O golpe a galope no STF
17/10/2016
Jorge Luiz Souto Maior
A essa altura ninguém mais tem dúvida – ou ao menos não poderia ter – de que o golpe de Estado em curso no Brasil se deu para levar adiante, de forma mais evidenciada e ilimitada, o movimento de retração de direitos imposto à classe trabalhadora desde o advento de outro golpe, o de 1964, sendo que, na situação presente, a quebra institucional se deu para suplantar o empecilho da Constituição de 1988, que alçou as garantias trabalhistas a direitos fundamentais.
Ocorre que diante do desgaste para um governo que possui uma rejeição recorde, acabou se conferindo um papel decisivo ao Supremo Tribunal Federal para a execução dessa tarefa, pois, embora seja o órgão responsável pela salvaguarda da Constituição, é, em verdade, um ente político, já que seus membros são livremente escolhidos pelo Poder Executivo, com aval do Congresso Nacional, e, assim, pode se dispor a reformular a Constituição fora de um procedimento efetivamente democrático.

A atuação danosa do STF aos direitos trabalhistas já se expressou em diversos julgamentos, conforme relatado em outro texto[i]. Mas as duas mais recentes decisões do STF deixaram muito claro que a Constituição não será empecilho para essa escalada.
No dia 07 de outubro, na Reclamação 24.597, de autoria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (USP), o Ministro Dias Toffoli, em decisão monocrática, passando por cima do TST, revogou decisão proferida pelo Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região, que havia determinado a manutenção de 70% dos serviços do respectivo hospital durante a greve.
Disse o TRT da 15ª Região:
“O direito de greve encontra-se assegurado na Lei 7.783/89 que reconhece ser legítimo e juridicamente válido o exercício de tal direito, desde que, é claro, ele seja utilizado pelos trabalhadores com a finalidade de pressionar o empregador a cumprir, adotar ou rever condições contratuais de trabalho. O empregador, por seu turno, não pode adotar medidas que frustrem o exercício do direito constitucional de greve, haja vista a regra preconizada no § 2º do art. 6º da referida lei. Todavia, no caso, cumpre observar que as atividades executadas pelo suscitante caracterizam-se como essenciais, nos termos do art. 10, II e III, da Lei nº 7.783/89. Assim, deve ser observada a manutenção das atividades indispensáveis ao atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade, haja vista o disposto no art. 11 da Lei nº 7.783/89. Presentes, pois, os requisitos do fumus boni iuris e do periculum in mora, concedo em parte a liminar postulada para determinar a manutenção de 70% (setenta por cento) dos trabalhadores e da prestação dos serviços de todos os setores da suscitada (…), sob pena de incidência de multa diária de R$5.000,00 (cinco mil reais) por trabalhador que não cumprir a ordem.”
A Procuradoria do Estado de São Paulo achou pouco e levou o caso ao Supremo, considerando que no julgamento do MI 712/PA, a Suprema Corte havia consignado que durante a greve deve ser garantida a “continuidade do SERVIÇO INADIÁVEL”.
O que se pretendia na Reclamação, de todo modo, era que se definissem quais seriam as atividades inadiáveis no hospital, para que nestas se fixasse o percentual de 100% dos serviços, mas o Ministro Toffoli, de ofício, alterou o limite do processo dizendo que “o que se defende nesta reclamatória é a possibilidade de que os trabalhadores contratados por entidade autárquica sejam privados do exercício do direito de greve em razão de o serviço de saúde possuir natureza essencial e inadiável para a população atendida pelo Sistema Único de Saúde”.
O Ministro Toffoli, então, apoiando-se em Tomás de Aquino, na Suma Teológica (II Seção da II Parte, Questão 64, Artigo 7), conseguiu formular a seguinte lógica: “Não há dúvida quanto a serem, os servidores públicos, titulares do direito de greve. Porém, tal e qual é lícito matar a outrem em vista do bem comum, não será ilícita a recusa do direito de greve a tais e quais servidores públicos em benefício do bem comum.”
E, assim, concluiu: “Atividades das quais dependam a manutenção da ordem pública e a segurança pública, a administração da Justiça – onde as carreiras de Estado, cujos membros exercem atividades indelegáveis, inclusive as de exação tributária – e a saúde pública não estão inseridos no elenco dos servidores alcançados por esse direito”.
