Comentários às inovações relativas aos crimes de
trânsito - Lei 12.971/14
Publicado em 05/2014. Elaborado em 05/2014.
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ASSUNTOS:
O presente artigo tratará das modificações relativas aos crimes do
Código de Trânsito Brasileiro introduzidas pela lei 12.971/14.
INTRODUÇÃO
A lei 12.971/14 alterou os arts. 173, 174, 175,
191, 202, 203, 292, 302, 303, 306 e 308 da do Código de Trânsito Brasileiro -
CTB (Lei no 9.503, de 23 de setembro de 1997), para dispor sobre sanções
administrativas e crimes de trânsito.
Neste artigo ficaremos limitados às modificações
concernentes aos crimes em espécie do CTB.
1. INÍCIO
DE VIGÊNCIA
Primeiramente, com relação à lei penal no tempo,
temos que a nova lei entrará em vigor no 1º dia do 6º mês após a sua
publicação (artigo 2º).
Desta feita, como a lei foi publicada no dia 09
de maio de 2014, a sua vigência terá início no dia 01 de novembro de
2014.
Como veremos no decorrer da nossa explanação,
houve alguns pontos favoráveis aos réus de crimes de trânsito, como por exemplo
a previsão do crime de “racha sem dolo eventual”.
Sendo assim, surge a já famigerada questão: “no
período de vacatio legis, a lei penal já tem força suficiente para ser
considerada mais favorável, aplicando-se retroativamente a fatos pretéritos ou
presentes?”[1] Há
dois posicionamentos:
a)
Sim. Temos como seguidores desta corrente: Paulo José da Costa Júnior,
citando Raggi e fazendo referência também a Nélson
Hungria e Heleno Fragoso: “a lei em período de vacatio,
não deixa de ser lei posterior, devendo, pois, ser aplicada desde logo, se mais
favorável ao réu”[2]; Cernicchiaro (“a
vacatio legis é estabelecida para favorecer pessoas. Instituto dessa natureza
não pode ocasionar efeito oposto, ou seja, gerar prejuízo, aumentar o ônus”)[3] e Alberto
Silva Franco[4].
b)
Não. Francisco Dirceu de Barros entende de forma contrária à
posição anterior, pois a lei nova, em período de vacatio legis, ainda não vige,
estando as relações sociais sob a regência da lei antiga, ainda que em vigor.
Esta também é a posição dominante do STF: “Lei. Eficácia. Vacatio
Legis. Se a lei estava em vacatio legis, nào tinha eficácia (STF, Inq.
1.879-DF e RTJ 190/851)[5].
2. HOMICÍDIO
DE TRÂNSITO QUALIFICADO (ART. 302, § 2º, CTB)
A redação do artigo 302, caput do CTB
permaneceu inalterada com o advento da nova lei. Veja-se:
Art. 302. Praticar homicídio culposo na direção
de veículo automotor:
Penas - detenção, de dois a quatro
anos, e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para
dirigir veículo automotor.
Já com relação antigo parágrafo único do artigo
302 a sua redação continuou intacta, mas agora com previsão no § 1º. Veja-se
que a redação continua sendo a mesma:
No homicídio culposo cometido na direção de
veículo automotor, a pena é aumentada de 1/3 (um terço) à metade, se o agente:
I - não possuir Permissão para Dirigir ou
Carteira de Habilitação;
II - praticá-lo em faixa de pedestres ou na
calçada;
III - deixar de prestar socorro, quando possível
fazê-lo sem risco pessoal, à vítima do acidente;
IV - no exercício de sua profissão ou atividade,
estiver conduzindo veículo de transporte de passageiros.
Trouxe a nova lei o § 2º ao artigo 302 do CTB,
criando-se uma forma qualificada de homicídio no trânsito. Veja-se a nova
previsão:
"§ 2o Se o agente conduz veículo automotor
com capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool ou de
outra substância psicoativa que determine dependência ou participa, em via, de
corrida, disputa ou competição automobilística ou ainda de exibição ou
demonstração de perícia em manobra de veículo automotor, não autorizada
pela autoridade competente:
Penas - reclusão, de 2 (dois) a 4
(quatro) anos, e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a
habilitação para dirigir veículo automotor.”
