características. Logicamente, o Estado pode exigir comportamentos em relação à estrutura das organizações religiosa com o fim, por exemplo, de apurar ilícitos criminais, administrativos ou fiscais[55], quanto a isso não há dúvida. O que se questiona é a validade de normas legais que imponham regras sobre a formação e administração de associações religiosas e que violem princípios éticos das mesmas.

O vínculo que une cada crente não é outro senão o de natureza espiritual[56], e impor um dever jurídico obrigacional de natureza civil no momento em q se ingressa numa religião é uma violação absoluta à própria noção geral de livre escolha de crença.  Como ensina Paulo Sanches Campos[57]:

“Ora, o vínculo jurídico estabelecido entre fiéis e igreja é meramente ideal, de fé, dispensando requisitos objetivos ou condições para o exercício de direitos subjetivos, juridicamente aferíveis. Qual o requisito para ser cristão, senão crer em Cristo? O vínculo de uma igreja cristã exige do crente apenas que ele comungue dos mesmos princípios de fé e forma de adoração daquela comunidade.

(...) As igrejas não possuem associados, mas sim fiéis, membros.

Os direitos e deveres decorrentes das convicções religiosas são de foro íntimo, isto é, são essencialmente espirituais e não passíveis de apuração jurídica. São vínculos ideais, espirituais entre o fiel e a divindade professada”.

Além da tutela do direito fundamental à liberdade religiosa coletiva e da proteção de sua organização, vale apontar um último aspecto protetivo que aparece nesse diapasão. As comunidades religiosas são dotadas de um direito de autodeterminação[58], cujo conteúdo se traduz delimitação de um “círculo vital”, apartado da atuação estatal, em que residem questões internas às próprias religiões. Estas são, v.g., a definição da doutrina basilar e sua interpretação, o modo e requisitos para admissibilidade dos membros, a seleção dos meios de financiamento de suas atividades, a aplicação de sanções disciplinares, etc. Estas matérias não podem sequer ser objeto de deliberação estatal, seja por lei, por ato administrativo ou por intervenção jurisdicional[59].

3.5 PROBLEMA DA ACOMODAÇÃO

O entendimento dado à liberdade religiosa no mundo, nos países em que é concebida plenamente, sempre foi o de sua conjugação ao princípio da igualdade, no sentido de que todos os crentes, ateus ou agnósticos têm a mesma prerrogativa de serem tratados de forma idêntica pelo Estado, sem qualquer discrímen possível, ao menos com base em suas convicções pessoais. Trata-se, em última análise, de um direito público subjetivo à igualdade jurídica[60].  

Até então, a violação desse direito era tratada como uma discriminação, partindo-se para a solução jurídica da modificação da situação do ofendido até atingir o nível de igualdade perante todos os membros da sociedade. O status jurídico igualitário era equivalente ao fato de que a ação do Poder Público é neutra em relação a todos os credos. 

A discriminação, num sentido lato, poderia ser dividia de três formas[61]: discriminação direta (direct discrimination), que ocorre quando, por exemplo, uma escola pública abre e encerra suas atividades com uma oração ao Deus cristão; discriminação indireta (indirect discrimination), como no caso de um proprietário que deseja alugar seu apartamento, mas dá preferências a quem é de sua religião); e assédio moral (harassment), que é o caso de piadas ou comentários perniciosos em relação à crença alheia.

Ocorre que, com a evolução da jurisprudência dos países da América do Norte, verificaram-se situações em que o direito fundamental à liberdade religiosa também seria lanhado, mas numa nova espécie de violação, chamada discriminação construtiva (constructive discrimination). Esta viria à tona no momento em que uma exigência (requirement) supostamente neutra tem um impacto adverso em determinados membros de um grupo protegido pelas leis do país, gerando uma desigualdade proibida. Essa pode ser expressa tanto numa exclusão de direitos, como em uma restrição ou preferência.

A maior parte dos casos de discriminação construtiva nos Estados Unidos e Canadá surge na esfera laboral envolvendo questões de vestimentas religiosas e a observância de feriados. Casos dessa natureza também surgem na área dos serviços públicos, particularmente nos relativos à educação (orações públicas em escolas, intolerância religiosa por parte dos professores, etc.) Há também casos lidando com o direito de instituições religiosas de empregar pessoas que aderem a crenças específicas.

Em decorrência dessa situação de desigualdade ilegal, surge para o agente violador – seja privado, seja público – um “dever de acomodar” (duty to accomodate) socialmente os indivíduos cujas crenças não permitem a manutenção de um status geral de cumprimento àquela exigência. 

A exceção ao dever de acomodar, segundo a seção 11 (2), do Código de Direitos Humanos do Estado de Ontário, seria quando este dever implica indevida dureza (undue hardship) ao sujeito que deve agir para equilibrar as desigualdades. Os padrões considerados para aferição da dureza indevida são três: custo (cost), inexistência de outros meios para financiamento (outside sources of funding) e riscos para saúde e segurança (health and safety risks), do que está em estado de desigualdade ou dos demais à sua volta[62]

O Canadá é, sem dúvida, um dos países que mais aplica a acomodação de minorias religiosas sem maiores restrições. São inúmeros exemplos de jurisprudência pacífica em diversos temas[63]: vestimentas religiosas[64], políticas de intervalo no trabalho (break polices), processo de recrutamento profissional, remuneração por feriados religiosos não-oficiais[65], flexibilização de horários e outros.

A questão da acomodação, no entanto, é bem controvertida nos Estados Unidos. Pode-se dizer que a interpretação da cláusula constitucional do livre do exercício da religião (free exercise clause) pela Suprema Corte norte-americana completou um círculo[66].  De sua leitura restritiva em 1878 em com o caso Reynolds[67], passou a um entendimento muito mais amplo nos anos 60 do século XX, e tem retornado ao ponto inicial no controverso Employment Division of Oregon v Smith[68], de 1990.

Essa decisão da corte gerou críticas quase unânimes, e o Congresso americano respondeu rapidamente editando o Religious Freedom Restoration Act (1993), desenhado para restaurar o entendimento perdido em Smith.  Este esforço, entretanto, falhou, porque a Suprema Corte acabou decidindo pela inconstitucionalidade do ato, alegando que o Congresso violou o pacto federativo ao instituir aquela “acomodação” de práticas religiosas significativamente onerosas aos crentes pelo Poder Público estadual. 

O Magno Pretório daquele país defrontou-se com esse tipo de questão pela primeira vez quando um mórmon poligâmico do Utah desafiou uma lei federal anti-poligamia com base em suas crenças pessoais.  A corte rejeitou a tese do apelante de que sua religião o compelia à violação da lei federal, o que seria escusável.  A corte leu a cláusula do livre exercício da religião no sentido de proteger a opinião religiosa, mas não as práticas que funcionam contra às leis criminais neutras aplicáveis.

Nos anos do Justice Warren E. Burguer (década de 60), a corte tinha adotado uma visão muito mais expansiva da cláusula, lendo-a no sentido de compelir a acomodação governamental de conduta religiosamente motivada, na ausência de um interesse estatal coercitivo, e com o uso dos meios que menos transtornassem as práticas religiosas.  Aplicando esta interpretação estrita às leis que oneravam significativamente o exercício religioso, a Corte entendeu uma lei da Carolina do Sul inconstitucional por negar benefícios de desemprego a um adventista do sétimo dia que recusasse uma oportunidade de trabalho em que a função incluísse disponibilidade no sábado[69].

A Suprema Corte continuou a aplicar esse entendimento, utilizando-o, por exemplo, em 1972 para declarar inconstitucional uma lei do Wiscosin que exigia o comparecimento nas escolas de crianças e adolescentes até a idade de dezessete anos[70].  Nessa época, os estados e as cortes federais de menor instância também aplicavam o controle apertado (strict scrutiny[71]) para examinar uma variedade de leis criminais que vinham sendo editadas nos anos 70 e 80 nos Estados Unidos.  Em 1979, v.g., em Frank v. Alaska[72], a Suprema Corte do Alaska entendeu que o estado não poderia aplicar suas leis de caça de encontro à cultura dos índios Athabascan, que eram religiosamente motivados a caçar alces fora da estação – alces que são um ingrediente-chave em um potlatch – o funeral religioso da comunidade.

Pelos idos dos anos 80, a Suprema Corte do país, quando ainda usava a o exame restrito, começou a fazer exame mais cético em relação às reivindicações com base no livre exercício da religião.  A cisão do Tribunal sobre o tema foi revelada, de vez, no seu affirmance de 1985, em razão de uma decisão do Oitavo Círculo que permitia ao estado de Nebraska continuar aplicando uma lei que exigia a identificação por foto em carteiras de motorista locais, indo de encontro às convicções de um condutor que acreditava que tais retratos violavam o segundo mandamento bíblico sobre adorar imagens de escultura[73]. Já no ano seguinte, o juízo se mostraria em desfavor dos requerentes do livre exercício da religião, quando, numa decisão apertada (5 a 4), o pedido para não usar capacete feito por um psiquiatra judeu ortodoxo do exército, que se sentia obrigado a usar um yamulke em seu serviço, foi negado[74].

Em 1988, o caso Lyng v Northwest Protective Cemetery Association (485 U.S. 439) forneceu a maior evidência da mudança da opinião daquele Pretório. Passou-se a entender que o governo não necessita se preocupar com o impacto que suas decisões pudessem ter nas práticas religiosas.  Baseado neste princípio recentemente anunciado, a corte permitiu ao Governo Federal prosseguir com a construção de uma estrada através de uma floresta que era considerada sagrada por uma religião nativa americana.

A grande evolução no direito à liberdade de religião, porém, veio com o julgado em Employment Division v Smith (494 U.S. 872), em 1990.  Desperdiçando décadas de avanço na matéria, cinco membros da Suprema Corte concluíram que uma lei criminal aplicável em sua normalidade não geraria nenhuma garantia de liberdade religiosa, extinguindo a exigência dos estados em demonstrar ao menos um relevante interesse público (important state interest) quando aplicasse leis que pudessem onerar significativamente a prática religiosa.  A corte reinterpretou alguns casos sobre o livre exercício da religião – e.g., o dos Yoder – como sendo híbridos, levantando questões não apenas concernentes ao direito de liberdade de religião, mas também ao devido processo legal substantivo.  A partir de então, segundo a maioria na corte, os estados teriam que satisfer ao controle apertado (scrutiny heightened) somente quando uma lei alveja especificamente a prática religiosa[75].