A Constituição, no entanto, garante, expressamente, aos servidores públicos o direito de greve, sem qualquer exclusão (art. 37, VII), podendo-se pensar em limites quanto aos percentuais de continuidade dos serviços, para “atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade” (art. 9º), que, segundo a Lei n. 7.783/89, aplicável aos servidores públicos por decisão do próprio Supremo (MI 712), devem ser definidos por acordo entre o empregador e o sindicato ou a comissão de greve (arts. 9º e 11).
Fato é que sem que a Constituição de 1988 tivesse sido formalmente revisada, o Ministro Dias Toffoli deu a ela um sentido próprio, desconsiderando completamente o contexto histórico em que foi promulgada, para o efeito de fazer retroagir a greve ao período da ditadura militar, negando o direito de greve não apenas aos trabalhadores da saúde, de modo geral, como também aos servidores do Judiciário.
No dia 14 de outubro, o Ministro Gilmar Mendes, na Medida Cautelar para Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 323, em decisão com 57 laudas, a pedido da Confederação Nacional dos Estabelecimentos de Ensino – CONFENEN, também passando por cima do Tribunal Superior do Trabalho, reformulou decisões dos Tribunais Regionais do Trabalho da 1ª e da 2ª Regiões, que se apoiavam no teor da Súmula 277 do TST, a qual estabelece a ultratividade das cláusulas fixadas em acordos e convenções coletivas de trabalho, ou seja, a sua integração aos contratos individuais do trabalho até que nova negociação a elas se referira expressamente.
Lembre-se que a compreensão do TST, firmada na Súmula 277, em 2012, foi um avanço determinado pela EC 45, acolhendo, inclusive, corrente doutrinária respaldada em debate mundial.
No entanto, o Ministro Gilmar Mendes, simplesmente desconsiderando toda a história por trás desse avanço jurisprudencial, que se estabeleceu, inclusive, em perfeita consonância com o teor do caput do art. 7º da Constituição Federal, achou por bem dizer que: “Ao melhor analisar a questão, inclusive após o recebimento de informações dos tribunais trabalhistas, pude ter percepção mais ampla da gravidade do que se está aqui a discutir. Em consulta à jurisprudência atual, verifico que a Justiça Trabalhista segue reiteradamente aplicando a alteração jurisprudencial consolidada na nova redação da Súmula 277, claramente firmada sem base legal ou constitucional que a suporte”.
Citando, expressamente, decisões do TST, notadamente, “AIRR-289- 22.2014.5.03.0037, Rel. Min. Cláudio Mascarenhas Brandão, Sétima Turma, julgado em 8.6.2016; ARR-626-22.2012.5.15.0045, Rel. Min. Maria Cristina Irigoyen Peduzzi, Oitava Turma, julgado em 25.11.2015; RR-1125- 52.2013.5.15.0083 Rel. Min. Maria Cristina Irigoyen Peduzzi, Oitava Turma, julgado em 07.10.2015”, o Ministro Gilmar Mendes acusou tais decisões de serem casuísticas e de aparentemente favorecerem apenas a um lado da relação trabalhista.
Antes de enfrentar o mérito propriamente dito, na decisão de 57 páginas, o Ministro Gilmar Mendes usa 33 páginas para justificar a legitimidade e a pertinência da medida. Depois, transbordando o limite do processo, discorre sobre a “tendência” do Supremo em “valorizar a autonomia coletiva da vontade e da autocomposição dos conflitos trabalhistas”, fazendo referência ao RE 590.415-RG, Rel. Ministro Roberto Barroso.
Na sequência, refere-se ao precedente do AI 731.954-RG, no qual o Supremo, em decisão da lavra do Ministro Cezar Peluso, considerou que o debate em torno da ultratividade, que antes não estava garantido pela Súmula 277 do TST, era matéria de índole infraconstitucional. Mas, agora, que a Súmula 277 do TST, embora tratando do mesmo tema, a ultratividade, mudou seu teor, o Ministro Gilmar Mendes, porque não concorda com o novo entendimento que fora fixado pelo TST, considerou que a ultratividade passou a ser matéria de índole constitucional.