Diante de uma análise superficial, você leitor
pode ter se perguntado: mas o que teve de qualificado no preceito secundário do
§ 2º do artigo 302, com relação ao caput do mesmo artigo? Veja-se que a pena do
artigo 302, caput é de 2 a 4 anos, ao passo que a pena do § 2º do
artigo 302 também é de 2 a 4 anos! O que há de diferença entre os preceitos
secundários é na realidade a modalidade de pena privativa de liberdade, e não
no lapso temporal. Trata-se, portanto, de uma forma qualificada de qualidade da
pena e não de quantidade da pena (algo inovador na seara penal, pois sempre a
qualificadora esteve ligada à quantidade de pena, e não à qualidade - este
caso foi a primeira notícia de qualificadora pela qualidade da pena).
TEXTOS
RELACIONADOS
Muito embora o desejo do legislador com a
implementação da referida qualificadora tenha sido possibilitar aos juízes
fixar o regime inicial fechado de cumprimento de pena nas hipóteses elencadas
no referido dispositivo legal, é certo que tal novidade terá poucos
efeitos práticos, pois a grande maioria dos juízes tem o costume de fixar a
pena nos crimes de trânsito no regime aberto. Aliás, o fato de prever que a
pena será de reclusão, não é fator impeditivo para que o juiz fixe a pena em
regime aberto, e nem será fator impeditivo para que o juiz faça a substituição
por penas restritivas de direitos , levando-se em conta que a substituição se
dará qualquer que seja a quantidade da pena nos crimes culposos (art. 44,
inciso I, in fine do CP)
Nos casos concretos envolvendo crimes culposos é
praxe que os juízes substituam a pena privativa de liberdade por restritivas de
direitos somente pelo fato de se tratar de crime culposo, esquecendo-se de
analisar o inciso III do artigo 44 do Código Penal, que reza: "As penas
restritivas de direitos são autônomas e substituem as privativas de liberdade,
quando: a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social e a
personalidade do condenado, bem como os motivos e as circunstâncias indicarem
que essa substituição seja suficiente". Esse costume judiciário deve ser
corrigido, de maneira que os juízes façam a análise deste dispositivo, de
maneira a evitar impunidades. Exemplo: um agente que comete um homicídio
dirigindo veículo automotor em alta velocidade em disputa de "racha"
e com alta concentração de álcool no sangue, e mesmo após a ocorrência deste
fato o agente continua participando de "rachas", bebendo e dirigindo,
este agente em virtude de sua culpabilidade, personalidade fria e conduta
social não merece ser agraciado pela substituição da pena privativa de
liberdade por restritiva de direitos. Aliás, levando-se em conta as
circunstâncias do artigo 59 do Código Penal, deveria este agente ter seu regime
inicial de cumprimento de pena no fechado ou semiaberto.
Incumbe salientar que com a previsão da referida
forma qualificada ao homicídio culposo quando o agente conduzir veículo com a
capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool ou de outra
substância psicoativa ou determine dependência, tornou-se certa a
impossibilidade de incidência concomitante do artigo 306 do CTB (que traz
a figura típica do crime de embriaguez ao volante) de maneira a gerar concurso
material de crimes ou formal de crimes (conforme alguns juízes e Tribunais
vinham entendendo), sob pena de haver punição duas vezes pelo mesmo fato,
violando o princípio do ne bis in idem (proibição de se punir duas
vezes o mesmo fato).
Assim, resta claro que o legislador optou pela
absorção do delito de dano. Deste modo, plenamente válidas as lições de
Guilherme de Souza Nucci (ainda anteriores à nova lei) no sentido de que:
“não há possibilidade de se considerar que o
crime de perigo, existente para evitar a concretização do delito de dano, seja
punido quando já se efetivou. Ilustrando, sob outro cenário: se o homicídio for
cometido com emprego de arma de fogo e o agente não possuir porte ou registro
da arma, será punido somente por homicídio. Não mais interessa a infração
referente à arma de fogo, crime de perigo, pois atingido o delito de dano”[6].