A decisão do caso Smith foi altamente impopular, tanto no Congresso como nas comunidades religiosas.  Assim sendo, em 1993, o Parlamento respondeu ao julgado promulgando o Religious Freedom Restoratation Actprojetado para fazer retornar aos padrões de tratamento da liberdade religiosa antes do caso Smith.  Sob a RFRA, atos do governo federal, estados e locais que interferissem no exercício religioso deveriam ser fundados em um relevante interesse estatal e ser o menos restritivo possível.  O Tribunal Supremo, entretanto, no caso City of Boerne v Flores [521 U.S. 507 (1997)], declarou a inconstitucionalidade da RFRA, ao menos para o governo federal e administrações locais.  A corte concluiu que a Constituição, na seção cinco da décima quarta emenda, não deu nenhum poder ao Congresso para adotar mais que as medidas corretivas consistentes com as interpretações da corte sobre a décima quarta emenda, e que o Parlamento havia tentado mudar a lei substantiva (substantive law) – substituindo sua interpretação da cláusula do livre exercício religioso pela da Suprema Corte.

Em 25.02.2004, foi julgado o caso Locke v Davey, em que o programa de bolsas estudantis do estado de Washington se negou a conceder auxílio a Joshua Davey pelo fato de este querer cursar uma faculdade de teologia confessional. O Chief Justice Rehnquist, redigindo pela maioria de 7 a 2, entendeu que a cláusula constitucional da liberdade religiosa permitia ao estado de Washington que excluísse a referida graduação do quadro de possíveis contemplados, pois uma vocação religiosa estaria além do que o contribuinte deveria financiar com seus esforços. 

Uma inesperada atitude dos Justices foi evidenciada recentemente, no caso Cutter v. Wilkinson [544 US 709 (2005)], em que a Suprema Corte, decidiu sobre a constitucionalidade da Religious Land Use and Institutionalized Persons Act, de 2000. Primeiramente designada para tratar de questões sobre uso da terra, a lei federal também trata de discriminação em razão de religião e da acomodação de eventuais práticas religiosas[76] que, em confronto com exigências comuns em instituições estatais, apresentem um ônus substancialmente elevado (substancial burden) para o crente. No caso em tela, cinco seguidores de religiões não convencionais (Asatru – religião de politeísmo viking, Wicca, Church of Jesus Christ-Christian – que prega a supremacia da raça ariana – e Satanismo) ajuízam demanda contra diretor de uma prisão no Ohio alegando que houve violação da RLUIPA, pois não lhes era permitido cultuar ou ter acesso à literatura de suas respectivas religiões, o que não ocorria com os demais. Decidindo a Magna Corte que o Estado tem dever de adequar suas instalações pra proteger o livre exercício da religião, um novo entendimento surge. Todavia, ainda é nebuloso o pensamento geral dos Justices. Com a nova lei, a razoabilidade impera novamente nas restrições e na acomodação de religiões minoritárias, ao menos no que tange a presídios, hospitais, etc.. De qualquer modo, prenuncia-se, talvez, uma guinada na postura da Alta Corte.

No Brasil, a questão da acomodação não tem sido bem acolhida pelo Supremo Tribunal Federal[77]. Na medida cautelar em representação de inconstitucionalidade 1371, do Distrito Federal, tramitada antes da Constituição de 1988[78], julgou-se improcedente o pedido de religioso que necessitava guardar o sábado no dia em que foram marcadas eleições gerais. Pleiteavam eles a alteração do horário de votação estabelecido no Código Eleitoral, pois, segundo os mesmos, seria inconstitucional por violar o direito à liberdade religiosa. O Relator, Ministro Rafael Mayer, inicia seu voto transformando a natureza da questão, depois dispõe sua impressão sobre o Estado Laico: 

“O que me parece que está, realmente, em jogo é a chamada escusa de consciência, ou cláusula de consciência, ou objeção de consciência que a nossa Constituição, no §6º. do art. 153 resguarda aos cidadãos brasileiros, dando-lhes certas conseqüências. (...) Isso se verifica, por exemplo, e classicamente, com relação ao serviço militar, onde pode ocorrer a objeção de consciência dos pacifistas de alto bordo.

Ora, Sr. Presidente, estabelecer um horário diferente para que resguardasse aos adventistas e outros cultos sabatistas, um horário diferente para que realizassem o seu direito de voto e realizassem as obrigações do seu culto, na verdade, imporia ao Estado, que é um Estado leigo e separado da religião, que se fizesse discriminação favorecedora daqueles que tenham uma determinada religião. A concepção de nossa Constituição é de admitir a objeção de consciência, mas que, aqui, não pode ser levada em conta, para induzir a inconstitucionalidade da lei, que dispõe, genericamente, para todos os cidadãos”.

O Ministro Moreira Alves, a quem cabia o segundo voto na decisão, acompanha o Relator, alertando a necessidade de alteração do horário de votação em todas as circunscrições do país, para que fosse saciado o suposto direito do autor. Em verdade, o princípio da proporcionalidade, foi atendido nessa decisão, pois seria por demais oneroso ao Estado fazer a modificação em nome de um só candidato. No entanto, sequer menciona o STF qualquer tipo de argumento abordando a questão fundamental da sujeição de práticas minoritárias aos atos do Poder Público.

Já no seio na nova ordem constitucional, A ADI 2806 / RS (DJ 27-06-2003), relatada pelo Ministro Ilmar Galvão, foi julgada procedente para declarar a inconstitucionalidade de uma lei gaúcha que pretendia acomodar a guarda de feriados religiosos não estabelecidos em lei. In casu, foi considerado um problema de vício formal de competência. Na ementa:

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI N.º 11.830, DE 16 DE SETEMBRO DE 2002, DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. ADEQUAÇÃO DAS ATIVIDADES DO SERVIÇO PÚBLICO ESTADUAL E DOS ESTABELECIMENTOS DE ENSINO PÚBLICOS E PRIVADOS AOS DIAS DE GUARDA DAS DIFERENTES RELIGIÕES PROFESSADAS NO ESTADO. CONTRARIEDADE AOS ARTS. 22, XXIV; 61, § 1.º, II, C; 84, VI, A; E 207 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. No que toca à Administração Pública estadual, o diploma impugnado padece de vício formal, uma vez que proposto por membro da Assembléia Legislativa gaúcha, não observando a iniciativa privativa do Chefe do Executivo, corolário do princípio da separação de poderes. Já, ao estabelecer diretrizes para as entidades de ensino de primeiro e segundo graus, a lei atacada revela-se contrária ao poder de disposição do Governador do Estado, mediante decreto, sobre a organização e funcionamento de órgãos administrativos, no caso das escolas públicas; bem como, no caso das particulares, invade competência legislativa privativa da União. Por fim, em relação às universidades, a Lei estadual n.º 11.830/2002 viola a autonomia constitucionalmente garantida a tais organismos educacionais. Ação julgada procedente.

Outro aresto envolvendo a adequação de condutas religiosas a atos da Administração Pública é o RMS 16107 / PA, relatado pelo Ministro Paulo Medina (DJ 01.08.2005), no Superior Tribunal de Justiça, tratando também da questão da guarda de sábado pelos adventistas do 7º dia. Segue a ementa:

RECURSO ORDINÁRIO - MANDADO DE SEGURANÇA - CONCURSO PÚBLICO – PROVAS DISCURSIVAS DESIGNADAS PARA O DIA DE SÁBADO - CANDIDATO MEMBRO DAIGREJA ADVENTISTA DO SÉTIMO DIA - PEDIDO ADMINISTRATIVO PARA ALTERAÇÃO DA DATA DA PROVA INDEFERIDO INEXISTÊNCIA DE ILEGALIDADE - NÃO VIOLAÇÃO DO ART. 5º, VI E VII, CR/88 – ISONOMIA E VINCULAÇÃO AO EDITAL - RECURSO DESPROVIDO.

1. O concurso público subordina-se aos princípios da legalidade, da vinculação ao instrumento convocatório e da isonomia, de modo que todo e qualquer tratamento diferenciado entre os candidatos tem que ter expressa autorização em lei ou no edital. 2. O indeferimento do pedido de realização das provas discursivas, fora da data e horário previamente designados, não contraria o disposto nos incisos VI e VIII, do art. 5º, da CR/88, pois a Administração não pode criar, depois de publicado o edital, critérios de avaliação discriminada, seja de favoritismo ou de perseguição, entre os candidatos.

3. Recurso não provido.

A jurisprudência dos Tribunais superiores brasileiros sequer menciona o modelo da acomodação em seus julgados (ainda que estes revelem-se adequados à luz da proporcionalidade), o que demonstra uma postura tradicional de liberdade religiosa e de separação entre credos e o Estado, ainda moldado no princípio da igualdade restrita e formal[79]. Entretanto, os padrões utilizados na América do Norte, sobretudo no Canadá, representam excelente prumo para oxigenação jurisprudencial do Judiciário pátrio, no sentido de otimizar a garantia dos direitos estabelecidos na Constituição de 1988.

4 O ESTADO LAICO

Antes de começar o estudo da natureza jurídica do Estado laico, faz-se imprescindível uma análise política da separação entre Poder Público e confissões religiosas. Primeiramente, quando se utiliza o termo “separação”, considera-se, mormente, a existência ou a possibilidade eventual de ocorrer uma confusão[80] entre Estado e credos religiosos. De fato, o modelo estatal primário que a História conhece é o da sublimação da religião na política, dos sacerdotes e deuses em imperadores. A religião é a base para a agremiação e estrutura da sociedade antiga; por ela é justificado o poder dos governantes e a manutenção do status quo. A religião do rei é a religião do Estado e do cidadão (cujus regio eius religio).

O Cristianismo[81] pós-Império Romano inaugurou um novo modelo de relacionamento entre a confissão dominante e o Estado. O monarca europeu ocidental encontrou-se diante de uma inusitada situação: sua espada não era forte o suficiente para definir a crença de seu povo, mas deveria estar empunhada para defendê-la. Há um poder maior, de cunho espiritual, que paira sobre todos: a Igreja de Roma. Sua estrutura se mistura à do Estado, porém sem se confundir com ele. Ambos servem a um objetivo comum: a manutenção de uma sociedade pacífica sob o beneplácito de Cristo. Surge o sistema da união.

Essa coligação sofreria algum abalo somente com a Reforma Protestante, quando a homogeneidade religiosa européia foi quebrada.Um dever de tolerância passou a surgir a partir das concordatas que davam fim às inúmeras guerras de religião travadas nos séculos XVI e XVII. Com ele, a própria idéia de direitos humanos desenvolveu-se.

Pelas mãos dos revolucionários franceses e norte-americanos, no final do século XVIII, a situação de união entre Igreja e Estado não encontra mais lugar. A independência da “América livre” em relação à Coroa britânica, um estado oficialmente religioso, inaugurou um novo paradigma no campo da laicidade. Os sacerdotes, nessa qualidade, não assumem mais cargos temporais; o Poder Público não financia mais nenhum tipo de culto. As comunidades minoritárias passam a gozar dos mesmos direitos dos demais.