Em seguida, o Ministro Gilmar Mendes apresenta manifestações de parte da doutrina trabalhista nacional. Desprezando o posicionamento de Augusto César Leite de Carvalho, Kátia Magalhães Arruda, Maurício Godinho Delgado e Rodolfo Pamplona Filho, e apoiando-se em Julio Bernardo do Carmo, Antônio Carlos de Aguiar e Sérgio Pinto Martins, conclui: “É evidente, portanto, em breve análise, que o princípio da ultratividade da norma coletiva apresenta diversos aspectos que precisam ser levados em consideração quando de sua adoção ou não. São questões que já foram apreciadas pelo Poder Legislativo ao menos em duas ocasiões – na elaboração e na revogação da Lei 8.542/1992 – e que deixam claro tratar-se de tema a ser definido por processo legislativo específico.”
No julgamento da questão propriamente dita, o Ministro Gilmar Mendes disse que o TST, na Súmula 277, proferiu uma “jurisprudência sentimental”, em um “ativismo um tanto quantonaif”, ou seja, “ingênuo” ou “popularesco”.
Preconizou que: “Há limites que precisam ser observados no Estado democrático de direito e dos quais não se pode deliberadamente afastar para favorecer grupo específico.”
E disse mais:
“Não cabe ao Tribunal Superior do Trabalho agir excepcionalmente e, para chegar a determinado objetivo, interpretar norma constitucional de forma arbitrária.”
Em suma, o Ministro Gilmar Mendes, seguindo entendimento do Ministro Ives Gandra da Silva Martins Filho, que havia sido vencido no TST, considerou que a questão da ultratividade só poderia ser definida em lei e que a alteração da Constituição, promovida pela EC 45, no sentido de garantir aos trabalhadores que a sentença normativa proferida em Dissídio Coletivo preservasse “as disposições mínimas legais de proteção ao trabalho, bem como as convencionadas anteriormente” (§ 2º, art. 114), não se estenderia às negociações coletivas.
Assim, determinou “a suspensão de todos os processos em curso e dos efeitos de decisões judiciais proferidas no âmbito da Justiça do Trabalho que versem sobre a aplicação da ultratividade de normas de acordos e de convenções coletivas, sem prejuízo do término de sua fase instrutória, bem como das execuções já iniciadas”.
Claro que a decisão do Ministro Gilmar Mendes cai em contradição, pois ao tentar favorecer a demanda de retirada de direitos trabalhistas por meio da prevalência do negociado sobre o legislado, acaba dizendo que essa prevalência tem prazo limitado.
O mais importante, no entanto, é destacar que o Ministro Gilmar Mendes interpretou a Constituição, a partir de sua exclusiva visão de mundo, e chamou aqueles que não têm a mesma visão de ingênuos.
Até aí tudo bem, pois no peito dos ingênuos também bate um coração.
A grande questão é saber o que o Ministro Gilmar Mendes, já que afirmou que “não cabe ao Tribunal Superior do Trabalho agir excepcionalmente e, para chegar a determinado objetivo, interpretar norma constitucional de forma arbitrária”, teria a dizer sobre a decisão do Ministro Dias Toffoli que, por ativismo judicial, dizimou o direito constitucional de greve dos servidores do Judiciário e da saúde, de modo geral, assim como se não seria ativismo a definição acerca da índole constitucional de uma matéria quando se está de acordo ou não se está de acordo com o posicionamento jurídico adotado nas demais Cortes.
Além disso, importante que esclarecesse, já que também disse que “há limites que precisam ser observados no Estado democrático de direito e dos quais não se pode deliberadamente afastar para favorecer grupo específico”, se o ato do STF de chegar sistematicamente a interpretações contrárias aos interesses dos trabalhadores, conforme verificado nos dois processos acima e nos processos: ADI 3934 (05/09); ADC 16 (11/10); RE 586.453 (02/13); RE 583.050 (02/13); RE 589.998 (03/13); ARE 709.212 (13/11/14); RE AI 664.335 (9/12/14); ADI 5209 (23/12/14); ADI 1923 (15/04/15); RE 590.415 (30/04/15); RE 895.759 (8/09/16); e ADI 4842 (14/0916); sendo que se já deu indicações de que poderá seguir o mesmo direcionamento nos processos: ADI 1625; RE 658.312 e RE 693.456; deixando antever, ainda, que o mesmo pode advir nos processos: (ARE 647.561 – dispensas coletivas); (AI 853.275/RJ – direito de greve); (ARE 713.211 – ampliação da terceirização), não seria, exatamente, um favorecimento de um grupo especifico da sociedade, qual seja, o setor econômico?