Destarte, data máxima venia, tornou-se
inaplicável qualquer entendimento jurisprudencial no sentdido de se admitir o
referido concurso material ou formal de crimes. Nesta senda, os julgados abaixo
transcritos não merecem guarida no nosso ordenamento jurídico:
“embriaguez ao volante, homicídio e lesões
corporais culposas na direção de veículo automotor. Provas evidenciando a
responsabilidade do acusado. Culpa evidente. Impossibilidade de absorção do
crime de embriaguez pelo homicídio, pois aquele delito, de perigo abstrato, já
estava consumado quando do acidente". (Ap 830.821. 3/5. 5ª C. rel.
Pinheiro Franco. 30.03.2006. v.u.).
Ementa: PENAL
E PROCESSUAL. EMBRIAGUEZ AO VOLANTE. ATROPELAMENTO
E MORTE EM ACOSTAMENTO. PROVA SATISFATÓRIA DA MATERIALIDADE E
AUTORIA. ALEGAÇÃO DE IMPRESTABILIDADE DO TESTE DO ETILÔMETRO E ATIPICIDADE DA
CONDUTA. PRETENSÃO À ABSOLVIÇÃO. IMPROCEDÊNCIA.CONCURSO MATERIAL DE CRIMES. SENTENÇA
CONFIRMADA. 1 O RÉU FOI CONDENADO POR INFRINGIR O ARTIGO 302 E 306 DA LEI 9.503
/97, EIS QUE, ALCOOLIZADO, CONDUZIA AUTOMÓVEL E TENTOU ULTRAPASSAR OUTRO
VEÍCULO EM CONDIÇÕES ADVERSAS, RESULTANDO NA INVASÃO DA PISTA CONTRÁRIA E, EM
SEGUIDA, ABALROA OUTRO CARRO, PROVOCANDO-LHE DESCONTROLE QUE VEIO A COLHER A
VITIMA NO ACOSTAMENTO DA RODOVIA, MATANDO-A. 2 O TIPO DO ARTIGO 306 DO CÓDIGO
DE TRÂNSITO BRASILEIRO CONFIGURA CRIME DE PERIGO ABSTRATO QUE
SE CONFIGURA QUANDO O AGENTE, CONDUZINDO AUTOMÓVEL COM CONCENTRAÇÃO DE ÁLCOOL
NO SANGUE SUPERIOR AO LIMITE DA LEI, NÃO ATENTOU PARA AS CONDIÇÕES DE TRÁFEGO E
PROVOCOU A COLISÃO QUE CULMINOU COM A MORTE DE TRANSEUNTE. A IMPRUDÊNCIA TAMBÉM
FICOU CARACTERIZADA E O SEU RESULTADO LESIVO INDESEJADO, CONFIGURANDO O ARTIGO
302 DO MESMO DIPLOMA LEGAL. 3 NÃO HÁ CONCURSO FORMAL DE CRIMES QUANDO
INEXISTA DOIS RESULTADOS DECORRENTE DA MESMA AÇÃO. A EMBRIAGUEZ AOVOLANTE FOI
CONSUMADA QUANDO O MOTORISTA, COM TEOR ALCOÓLICO SUPERIOR A 0.6 MG/L, A ASSUMIU
O CONTROLE DO VEÍCULO EM VIA PÚBLICA. A LESÃO CORPORAL CULPOSA NA CONDUÇÃO DE
VEÍCULO AUTOMOTOR SE CONSUMOU QUANDO A VÍTIMA FOI ATINGIDA, EM RAZÃO DE CONDUTA
IMPRUDENTE E AUTÔNOMA EM RELAÇÃO À EMBRIAGUEZ. 4 APELAÇÃO
DESPROVIDA. (TJ-DF - APR APR 21243220108070002 DF 0002124-32.2010.807.0002
(TJ-DF) Data de publicação: 30/05/2012)
A redação utilizada no § 2º do artigo 302
poderia ter sido melhor, pois não mencionou o resultado morte, dando a falsa
aparência de ser um crime autônomo (e não qualificadora do homicídio culposo na
direção de veículo automotor).