Na França, o anticlericalismo toma lugar[82]. A postura revolucionária provoca, num primeiro momento, uma ruptura total com Roma, para depois encontrar no modelo de tratados entre o Estado e as confissões a melhor forma de equacionar o problema da laicidade. Surge o modelo europeu concordatário, adotado até hoje por alguns países do velho continente, como a Espanha[83].  

No modelo de separação, o Brasil conheceu duas fases. A republicanista, com o Decreto 119-A, de 1890, que pregava a absoluta separação entre atos religiosos e atos civis estatais, e a fase atual, surgida na Constituição de 1934, que é a da laicidade, mas com certas concessões sobre a eficácia jurídica de atitudes tomadas no âmbito da religião[84]. Esse novo contato entre Igreja e Estado visa, primariamente, a conformar a religião como uma manifestação não só cultural, mas ínsita à existência humana. Sua expressão não deve ser tomada como uma afronta à continuidade democrática; ao contrário, perfaz-se a comunidade política com o reconhecimento das manifestações religiosas e sua ajuda na manutenção dos valores fundamentais da República.

Quando se constrói a noção de “separação”, e, mais ainda quando essa não é tão rígida como nos parâmetros clássicos, vem à tona a idéia de um conflito iminente. De fato, o início e a formação do conceito de laicidade guardou, em seu bojo, a necessidade de uma disputa para poder aflorar. As elites religiosas jamais idealizariam um Estado separado da Igreja se seu poderio não fosse ao menos ameaçado por uma força ideológica contrária com aspirações a tornar-se também a classe controladora. A ruptura nasce, precisamente, quando forças tradicionalmente hegemônicas tendem a serem estremecidas por outras dentro de seu próprio domínio. Como bem explica Joseph G. La Palombara[85]:

“Não devemos, contudo, subestimar o potencial conflitivo entre elites existentes e elites potenciais ou contra-elites. Até o começo do século XVI, a Europa era religiosamente homogênea. A condenação, por Roma, do cisma de Martim Lutero pôs em movimento uma reação em cadeia de ódio e violência, cujas ramificações políticas reverberam séculos depois, em lugares tão diversos com a Irlanda do Norte e Burundi.

(...) Conflitos interreligiosos, ou religiosos versus seculares, mostram claramente que muitas divisões prolongadas ocorrem dentro da própria elite e não necessariamente (ou muitas vezes até provavelmente) dentro das massas ou entre as mesmas. O mesmo Lutero e suas noventa e cinco teses podem ser citados para ilustrar o papel da elite na criação de divisões; João XXIII e os concílios do Vaticano podem ser contrapostos como um exemplo da ação das elites na moderação e talvez eliminação das dissensões. Em nenhum dos extremos desse conflito de cinco séculos, nenhum momento mesmo, foram as massas completamente irrelevantes; mas seu papel de criação, manutenção e exploração da diversidade empalidece em confronto com o desempenhado pela elite”.

Os embates que levaram à origem da separação entre Estado e a religião dominante sempre revelaram, como pano de fundo, a bandeira da elite intelectual que se pretendia livre. No Brasil, nunca se fugiu dessa realidade. A laicidade nasceu nas mentes dos ricos defensores da República durante o Segundo Reinado. Atualmente, as Igrejas evangélicas pentecostais clamam por respeito a seus cultos, pois sua cristalização como elite política lhe permitiu tal feito. Num Estado supostamente laico, e que, de fato, preconiza pela liberdade de religião, qualquer ato do Poder Público que envolva a atuação de determinada confissão deve ser analisada sob dois parâmetros: o jurídico e o político. Não há bons nem maus no jogo, apenas forças determinadas a manter ou estender seu poder. O Judiciário nacional, ultrapassando o papel de mero aplicador das leis, deveria realizar uma leitura política dos atos estatais que lhes são dados à apreciação. Se a inércia permanece, quem sai perdendo são as religiões minoritárias sem identidade política, como as afro-brasileiras, que são objeto de discriminação há mais de 400 anos no país.

4.1 NATUREZA JURÍDICA E FINALIDADES DO ESTADO LAICO

A laicidade[86] do estado pode ser traduzida como a separação das confissões religiosas do Estado[87]. Todavia, essa separação figura nos ordenamentos jurídicos ocidentais como um princípio[88], andando pari passu com o direito à liberdade de religião. Enquanto que o último se centra no bem da liberdade de profissão de fé ou sua abstenção, o primeiro “atende ao impacto produzido pela atividade estatal no processos espirituais de formação e revisão da consciência individual[89]”. Entende-se, aqui, a indissolubilidade dessas duas categorias jurídicas, pois a história comprova que, onde há violação ao princípio da separação, a liberdade religiosa não pode estar fielmente garantida[90].  Como ensina Fábio Konder Comparato[91]:

“Com efeito, não há autêntica liberdade de crença e de opinião, num Estado que adota uma religião oficial. As pressões de toda sorte – políticas, econômicas e profissionais – contra os não seguidores da religião do Estado tornam essa liberdade ilusória. Aliás, os Estado totalitários mais virulentos da atualidade são, justamente, aqueles que oficializam crimes de confissão religiosa. A interferência estatal na vida privada torna-se sufocante”.

A laicidade estatal surge como um atributo das funções públicas[92] que pode, dependendo da visão que se projeta dele, resultar em conseqüências diversas. A religião apresenta-se com necessário caráter público, de identidade e união dos próprios cidadãos, mas a confissão majoritária não pode se valer disso para requerer privilégios em relação às demais. 

Inúmeras teorias já foram aventadas, no seio das nações democráticas, com o fim de destacar a crença de maior expressão nos quadros das atividades estatais. A primeira delas foi a da religião civil (civil religion), que propugnaria pela existência de uma cúpula de valores sobrepairando todas as religiões. Sobre essa pauta fundacional, existiriam virtudes cívicas segundo as quais seria conduzida a nação – naturalmente, a inspiração para essas virtudes seria a da religião dominante. A tese, oriunda dos pensadores iluministas franceses e adotada pelos republicanistas norte-americanos da época da constituinte, não passa desapercebida pelo contexto contemporâneo de sociedade pluralista[93]. No Brasil, muitas vezes recorre-se a uma “moralidade pública” quando é discutido o problema da criminalidade alta em grandes centros ou da falta de decoro em programas de televisão ou propaganda. Os indícios da catequese católica podem ser sentidos quando da utilização de expressões indeterminadas como “bons costumes”, “desvirtuamento da família” ou “cidadão de bem”.

Outros argumentos mais sofisticados, porém que redundam também em uma claudicante interpretação em favor das religiões majoritárias são as teses do princípio democrático e da tradição cultural e histórica do país. A primeira concebe que os cidadãos, imbuídos de igualdade de voto constitucionalmente assegurada, podem determinar um estatuto jurídico preferencial à confissão dominante. Todavia, isso pode representar o esvaziamento da própria essência do direito à liberdade de religião, uma vez que a democracia não representa apenas a regra de que a vontade vencedora na comunidade deve ser efetivada, mas também a proteção da igual dignidade e liberdade de todos os indivíduos. Esse tipo de corrente dá fulcro para a manutenção dos feriados religiosos, ostentação de símbolos religiosos em locais públicos e, eventualmente, subvenções substanciais à confissão de mais agrega fiéis na sociedade.

Negar o panorama histórico-religioso de um país é tão atentatório à cultura do mesmo como impedir a liberdade religiosa o seria à própria idéia de democracia. Por isso, equacionar a diversidade religiosa com o reconhecimento da influência que determinada crença gerou na formação daquela nação é um imperativo fundamental para a conivência solidária. Isso representa que o Poder Público não pode conceder regalias à confissão dominante, mas também não deve esquecer do peso histórico da mesma. Uma interessante aplicação pacífica deste argumento, sem pender para nenhum dos lados, é a do financiamento da restauração de templos seculares por parte do Poder Público, como parte não só do patrimônio da associação religiosa, mas também da tradição cultural daquele Estado.

O princípio da separação, portanto, guarda finalidades adstritas à higidez da atuação dos entes públicos em relação às comunidades religiosas, sem, entretanto, negar o reconhecimento da existência das mesmas. Jônatas Machado crê que o princípio da laicidade guarda fins específicos perseguidos pelo Estado contemporâneo[94]. Entre eles, está a garantia da liberdade religiosa individual, no sentido de que o princípio atua de forma instrumental para a plena eficácia desse direito fundamental. Também visa a não interferir na esfera de auto-organização das associações religiosas, deixando cada uma a cargo da decisão de seus membros ou de seu clero, conforme seja estruturada.

No sentido oposto, a laicidade não só implica a proteção da liberdade religiosa individual e coletiva perante o Estado, mas também a garantia de que o Estado não será objeto de influência das confissões religiosas. Não se trata aqui de um autêntico “direito de Estado”, como pensado nos regimes totalitários, mas um resguardo de toda a sociedade civil. No Brasil, essa finalidade é especialmente importante diante de nossa paisagem cultural. O Regimento Interno do Senado assim dispõe:

Art 155. A sessão terá início de segunda a quinta-feira, às 14 horas e 30 minutos, e, às sextas feiras, ás 9h, pelo relógio do plenário, presentes no recinto pelo menos um vigésimo da composição do Senado, e terá a duração máxima de quatro horas, salvo prorrogação, ou no caso do disposto nos arts. 178 e 179.

§1º Ao declarar aberta a sessão, o Presidente proferirá as seguintes palavras: “Sob a proteção de Deus iniciamos nossos trabalhos.

A função cardinalícia de um Presidente da Câmara Alta de um país parece distorcer do princípio da laicidade. Encontra-se também uma peculiaridade no Regimento Interno da Câmara dos Deputados:

Art. 79. À hora do início da sessão, os membros da Mesa e os Deputados ocuparão os seus lugares.

§1º A Bíblia Sagrada deverá ficar, durante todo o tempo da sessão, sobre a mesa, à disposição de quem dela quiser fazer uso.

§2º Achando-se presente na Casa pelo menos a décima parte do número total de Deputados, desprezada a fração, o Presidente declarará aberta a sessão, proferindo as seguintes palavras:

“Sob a proteção de Deus e em nome do povo brasileiro iniciamos nossos trabalhos”.

Estes são singelos exemplos da interseção religiosa nas atividades estatais. Outros feitos de, no mínimo, estranheza ao processo democrático da separação entre Estado e Igreja estão nas atividades do TRT da 7ª Região:

“A cada primeira sexta-feira do mês, a Diretoria Administrativa promove uma missa para a comunidade católica de juízes e funcionários do Tribunal Regional do Trabalho da 7ª Região. O ato religioso recebe sempre expressivo comparecimento de devotos. A realizada no dia três deste mês a homilia versou sobre o Advento, abrindo as comemorações do período natalino neste Regional. Antes da celebração aconteceu a sessão de confissões com numerosos participantes. Este preceito será mantido no próximo ano, atendendo ao apelo da maioria dos servidores da Igreja Católica” (grifou-se; 07/12/04 – consulte-se em http://www. trt7.gov.br/webtrt2/noticias/index.htm).

Na 13ª Região, as cerimônias religiosas são celebradas pelos altos sacerdotes da Igreja Romana no país:

“Já na quinta, 27, serão inauguradas mais duas Varas do Trabalho em Campina Grande, a 4ª e a 5ª. Neste mesmo dia acontecerá o lançamento da Revista do TRT e a abertura da exposição itinerante ´Retrospectiva dos 20 anos´. Esta solenidade contempla os municípios de Areia, Guarabira, Picuí e Monteiro. O aniversário do Tribunal teve início no dia 6 com a abertura da exposição de arte "Retratos do Nordeste" na Área de Integração Cultural.

Na segunda semana, a programação seguiu com missa solene celebrada no Pleno do TRT pelo arcebispo da Paraíba, Dom Aldo Pagotto. Depois de lançada a 13ª edição da Revista do TRT e a apresentada a exposição "Retrospectiva dos 20 anos", foi inaugurada a Galeria dos Ex-presidentes” (comemorações pelos 20 anos de trabalho – notícia de 18/10/2005 – consulte-se em http://www.trt13.gov.br/engine/interna.php?tit=Destaques &pag=exibeDestaque&codDest=3).

Esses e muitos outros exemplos podem ser destacados para exemplificar como a religião tem um incômodo espaço dentro das estruturas políticas civis de nosso país. Essa postura viola a terceira finalidade do princípio da separação entre Estado e Igreja, que é o da garantia institucional do princípio da igualdade. Para a ideal expressão da liberdade de religião, faz-se necessário, num plano mais dilargado, a consolidação do princípio do igual tratamento perante o Estado. A dignidade da pessoa, entendida como um fulcro para sua livre expressão, resta tolhida se não houver paridade no mercado livre de idéias (abertura e pluralismo no espaço público), na grande “feira” onde são veiculadas todas as crenças. Uma confissão que recebe o beneplácito estatal para atuar de forma diferente das outras demonstra seu caráter opressor; ela é desigual, recebeu “mais liberdadades” que as demais, atuou num campo onde é vedado a todas as outras. O princípio da laicidade não comporta muitos parâmetros objetivos além destes; no entanto, a partir do momento em que um Estado determina que a laicidade impede que religião esteja presente em determinado aspecto da vida pública, isso quer dizer que nenhuma convicção religiosa poderá fazê-lo, sob pena de fazer tombar o ordenamento jurídico-constitucional.

Lawrence Tribe esclarece algumas visões sobre a exigência da neutralidade (neutrality) no direito norte-americano[95]. A primeira delas é a chamada neutralidade estrita (strict neutrality), que demanda que o Estado não utilize a religião como padrão para qualquer tipo de atuação, seja pra conceder benefícios, seja para impor um dever[96]. É a visão clássica de neutralidade estatal, conduzindo ao não-reconhecimento de qualquer crença por parte do Poder Público ou mesmo conceder validade jurídica a qualquer de seus atos privados (casamento, v.g.).

A segunda perspectiva sobre a neutralidade é sua forma política. Aqui, organizações religiosas e não religiosas têm a mesma estrutura perante o Estado e gozam dos mesmos direitos (capacidade de ser proprietário e de contratar). No entanto, permite-se a distinção com base na religião em alguns casos. A Municipalidade pode, por exemplo, manter igrejas longe de estabelecimentos incompatíveis com elas, como bares e boates. Leva-se em consideração um “relevante fator secular” (secularly relevant factor). Também pode o Estado negar benefícios a entidades religiosas com base no abuso de direito .Se, por exemplo, um hospital que recebe subsídio público começa a tentar converter os pacientes para aquela doutrina a que está ligada, notoriamente não está atingindo um fim almejado pelo Estado, o que é o bastante para suspender o aporte econômico.

A neutralidade denominacional (denominational neutrality), segundo Tribe, refere-se a uma vedação ao Estado de traçar linhas de diferenciação entre as diversas igrejas ou cultos. Exigências, supostamente de caráter geral, acabam por distinguir as comunidades religiosas – v.g., a obrigação de inscrição junto ao poder Público de religiões que arrecadem mais que uma determinada quantia anualmente.

A última forma de neutralidade, uma evolução da primeira, é a neutralidade conforme o direito à liberdade religiosa (free exercise neutrality). De acordo com esse conceito, “o Estado pode (e, algumas vezes, deve) acomodar algumas práticas religiosas que diferem da maioria[97]”.  O problema já foi abordado neste trabalho, sendo apontado como uma das soluções que mais se adequam ao manto de pluralidade conferido às democracias contemporâneas.

Com o advento do chamado Estado Social, o papel dos agentes estatais e das próprias religiões modificou-se. O cunho assistencialista, antes relegado às instituições de caridade, agora passa paulatinamente à Administração Pública. Como resultado, encontram-se dois entes com finalidades comuns. Não basta separá-los por área de atuação, eles muitas vezes se confundem. Concretizar o dever prestacional positivo torna-se uma tarefa difícil para os defensores da igualdade formal: como conceber o subsídio e atuação do Estado através de entes privados seculares e a vedação do investimento em associações religiosas? O princípio da separação deve ser revisitado.

No direito norte-americano, a questão foi discutida pelo caso Lemon v. Kurtzman[98], sobre auxílio estadual a escolas religiosas. Nesse litígio foi determinado um parâmetro para a atuação estatal em relação às atividades promovidas pelas instituições religiosas. Explica Jônatas Machado[99]:

“De acordo com os critérios propostos, um acto dos poderes públicos não será inconstitucional pelo simples facto de prestar algum auxílio à religião. A inconstitucionalidade só se verificará, em princípio, 1) se o acto não tiver um propósito secular, 2) se o seu efeito primário for a promoção ou a inibição da religião, ou 3) se provocar um envolvimento excessivo entre os poderes públicos e a religião”.

Este é o comumente chamado “Lemon test”, em que três conceitos jurídicos indeterminados: propósito secular, alteração do status religioso e envolvimento excessivo são valorados pelo juiz para concluir ou não pela violação do princípio da neutralidade constitucional. No entanto, há quem critique a Suprema Corte por oferecer critérios absolutamente casuísticos, só podendo ser aferidos na demanda específica, nos moldes do we know it when we see it[100].

Outros parâmetros surgidos na jurisprudência da Suprema Corte, em resposta à insatisfação doutrinária ao Lemon test são o endorsement test e o coercion test. O primeiro, surgido no caso Lynch v. Donnelly[101], toma por base o significado de inclusão ou exclusão que um apoio a determinada confissão leva aos cidadãos aderentes e não aderentes a ela. Aqui, os crentes são considerados como cidadãos com pela capacidade para gozar de sua liberdade religiosa, enquanto que o resto da comunidade política fica excluído. Essa idéia é importante para completar o sentido da igualdade constitucional em matéria religiosa, pois o estatuto privilegiado odioso não deve ser permitido apenas porque deve haver separação entre Igreja e Estado, mas também porque o quadro de liberdades entre os afiliados à religião contemplada é maior do que o dos demais.

O coercion test é um refinamento do anterior[102]. Endossa a idéia de que o Estado, ao promover apoio a uma determinada expressão religiosa, está pressionando o restante da sociedade a conformar-se com ela. Como, em geral, as confissões favorecidas pelo Poder Público são as majoritárias, a coerção das minorias à adaptação torna-se evidente. O endorsement test  e o coercion test são criticados muitas vezes por possibilitar a retirada da religião do espaço público, além de não atentar para situações em que há violação da separação entre Estado e religião, mas não se compele, de forma patente, à observância pelas minorias de um comportamento dominante.

Nos sistemas periféricos, a questão da laicidade tem tomado caminho diverso. Na Ásia, a idéia de secularismo, importada da Europa no século XIX, ganha enorme força, principalmente entre a classe média dos Estados do sul do continente[103]. Mas, como já criticado aqui, a idéia central da separação nos moldes clássicos visa a tornar o Estado um elemento estranho ao fenômeno religioso, não reconhecendo suas verdadeiras necessidades. Como alerta de Ashis Nandy[104]:

“O secularismo tem pouco a dizer sobre as culturas – sendo, por definição, etnofóbo e , muitas vezes etnocida, a menos que, obviamente, as culturas e aqueles que vivem de acordo com elas estejam dispostos a ser totalmente subservientes ao estado-nação moderno, e se tornar ornamentos ou adjuntos da vida moderna – e os secularistas ortodoxos não têm a menor idéia de como uma religião pode articular diferentes fés ou estilos de vida segundo seus próprios princípios configuradores.

Para esses secularistas, a religião é uma ideologia oposta à do sistema de estado moderno e, assim, precisa ser contida. Eles se sentem ainda mais desconfortáveis com a ´religião como fé´, que reivindica seus próprios princípios de tolerância e intolerância, pois essa afirmação nega ao estado e a seus ideólogos de classe média o direito de ser a reserva derradeira de sanidade e o árbitro final entre as diferentes religiões e comunidades”.

Na China, a figura do secularismo recebe tonalidade especial. O regime comunista local, naturalmente inimigo das manifestações religiosas, editou, em 1º de março de 2005, um regulamento de proteção de liberdade de crença. No entanto, essa norma enxertou inúmeros conceitos vagos sobre a extensão da proteção legal dada ao povo chinês, inclusive mencionando expressões como “atividades religiosas normais” para determinar quais seriam as crenças com complacência estatal mais alargada[105]. O resultado é a continuidade de repressão a minorias, com fechamento de templos e prisão de líderes religiosos, semelhantes às praticadas à época da Revolução socialista.

O secularismo turco representa um modelo diametralmente oposto ao regime teocrático dos países muçulmanos em sua maioria. O Tribunal Constitucional do país chegou a proibir um partido (Refah) por indicar que, entre suas finalidades, haveria a implantação da sharia, ou lei islâmica. A Corte Européia de Direitos Humanos, ao julgar apelação sobre a decisão de dissolução do partido, considerou que não houve violação da Convenção Européia de Direitos Humanos no que tange às liberdades fundamentais de organização e atuação política. No julgado, entendeu-se que a incursão estatal seria “necessária à democracia[106]”, numa forma de preservar o Estado Laico.

Outro caso de ato do Poder Público turco julgado pela Corte Européia de Direitos Humanos é o da vedação do uso de véus em universidades públicas do país, também considerado em conformidade com a Convenção de Direitos Humanos[107]. É uma decisão polêmica, mas parece seguir os parâmetros europeus de tratamento da laicidade.

De fato, o conflito entre o poder de controlar, inerente ao Estado contemporâneo, e a luta pela liberdade de religião nunca terminará. O esforço deve ser feito para que as religiões não saiam do espaço público, mas que também não sejam sufocantes umas às outras. O papel do Estado, antes vigilante dos abusos e, muitas das vezes, hostil às manifestações religiosas, hoje atua como um elemento de inclusão e proteção das minorias na comunidade política.


CONCLUSÕES

A concepção de religião que se descortina no século XXI exige alta sensibilidade metodológica. Referências a um Deus único, a ritos grandiosos ou número considerável de adeptos não devem ser mais mencionadas, sob pena de escapar-se da normativa constitucional. Tampouco é viável juízo de valor sobre a veracidade das crenças, e os agentes de criminalização secundária devem estar atentos, principalmente no que tange à repressão do curandeirismo e do estelionato em terreno religioso. A “fraude” deve ser patente e determinante para a existência daquele fenômeno. Do contrário, estar-se-ia diante de uma odiosa perseguição estatal.

A proteção dada à liberdade religiosa começa com a fundamentalidade desse direito. Também revela-se como garantia, além de coadunar-se com a figura do Estado laico. Essas duas realidades devem conjugar-se com o escopo de atingir uma ampla gama de situações em que periga a manutenção do livre exercício do direito das minorias.

Da mesma forma, o campo de atuação desse princípio dual do Estado livre e laico é dirigido, primeiramente, às minorias religiosas, históricas ou não. Depois, abre-se uma via de mão dupla ao entender-se o Estado laico como protetor do Ente público das influências religiosas, da mesma maneira que as comunidades de fiéis do aparato estatal.

O exercício da liberdade religiosa no Brasil tem apresentado alguns problemas de caráter prático. Enquanto muitos doutrinadores e juízes se encasulam nas antigas teorias republicanistas de extrema separação entre Igreja e Estado, surgem políticos que, em nome do povo – ou de uma parcela desse – legislam em favor de suas convicções religiosas.  A questão, aqui, não é o de levar a ética religiosa ao Parlamento, mas obrigar a certos tipos de conduta toda uma nação. De um lado, a religião e seus enviados aos Poderes Constituídos; do outro, a sociedade civil, que também tem religião, mas que sofre com a desigualdade que muitas vezes é provocada com o detrimento de umas crenças em relação às outras.

Diante desse quadro de sutil casamento entre a Assembléia e as diversas crenças, a tentativa do jurista não deve ser no sentido de coibir a ascensão de uma classe de representantes eleitos com base em suas perspectivas religiosas, mas a de procurar desenvolver o diálogo democrático com a devida interpretação das normas promanadas desses órgãos políticos.

A democracia, o pluralismo e a dignidade da pessoa humana são os fundamentos do direito à liberdade religiosa. Dessa maneira, afastar-se da religião não é a tarefa que se exige do Estado constitucional contemporâneo. Ao contrário, reconhecê-la como uma manifestação cultural e basilar para a vida em sociedade é um imperativo, e o respeito e adequação de situações anômalas deve ser sua bandeira capital. Em rota contrária, assiste-se ao desenvolvimento da doutrina européia da laicidade, que parece sinalizar uma perseguição disfarçada aos símbolos e atos públicos religiosos, mormente dos muçulmanos.

Do outro lado da moeda, temos o exemplo norte-americano, que, malgrado os últimos posicionamentos da Suprema Corte daquele país, construiu uma nação baseada na tolerância. Primeiramente, pelo simples fato de que, se não houvesse tal respeito mútuo, não existiria um só país. Fugidos da perseguição anglicana, puritanos, batistas, metodistas, pietistas e católicos saíram das Ilhas Britânicas para tentar um novo meio de convivência e diálogo em uma terra para eles inóspita e cruel. Em segundo lugar, o contínuo espírito inconformado daquele povo permitiu que os cidadãos lutassem pela neutralidade estatal dia após dia – e estão longe de conseguir! O desenvolvimento da doutrina da liberdade religiosa parece ser o mais adequado a inspirar o jurista brasileiro.



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NOTAS

[1]  MACHADO, Jônatas Eduardo Mendes. Liberdade Religiosa numa Comunidade Constitucional Inclusiva: dos direitos da verdade aos direitos dos cidadãos. Coimbra: Coimbra Editora, 1996., p. 208.

[2]  SCHNEIDER, Louis. Problemas de la Sociologia de la religión. In: FARRIS, Robert E. L. (org.), Las Instituciones Sociales IV. Trad. Joan Faré I Miró. Barcelona: Editorial Hispano Europea, p. 437.  Encabeça-se a discussão com um teórico subjetivo-funcionalista, dado que as concepções objetivas de religião remontam, em sua maioria, ao século XIX. Nessa época, as cortes européias e americanas costumavam traduzir a expressão ´religião´ com as noções deístas de divindidade, moralidade e louvor. Ou seja, os moldes ocidentais deveriam ser observados para que uma crença alçasse tal categoria (TRIBE, Laurence. American Constitutional Law. 2nd Ed. Mineola: The Foundation Press, 1988, p. 1179.). Laurence Tribe rememora também os primeiros Mormon Cases, que espelhavam tal ideologia, v.g., Reynold v. United States [98 US (8 Otto) 145, 164-66 (1878)]:  “a prática mórmon da poligamia não é protegida pelas cláusulas de liberdade de religião da Primeira Emenda”; e também Davis v. Beason [133 U.S. 333, 342-44 (1890)]: “sustenta que as opiniões dos apelantes mórmons sobre a poligmia, de acordo com o ´senso comum da humanidade´, não constituem credo religoso, e determina que não só a prática, mas também o ensino ou aconselhamento da poligamia constituía prática de crime” (op.cit., p. 1179). Segundo o mesmo autor, a Suprema Corte Americana, no decorrer do século XX, abandonou seus estreitos parâmetros para englobar o crescente número de crenças de cunho religioso que nascia na América, algumas delas sendo indiferentes ou até contrárias à existência de uma divindade.  No entanto, continuaram a aportar alguns elementos de cunho objetivo ao determinar a proteção da free exercise clause. Para Tribe, “mais promissórias são as analogias dos funcionalistas, que definem religião em termos do papel que a crença do indivíduo tem na vida da comunidade” (op. cit., p. 1182, grifou-se).  Ainda aponte-se que doutrina nacional contemporânea trabalha com conceitos objetivos em matéria religiosa (MORAES, Alexandre. Direito Constitucional. 11ed. São Paulo: Atlas, 2002, p. 73 – “a abrangência do preceito constitucional é ampla, pois sendo a religião o complexo de princípios que dirigem os pensamentos, ações e adoração do homem para com Deus, acaba por compreender a crença, o dogma, a moral, a liturgia e o culto”).

[3]  SCHNEIDER, Louis, Problemas de la Sociologia de la religión. In: FARRIS, Robert E. L. (org.), Las Instituciones Sociales IV. Trad. Joan Faré I Miró. Barcelona: Editorial Hispano Europea, p. 444. Sobre esse aspecto, cabe a crítica de Nietzsche sobre uma possível “origem” (Ursprung) da religião. Para ele, é um erro procurar uma origem da religião em um sentimento metafísico, que estaria presente em todos os homens e conteria, por antecipação, o núcleo de toda religião, um modelo ao mesmo tempo verdadeiro e essencial. A religião, assim como o conhecimento, foi fabricada. Em algum momento da história da humanidade, ocorreu sua “invenção” – Erfindung. Sua natureza, portanto, não pode ser a mesma dos instintos humanos; não está o germe da religião dentre os mesmos. (FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: Nau Editora, 2003, p. 14-15).  Essa concepção, além de romper com o tradicional conceito objetivo de religião, também renova o conceito funcional-subjetivo, na medida em que o desloca da esfera individual existencial e, portanto, metafísica, para a uma idéia de religião como escolha unicamente individual, decidindo o sujeito se deve partilhar ou não de alguma crença nesse nível.  

[4]  SCHNEIDER, Louis, op. cit. 450.

[5]  MACHADO, Jônatas E. M., op. cit., p. 215.

[6]  Op. cit., p. 1182-1183.

[7]  Op. cit., p. 219.

[8]  Nos Estados Unidos, os casos Gerhardt vs. Lazaroff [221 F. Supp. 2d 827 (SD Ohio 2001] e Cutter vs. Wilkinson (2005 US Lexis 4346) são emblemas dessa discussão. Os demandantes são praticantes de religiões não convencionais (non-mainstream religions) e pleiteavam a atuação governamental para o exercício efetivo de sua liberdade religiosa dentro dos estabelecimentos públicos que viviam, visando a resguardar a igualdade em relação ao tratamento dispensado às outras crenças. In casu, Gerhardt era membro da Church of Jesus Christ Christian, que guarda ligações com o movimento Aryan Nation, enquanto que Cutter pertencia ao satanismo. O mesmo se passa com as chamadas religiões neo-pagãs, como os asatru (ou odinistas) e os wiccans, que apresentam formas peculiares de manifestar sua religiosidade (EILERS, Dana D. Supreme Court rules in favor of Pagans. Encontrado em http://www.witchvox.com/va/dt_va.html?a=usma&c=White &id=9826. Visitado em 11/04/2011.  

[9]  No caso Church of Scientology vs. Sweden (05/05/1979), julgado por um Tribunal Comercial sueco e com revisão rejeitada pela Suprema Corte dos EUA, a Igreja da Cientologia foi proibida de veicular propaganda de venda de seu “E-meter”, um instrumento eletrônico que seria capaz de medir o estado mental do indivíduo e suas variações, sob alegação de violação de direitos do consumidor. Aqui, distinguiu-se a propaganda meramente informativa da comercial, caso em que o lucro é o principal escopo do organismo que anuncia. Nesse território, os direitos de informação e boa-fé objetiva devem ser minimamente resguardados, malgrado exista a convicção dos membros da igreja que o aparelho realmente funcione.

[10]  Canotilho observa que “alguns autores, como G. Jellinek, vão ao ponto de ver na luta pela liberdade de religião a verdadeira origem dos direitos fundamentais. Parece, porém, que se tratava mais da idéia de tolerância religiosa para credos diferentes do que propriamente da concepção da liberdade religiosa e crença, como direito inalienável do homem, tal como veio a ser proclamado nos modernos documentos constitucionais” (CANOTILHO, J. J. Gomes, Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 3ª. Ed., 2003, p. 359).

[11]  SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 3ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 82.

[12]  TEIXEIRA, J.H. Meirelles. Curso de Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Forense Universitária, p. 300-301. O autor aponta três requisitos para a aferição da auto-executoriedade de uma norma: a não-designação, pela Constituição, de órgãos ou autoridades especiais incumbidos à sua execução, a dispensa de processos executórios especiais e a não-reclamação de novas normas legislativas que lhe completem o sentido. Em José Afonso da Silva, o direito à liberdade de religião está na categoria dos de eficácia plena, uma classificação próxima da adotada por Meirelles Teixeira.

[13]  BARROSO, Luis Roberto. O Direito Constitucional e a efetividade de suas normas – limites e possibilidades da Constituição Brasileira. 7ª. Ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 99.

[14]  Juan Carlos Gavara de Cara explica que a teoria do direito público subjetivo nasce das distinções clássicas entre Direito Público e Direito Privado. Disserta que “la diferencia entre el derecho subjetivo privado y público consiste en que los primeros combinan el poder con una licitud, mientras que en los segundos únicamente se da un poder. El poder comportaría relaciones entre el individuo y el Estado, mientras que la licitud comportaría relciones de unos individuos com otros excluyéndose al Estado de estas relaciones.(...) De este modo no se puede diferenciar desde los efectos jurídicos el derecho subjetivo privado del derecho público subjetivo, aunque se puede concluir que el derecho público subjetivo presenta las mismas dificultades que el concepto de derecho subjetivo privado, es decir, la relación entre Derecho subjetivo y Derecho objetivo, la relación entre derecho subjetivo y el poder de la voluntad o los intereses protegidos y la relación entre derecho subjetivo y su protección jurídica. Estos tres problemas fueron tratados por Bühler em su definición de derecho público subjetivo, que consideraba que la posición jurídica del súbdito la que le permite basar uma pretensión frente a la Administración en razón de um negócio jurídico o una proposición jurídica coactiva dictada para la protección de um interes individual”.  (Derechos Fundamentalesy desarollo legislativo – la garantia del contenido esencial de los derechos fundamentales en la Ley Fundamental de Bonn.Madrid: Centro de Estúdios Constitucionales, 1994, p. 44-45)

[15]  Elementos de Direito Constitucional na República Federal da Alemanha. Trad. Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris Editor, 1998, p. 298.

[16]  Op. cit., p. 199.

[17]  Las Libertades Públicas. Madrid: Tecnos, 1990, p.61..

[18]  Cf. MACHADO, Jônatas Eduardo Mendes. Op. cit., p. 342. Critica o autor essa corrente: “curiosamente, esta é uma linha de pensamento que raramente surge associada aos direitos de confissões religiosas minoritárias, sem dúvida as que se deparam com uma maior dificuldade em assegurar os pressupostos necessários para o exercício da liberdade religiosa” (op. cit., p.342).

[19]  Não se enquadra em qualquer molde de direito originário ou derivado à prestação, jurídica ou material (cf. SARLET, Ingo. Op. cit., p. 198, 199.

[20]  Estaria no âmbito da impessoalidade a decisão sobre que instituição escolher para destinar algum tipo de recurso ou mesmo contratar (MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo Moderno. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 138). A exigência de exclusividade de organismos de cunho religioso para realizar certas atividades com financiamento do Estado é patentemente inconstitucional.

[21]  Classificação baseada em Jônatas E. M. Machado (op. cit., p.220 e segs.)

[22]  MACHADO, Jônatas E. M., op. cit., p. 230.

[23]  Refere-se, no caso, à eventual declaração de um sujeito sobre qual religião pertence ou de que não pertence a nenhuma. Se há silêncio, não haveria meios materiais de o Estado influir nessa liberdade (ORLANDO, Principii di Diritto Constituzionale. 5ª. Ed., Firenze: Ed. Firenze Barbera, 1909, p. 279).

[24]  Op. cit, p.11. Nesse sentido, BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. 21ª. Ed.. Sâo Paulo: Saraiva, 2000, p. 190.

[25]  MIRANDA, Jorge, Manual de Direito Constitucional. 3ª. Ed., tomo IV. Coimbra: Coimbra Editora, 2000, p. 216.

[26]  CRETELLA Junior, José. Curso de Liberdades Públicas. Rio de Janeiro: Forense, 1986, p. 91-92.

[27]  Leia-se, o princípio maior da igualdade formal. A expressão “republicanista” remete-se aos ideais anti-monarquistas e liberais do século XIX na Europa e no Brasil.

[28]  Como ensina Regina Reyes Novaes: “as identidades e pertencimentos religiosos não são feitos apenas de argumentos de foro íntimo. A religião se inscreve na cultura e freqüenta o espaço público, é locus de agregação social” (Crenças religiosas e convicções políticas: fronteiras e passagens. In: FRIDMAN, Luis Carlos (org.). Política e Cultura: século XXI. Rio de Janeiro: Relume Dumará –ALERJ, 2002, p. 63-64).

[29]  O leading case foi Reynolds v. United States [98 U.S. (8 Otto) 145 (1878)],  que tratava da proibição da poligamia no país, a despeito das práticas da religião mórmon.

[30]  Nathan Glazer explica que a expansão de direitos civis em matéria de liberdade religiosa guarda duas facetas: é uma ameaça aos valores tradicionais dos grupos majoritários e também uma preocupação para aqueles que propugnam pelas idéias de caráter liberal, pois, assim como se permite que surjam condutas liberalizantes com fulcro em determinada crença, pode-se legitimar também posturas ultra-conservadoras e isolacionistas dentro de uma sociedade. (GLAZER, Nathan. A Constituição e a diversidade americana. In: KRISTOL, Irving et al.  A Ordem Constitucional Americana (1787-1987). trad.José Lívio Dantas. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1988, p. 31).

[31]  MACHADO, Jônatas. Op. cit., p.216-217.

[32]  Op. cit., p. 1242 e segs. A fluidez do conceito de sinceridade é traduzia na jurisprudência americana. No caso Thomas v. ReviewBoard [450 US 707 (1981)], a Suprema Corte daquele país determinou que não havia a necessidade de consistência, lógica, aceitação ou compreensão da fé do apelante pela maioria dos membros de sua comunidade –  que não concordavam com sua visão – para que fosse legitimada sua escusa teológica. Em Bowen v. Roy [106, S.Ct. 2147 (1986)], a decisão foi no sentido de aceitar a declaração de que o apelante, que entendia que o ato de inscrição de um número de seguro social  junto ao nome de sua filha macularia seu espírito – algo que não é sustentado por nenhum grupo oficialmente –  estava movido de ímpeto verdadeiramente religioso. No Brasil, o HC 21129/BA (DJ 16.09.2002 p. 212 – Relator: Ministro Gilson Dipp), julgado pelo STJ, manteve a continuidade de ação penal por posse sexual mediante fraude contra um pai-de-santo que, dizendo-se incorporado, mantinha relações sexuais com suas seguidoras religiosas. Na ementa, decide-se que “não há que se falar em trancamento da ação penal por atipicidade da conduta, se os autos dão conta de que o procedimento do paciente reúne os três elementos necessários para a configuração do crime de posse sexual mediante fraude: conjunção carnal, honestidade das vítimas e fraude empregada pelo agente”. A chamada fraude, no direito brasileiro, nada mais é que a ausência de sinceridade relativamente a sua conduta, adulterando-se a realidade para obter algum tipo de vantagem (cf. PRADO, Luis Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro, volume 2: parte especial: arts. 121 a 183 – 2ª ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 522 e segs).

[33]  322 US 78 (1944).

[34]  TRIBE, Laurence. Op. cit., 1244.

[35]  MACHADO, Jônatas, op. cit., p. 216.

[36]  No caso Church of Scientology v. Sweden, já citado, a questão gira em torno de que regramento tomar: o da liberdade de religião, surgida de uma escolha subjetiva e sem possibilidade de valoração de conteúdo por parte do Estado, ou da proteção ao consumidor, eminentemente objetiva, que o resguarda da chamada “propaganda enganosa”. Segundo Cláudia Lima Marques, “a característica principal da publicidade enganosa, segundo o CDC, é ser suscetível de induzir ao erro o consumidor, mesmo através de suas omissões. A interpretação dessa norma deve ser necessariamente ampla, uma vez que ´erro´ é a falsa noção da realidade (...)” (Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais. 4ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 676).  Em sede de liberdade de divulgação de crença, não há que se falar em falsa noção da realidade; esse parâmetro não pode ser aferido. Os limites tornam-se muito mais tênues.

[37]  HC-QO 82424 / RS - Relator:  Min. MOREIRA ALVES, DJ 19-03-2004 P:17.

[38]  Como as referências em Êxodo e Levítico sobre a eliminação dos povos que habitavam a terra de Canaã.

[39]  MELLO, Celso Albuquerque de. et TORRES, Ricardo Lobo. Arquivos de Direitos Humanos. v.5. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 391-392.

[40]  BVERFGE 24, 236. cf. SCHWABE, Jürgen. Cinqüenta anos de Jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal alemão.trad. Beatriz Hennig. Montevideo: Fundação Konrad Adenauer, 2005, p.357.

[41]  Art 4º. (Liberdade de crença, consciência e confessional, Recusa da prestação do serviço militar de guerra)(1)   A liberdade de crença, de consciência e a liberdade de confissão religiosa e ideológica são invioláveis.(2) É garantido o livre exercício da religião.(3)  Ninguém pode ser obrigado, contra a sua consciência, ao serviço militar com armas.

[42]  Recorde-se o ato do bispo Sérgio Von Helde, da Igreja Universal do Reino de Deus, ao proferir golpes com mãos e pés contra uma imagem de Nossa Senhora Aparecida, em 12 de outubro de 1995. O episódio rendeu furor de grupos católicos e gerou debates sobre o limite da liberdade de divulgação de crença no Brasil. Vale aqui lembrar as palavras de Lo>

[43]  Soriano, Aldir Guedes. Op. cit, p. 168.

[44]  Um ilícito criminal praticado por algumas correntes islâmicas é a tradição da fatwa, um decreto de morte contra algum dissidente ou contraventor da fé muçulmana. Na seara do Direito Administrativo, mais propriamente no âmbito ambiental, encontram-se as igrejas que excedem, durante a realização dos cultos, o limite máximo de decibéis permitidos pela legislação. O modo de concretização da crença, nos dois casos, é feito mediante uma violação da lei. Entretanto, não é possível a proibição total da religião, apenas das práticas ilícitas, tal qual dita o princípio da proporcionalidade.

[45]  O mesmo é indicado na BVERFGE 24, 236 (Aktion Rumpelkammer), julgada pelo Tribunal Constitucional Federal Alemão.

[46]  Vale citar aqui o art 2, a, da Lei Orgânica 7/1980, disciplinando a liberdade religiosa na Espanha:Art 2. La libertad religiosa y de culto garantizada por la Constitución

[47]  BULOS, Uadi Lammêgo. Constituição Federal Anotada. 2ª ed., São Paulo: Saraiva, 2001, p. 100.

[48]  MACHADO, Jônatas. Op.cit., p. 230.

[49]  Vale lembrar que “na expressão mais extensa de “manifestação cultual”, englobar-se-iam todas as manifestações que se apresentam seja como complemento de uma cerimônia principal que se desenrolou no interior da igreja (caso típico das procissões religiosas tradicionais), seja como uma prática regular da religião (por exemplo os enterros – sem excluir desta operação a extrema-unção dos moribundos)” (ROBERT, Jacques. Droits de l´homme et libertes fondamentales. Paris: Montchréstien, 1994, p. 527).

[50]  Op. cit., p. 529.

[51]  O tema recorrente no Brasil, nessa seara, é o da violação de leis do silêncio locais por celebrações em templos religiosos. Na França, o Conselho de Estado entendeu que manifestações tradicionais, como algumas procissões, não violam a ordem pública supostamente, não havendo razão para limitação da atividade por parte do Poder Público (C.E., 10 dezembro 1920, Behague; C.E. 24 dezembro 1920, Loeuillet).

[52]  MACHADO, Jônatas. Op. cit., p. 235.

[53]  LOPES, José Reinaldo de Lima. Op. cit., p. 316.

[54]  As associações no Código Civil e a liberdade de religião. In.: Revista dos Tribunais. No. 819, jan 2004, p. 78.

[55]  CAMPOS, Paulo Sanches. Op. cit., p. 79. O mesmo vale quanto às normais gerais de direito civil e o princípio do neminem laedere, que decorre da própria Constituição. É importante ressaltar que as associações podem ser organizadas como um clube, com direitos a prestação de contas, assembléias para decisão sobre o ministro religioso e administrador e outros direitos e deveres inscritos no Código Civil.  A questão é se são obrigadas ou não a fazê-lo.

[56]  “Ningún miembro de una asociación religiosa puede estar atado por otros lazos que no sean los que proceden de la esperanza cierta de la vida eterna. Una iglesia es, entonces, una sociedad de miembros que se unen voluntariamente para esta finalidad” (LOCKE, John. Op. cit., p. 9.)

[57]  Op. cit., p. 81.

[58]  MACHADO, Jônatas. Op. cit., p. 245.

[59]  Em 26/04/2005, a Primeira Igreja Batista de Goiânia foi obrigada a celebrar um casamento por ordem judicial. O pastor da igreja havia se recusado a realizar a cerimônia porque a nubente estava grávida, regra aplicável a todos os membros da igreja (Fonte: http://www.mp.go.gov.br/jornais/comments.php?id=681, visitado em 11/06/02). Entende-se que essa decisão violou os princípios da liberdade religiosa coletiva ao adentrar em terreno absolutamente afeito à denominação evangélica.

[60]  MACHADO, Jônatas. Op. cit., p. 288.

[61]  A classificação é dada e exemplificada pelo site da Comissão de Direitos Humanos de Ontário, Canadá, órgão governamental que cuida da vigilância sobre guarda dos direitos fundamentais dentro do estado,  no artigo Policy on Creed and the Acccomodation of Religious Observances (disponível em http://www.ohrc.on.ca/english/publications/creed-religion-policy.shtml, visitado em 11/04/2011).

[62]  O problema da acomodação é afeito a vários princípios e teorias do direito contemporâneo. A razoabilidade na adaptação de minorias religiosas é uma exigência fundamental, e os três critérios nada mais fazem que esmiuçar essa realidade. O interessante, aqui, é o segundo critério, que exige que o agente obrigado a acomodar procure meios, inclusive econômicos, de fazê-lo, ainda que não os tenha no momento inicial da verificação da desigualdade, mas sem que isso possa prejudicar sua higidez financeira. Inevitável, aqui, não comparar com o princípio da reserva do possível, que, como pode se ver, não atua apenas nos chamados direitos de segunda geração, ou direitos positivos. Na verdade, como bem afirma Ingo W. Sarlet, todos os direitos fundamentais “são, de certo modo, sempre positivos, no sentido de que também os direitos de liberdade e os direitos de defesa em geral exigem – para sua realização – um conjunto de medidas positivas por parte do poder público”(op. cit., p. 275). E não só do Poder Público, como se pode depreender, pois o direito fundamental à liberdade religiosa também vincula os particulares, como no caso dos empregadores que se recusam a respeitar as vestimentas e costumes religiosos dos empregados. Como afirma Daniel Sarmento: “De fato, a extensão destes direitos à esfera privada traduz a intenção de redefinir as relações travadas na sociedade civil, no mercado e na família,  partir dos valores humanitários de igualdade, liberdade e solidariedade, inscritos nos textos constitucionais. Trata-se, portanto, de algo que os pós-modernos não hesitariam em caracterizar como uma ´metanarrativa´; como uma afirmação do universal em detrimento do particular” (Direitos Fundamentais e Relações Privadas. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2004, p. 63).

[63]  Fonte: http://www.ohrc.on.ca/english/publications/creed-religion-policy.shtml, visitado em 10/06/06.

[64]  Um problema que visitava em demasia os tribunais canadenses era o da religião Sikh, oriunda da Índia. Os membros dessa religião tem como tradição a utilização de roupas específicas, turbante (no caso dos homens), e também uma espécie de adaga cerimonial, chamada kirpan. As cortes canadenses já pacificaram o uso do kirpan como religioso, retirando qualquer aplicação de códigos de restrição a armas brancas [ver Singh v. Workmen's Compensation Board Hospital and Rehabilitation Centre (Ontario Bd. of Inquiry 1981) e Pandori v. Peel Board of Education, 47 O.A.C. 234]. Na Inglaterra, a questão foi resolvida por lei (Criminal Justice Act, 1988, c. 33 Pt. XI s. 139), excetuando nominalmente o uso de espadas para fins cerimoniais como permitido.

[65]  No caso Commission scolaire régionale de Chambly v. Bergevin (1994) 22 C.H.R.R. D/1 (S.C.C.), três professores judeus de uma escola católica requisitaram sua ausência durante o feriado do Yom Kippur. A escola permitiu que eles faltassem as aulas, mas que não fossem remunerados por tal dia, como o seriam se fosse num feriado cristão. A decisão judicial sobre essa lide foi no sentido de permitir que eles recebessem como se tivessem trabalhado no dia, à semelhança dos feriados religiosos reconhecidos por lei (statutory holidays).

[66]  Expressão no texto Free Exercise of Religion: The issue: When may the government enforce a law that burdens an individual's ability to exercise his or her religious beliefs?, disponível no site http://www.law.umkc.edu/faculty/projects/ftrials/conlaw/freeexercise.htm, visitado em 10/06/2006.

[67]  98 U.S. 145.

[68]  494 U.S. 872. No caso, Alfred Smith era membro de uma comunidade nativa indígena que tinha por costume consumir o peyote, uma substância entorpecente de uso controlado, durante cerimônias sagradas. Tomado conhecimento da prática, Alfred foi demitido de seu emprego por má-conduta (misconduct), e, portanto, sem direito a receber benefícios de seguro-desemprego pelo estado de Oregon. Implacável, a Suprema Corte manteve decisão anterior em negar esses benefícios.

[69]  Sherbert v. Verner. 374 U.S. 398 (1963). Adeil Sherbert, adventista do 7o dia, foi demitida por não querer trabalhar aos sábados, dia sagrado para sua religião. Com base nessa postura, o governo negou-lhe benefícios de seguro-desemprego. A Suprema Corte, porém, invalidou esse ato e condenou o estado a pagar as devidas verbas.

[70]  Wisconsin v. Yoder, 406 U.S. 205 (1972). Jonas Yoder era membro da antiga ordem dos Amish, grupo religioso que se recusa a manter contato e submeter-se às instituições do Estado norte-americano. Crêem estes que as crianças devem preservar-se do contato com o mundo, sendo educados em casa por seus pais. A Suprema Corte decidiu pela manutenção da recusa dos amish em matricular seus filhos em escolas primárias e secundárias do Wiscosin. 

[71]  Segundo ele, “é necessário que as autoridades públicas provem que se está perante a prossecução de uma finalidade estadual ponderosa, e que a restrição ao direito à liberdade religiosa é o meio menos restritivo para alcançar o fim em vista” (MACHADO, Jônatas, op. cit., p. 313).

[72]  604 P.2d 1068.

[73]  Jensen v. Quaring, 472 U.S. 478 (1985).

[74]  Goldman v. Weinberger, 475 U.S. 503 (1986).

[75]  Escetuando os casos híbridos e os que envolvem situação de desemprego (ver site http://www.law.umkc. edu/faculty/projects/ftrials/conlaw/freeexercise.htm)

[76]  Seção 3: Proteção do exercício de religião de pessoas sob guarda do Estado (institutionalized persons):(a) regra geral: nenhum governo deve impor ônus substancialmente elevado (substantial burdeni) na prática  religiosa de uma pessoa que resida ou esteja confinada em uma instituição estatal, como definido na Seção2 do Civil Rights of Institutionalized Persons Act (42 U.S.C. 1997), mesmo que o ônus resulte de uma regra de aplicação geral, ao menos que o Estado demonstre que aquela imposição:(1) é motivada por relevante interesse público (compelling governmental interest); e (2) é o modo menos restritivo para atingir aquele relevante interesse público. (b) Escopo da aplicação- Esta seção se aplica em qualquer caso que: (1) o ônus substancialmente elevado é imposto num programa ou atividade que recebe financiamento do governo federal; ou (2) o ônus substancialmente elevado, ou a sua retirada, afetem o comércio internacional, interestadual ou com tribos indígenas.

[77]  Na França, o problema da chamada “laicidade positiva” (laïcité positif) também não é bem aceito pelos tribunais (ROBERT, Jacques. op. cit., p. 523-524). A Assembléia Nacional, por sua vez, caminha numa direção ainda mais radical, vide o caso da exigência da retirada do véu  por alunas muçulmanas em escolas públicas do país, em dezembro de 2003. Na Alemanha, em 01/04/2004, o Estado Baden-Württemberg aprovou uma lei que proíbe o uso do véu islâmico como símbolo político nas escolas públicas, mas continua admitindo crucifixos, o hábito das freiras e símbolos judaicos nas salas de aula (notícia veiculada em http://www.dw-world.de/dw/article/0,2144,1158621,00.html, visitado em 11/04/2011).

[78]  Julgada em 12/11/86. Ementa: REPRESENTAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE. ART. 144 DO CE. HORARIO DE VOTAÇÃO. OBJEÇÃO DE CONSCIENCIA. MEDIDA CAUTELAR. PRESSUPOSTOS (INOCORRENCIA). PARA QUE SE CONCEDA A MEDIDA CAUTELAR RECLAMA-SE NÃO SÓ A OCORRENCIA DO 'PERICULUM IN MORA' QUANTO O 'FUMUS BONUS IURIS', RELEVÂNCIA DA QUESTÃO JURÍDICA QUE, SOB O PRISMA PROPOSTO, NÃO SE VERIFICA NA HIPÓTESE. MEDIDA CAUTELAR INDEFERIDA.

[79]  Cabe, por último, apontar a existência da ADI 3118/ES, que deliberará acerca da constitucionalidade de lei capixaba (6.667/01) que “dispõe sobre a liberdade de consciência, convicção religiosa e estabelece a vedação de concursos públicos, vestibulares, aulas e provas no dia escolhido para descanso e atividades religiosas” (ementa).

[80]  O termo é de José Afonso da Silva. Ele classificou os modelos de relação Estado-Igreja em três: o da confusão, o da união e o da separação (op. cit., p. 250).  Norberto Bobbio chamará o sistema de confusão de reductio ad unum, pois pretende-se reduzir as duas figuras, Igreja e Estado, a um só, sendo chamado de teocracia quando se reduz o segundo ao primeiro, e cesaropapismo, quando se reduz o primeiro ao segundo. (Teoria do Ordenamento Jurídico, 10ª ed., Brasília: UnB, 1999, p. 181).

[81]  Desnecessário dissertar sobre a influência do Cristianismo na modificação das formas de governo no ocidente. Quando Cristo dita “Daí a César o que é de César, e a Deus, o que é de Deus” (Lucas 20:25), cinde duas existências, a mundana e a espiritual, discernindo o governo da religião. Somado a isto, a doutrina da evangelização, baseada no texto de Mateus 28:19 (“Portanto, ide, ensinai todas as nações, batizando-as em nome do Pai, do Filho, e do Espírito Santo”), impõe a necessidade de expandir o cristianismo para as fronteiras exteriores do Império e considerá-lo a religião mundial, sobrepairando todos os reinos (não por menos a Igreja Católica chama-se dessa forma – katholicos, em grego, quer dizer universal). Dessa maneira, ao menos no Ocidente, considerou-se a Igreja como um ente apartado da figura do monarca – basta lembrar a idéia das três ordens medievais – os que oram (religiosos), os que combatem (nobres) e os que trabalham (camponeses).

[82]  Jacques Robert aponta quatro momentos no processo de separação do Estado com a Igreja na França. Primeiramente, o estado de união, em que se ostentava uma religião de Estado (religion d´Etat). Posteriormente, as incertezas revolucionárias, em que se tentou “afrancesar” a religião católica, separando-a de Roma, para alguns anos mais tarde, tomar-se uma postura radicalmente contrária ao cristianismo da Santa Sé, propondo-se uma “religião nacional” (les cultes nationaux) para substituir a antiga  O terceiro momento seria o concordatário, em que o Estado se propõe a celebrar pactos com as crenças mais expressivas do país, até chegar ao momento atual, que é o da separação (divorce) entre Igreja e Estado (op. cit, p. 511 e seg.). De qualquer maneira, o modelo francês de laicidade é peculiar, na medida em que procura uniformizar as diversas crenças aos padrões nacionais de civilidade. Isso ficou claro, nos últimos anos, com a lei que proibia o uso do véu em escolas públicas por alunas muçulmanas.

[83]  O princípio geral do regime de concordata é o da liberdade religiosa. Todavia, uma distinção é estabelecida entre os cultos: alguns são simplesmente lícitos, outros gozam de um reconhecimento oficial. Na França, entre 1801 e 1905, chegou-se a elevá-los a um status de serviço público (service public), sendo o sacerdócio financiado pela Fazenda (ROBERT, Jacques. op. cit, p. 513) . Essa categorização lembrava a do regime absolutista, com a diferença de serem diversas manifestações religiosas patrocinadas. Na Espanha, a separação é sustentada constitucionalmente, no art 16, 3., que diz: “Ninguna confesión tendrá carácter estatal. Los poderes públicos tendrán em cuenta las creencias religiosas de la sociedade española y mantendrán las conseguientes relaciones de cooperación com las Iglesias Católica y las demás confesiones”. O regime de concordata é esmiuçado pela Lei de Liberdade Religiosa, em seu art 7º: “art. 7º El Estado, teniendo em cuenta las creencias religiosas existentes em la sociedad española, estabelecerá, em su caso, Acuerdos o Convenio de cooperación com las Iglesias, Confesiones y Comunidades religiosas, inscritas em el registro que por su âmbito y número de creyentes hayan alcanzado notório arraigo em Espana. Em todo caso, estos acuerdos se aprobarán por Ley de las Cortes Generales”.

[84]  Nas palavras de Iso Chaitz Scherkerkewitz: “O fato de ser um país secular, com separação quase que total entre Estado e Religião, não impede que tenhamos em nossa Constituição algumas referências ao modo como deve ser conduzido o Brasil no campo religioso. Tal fato se dá uma vez que o Constituinte reconheceu o caráter inegavelmente benéfico da existência de todas as religiões para a sociedade, seja em virtude da pregação para o fortalecimento da família, estipulação de princípios morais e éticos que acabam por aperfeiçoar os indivíduos, o estímulo à caridade, ou simplesmente pelas obras sociais benevolentes praticadas pelas próprias instituições” (O direito de religião no Brasil. Revista da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo, n. 45-46, jan-dez, 1996, p. 7)

[85]  A política no interior das nações. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1982, p. 457.

[86]  Cumpre distinguir o que se tem entendido como laicidade e laicismo.  O primeiro é aqui identificado como uma atitude de neutralidade do Poder Público perante as diversas manifestações religiosas. O segundo é uma ideologia ou filosofia que não toma por base qualquer referência teológica transcendente ou verdade metafísica (MACHADO, Jônatas. Op. cit, p. 306).

[87]  É considerado de forma dúplice, tanto para proteger o Estado de influências religiosas, como para proteger as religiões da influência estatal.

[88]  SORIANO, Aldir Guedes. Op. cit., p. 78.

[89]  MACHADO, Jônatas. Op. cit., p. 196.

[90]  No entanto, anote-se algumas experiências em que a liberdade religiosa andou supostamente separada do princípio da laicidade. Nos países nórdicos, não há separação entre o Estado nacional e a Igreja Luterana local, mas se verifica o mais pleno respeito ao direito à liberdade religiosa. No regime comunista, o Estado não é apenas separado, mas inimigo das experiências religiosas – para Marx, a religião é o ópio do povo – e, assim, o homo sovieticus não deveria ter o direito de professar a crença que fosse, apenas o dever de abraçar o ateísmo (cf. SORIANO, Ramón. Las liberdades públicas. Madri: Tecnos, 1990. p. 84.)

[91]  A afirmação histórica dos direitos humanos -3ª ed. ver. e ampl. São Paulo:Saraiva, 2003, p. 310.

[92]  Salo de Carvalho ensina que a secularização é a principal característica dos regimes republicanos (CARVALHO, Salo et CARVALHO, Hamilton. Aplicação da Pena e Garantismo. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2002, p. 14).

[93]  Para Irving Kristol, “a secularização e o ´adelgaçamento´ cada vez maiores de nossa ´religião civil´ , embora ampliando seu raio de ação, não apenas a vulgarizou como a enfraqueceu. A vulgarização toma a forma de conceber a sociedade americana, e a sociedade burguesa de um modo geral, como pouco mais que uma ´sociedade aquisitiva´ onde floresce a ´livre empresa´. Isso provoca um ânimo antiburguês entre as pessoas mais bem educadas, que vêem tal sociedade como uma versão moderna da ´cidade dos porcos´ de Platão, ao mesmo tempo em que incita a juventude a um hedonismo libertário que, pelos padrões tradicionais não está muito longe da licenciosidade. Simultaneamente, a população maior se torna insegura de seus ´valores´ (como se diz agora), e seu compromisso com nossas tradições constitucionais, apesar de aparentemente firme, ganha fragilidade. A verdade, que corremos o risco de esquecer, é que uma ´religião civil´ tanto engendra como exige o endosso utilitário. Foi esse endosso moral que sempre levou os americanos a acreditarem que sua ordem constitucional não é apenas eficiente e exeqüível, mas também justa. Para que tal endosso prevaleça, faz-se mister que a ´religião civil´ seja nutrida, quando nada no mínimo, por suas raízes religiosas” (O espírito de 87. In.: KRISTOL, Irving et al. A OrdemConstitucional Americana (1787-1987), trad, José Lívio Dantas. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1988, p. 12-13). A direita moderna ainda vale-se do princípio do idem cives et christianus (o bom cidadão é o bom cristão).

[94]  Op. cit., p. 347.

[95]  Op. cit., p. 1188.

[96]  É a forma utilizada na França (ROBERT, Jacques, op. cit, p. 514).

[97]  Op. cit., p. 1193.

[98]  403 US 602 (1971).

[99]  Op. cit., p 315.

[100]  Essa frase tornou-se célebre em julgados da Suprema Corte em que se questionava a natureza e o conteúdo de termos do tipo “ordem pública” ou “obscenidade”.

[101]  465, U.S, 668 e 771 (1984).

[102]  Foi desenvolvido pelo Justice Kennedy no caso Engel v. Vitale [370 U.S. 421 e 431 (1962)].

[103]  NANDY, Ashis. A política do secularismo e o resgate da tolerância religiosa. Trad. Roberto Cataldo Costa. In.: BALDI, César Augusto. Direitos Humanos na sociedade cosmopolita. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 381. O sociólogo indiano revela que, na Ásia, a idéia de secularismo é sentida de duas formas.  A primeira é a concepção oficial, dos dicionários, indicando “uma área da vida pública onde a religião não é admitida”. A outra, segundo ele não existente no ocidente, seria o “respeito  a todas as religiões, assim sendo geralmente representado por figuras públicas. Explicando melhor, essa idéia de secularismo implica que, embora a vida pública possa ou não ficar livre da religião, ela deve dar espaço para um diálogo contínuo entre as tradições religiosas, e entre o religioso e o secular. Ou seja, em última análise, cada fé de maior relevância na região traz em si uma versão caseira de outras fés, tanto como crítica interna quanto na forma de um lembrete da diversidade da teoria da transcendência” (grifos no original, op. cit, p. 385).

[104]  Op. cit., p.381-382.

[105]  Notícia divulgada em http://hrw.org/english/docs/2006/03/01/china12740.htm, visitado em 11/04/2011.

[106]  Refah Partisi e outros v. Turkey (13.02.2003). Disponível em http://www.echr.coe.int/Eng/Press/2003/ feb/RefahPartisiGCjudgmenteng.htm, visitado em 11/04/2011.

[107]  Notícia disponível em http://hrw.org/english/docs/2005/11/16/turkey12038.htm, visitado em 11/04/2011.



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