Outro ponto importante a ser destacado, é
que com a entrada em vigor do § 2º do art. 302, ficará reforçado o
posicionamento adotado majoritariamente por nossos tribunais superiores no
sentido de que a embriaguez ao volante, por si só não é suficiente para
caracterizar dolo eventual quando o agente conduzindo veículo automotor
produzir a morte de alguém.
2.1. DA
ABSURDA ANTINOMIA ENTRE OS ARTIGOS 302, § 2º E 308, 2° DO CTB
A lei 12.971/2014 possui uma execrável
contradição no que tange ao fato de o agente praticar homicídio culposo na
direção de veículo automotor enquanto participa de “racha”.
Veja-se que o § 2º do art. 302 afirma que
condutor que participa de “racha” e causa morte de forma culposa responde a
pena de 2 a 4 anos, ao passo que no § 2º do art. 308 afirma que condutor que
participa de “racha” e causa morte de forma culposa (conforme redação da lei:
não quis o resultado nem assumiu o risco de produzi-lo) responde a pena de 5 a
10 anos!
O legislador foi totalmente desatento na redação
dos dispositivos, gerando uma absurda antinomia.
Veja-se que tal antinomia foi até apontada pelo
relatório da Comissão de Constituição e Justiça e Cidadania quando da análise
do Substitutivo do Senado Federal ao Projeto de Lei n. 2592/2007:
Todavia vislumbramos que no Projeto original
encontra-se uma incongruência de natureza redacional. Ora a parte final do
§ 2º do art. 302 e o disposto no art. 308, ambos alterados pelo Projeto de Lei
nº 2.592-A/07, aprovado na Câmara dos Deputados em 24/4/2013, existe
duplicidade de condutas típicas, pois, em acatando emenda de Plenário, esqueceu
o Relator de verificar que o fato já estava tipificado em outro dispositivo[7].
Deve-se resolver este problema com urgência e
ainda no prazo de vacatio legis, adotando-se a posição do Senador Pedro
Taques que ofereceu, ainda na fase de projeto da lei, emenda suprimindo o
referido § 2º do art. 302 (Emenda nº 01-CCJ), que teve, para nossa
infelicidade, a proposta rejeitada.
De toda forma, se não resolverem tal problemática,
restará aos juristas e aplicadores do direito dar a melhor solução para o caso.
Há corrente dizendo que a melhor solução é
interpretar a lei da maneira mais favorável possível ao réu, de modo
que diante de um homicídio culposo na direção de veículo automotor
enquanto o condutor participava de “racha”, ele será punido na forma do §2º do
art. 302 do CTB (pena mais branda) e o § 2º do art. 308 do CTB (pena mais alta)
será inaplicável a qualquer hipótese. Neste sentido já temos o posicionamento
do renomado e ilustre jurista Luiz Flávio Gomes:
O problema: aqui no art. 308 o resultado morte
provocado culposamente aparece como qualificadora do delito de participação em
“racha”. Já no art. 302 (homicídio culposo), é a participação em “racha” que o
torna qualificado (mais grave). No delito de participação em “racha”, é a morte
que o qualifica. No delito de homicídio, é a participação no racha que o
qualifica. Mas tudo isso é a mesma coisa! O mesmo fato foi descrito duas vezes.
Na primeira situação (art. 302), a descrição legal foi de trás para frente
(morte em virtude do “racha”); na segunda (art. 308), da frente para trás
(“racha” e depois a morte). Para não haver nenhuma dúvida (talvez essa tenha
sido a preocupação do emérito legislador), descreveu-se o mesmo fato duas
vezes. Seria uma mera excrescência legis (o que já é bastante
reprovável), se não fosse o seguinte detalhe: No art. 302 (homicídio
culposo em razão de “racha”) a pena é de reclusão de dois a quatro anos; no
art. 308 (“racha com resultado morte decorrente de culpa”) a pena é de cinco a
dez anos de reclusão! Mesmo fato, com penas diferentes (juridicamente falando,
sempre se aplica a norma mais favorável ao réu, ou seja, deve incidir a pena
mais branda – in dubio pro libertate)[8].
Contudo, a corrente do brilhante professor e
Juiz Federal Márcio André Lopes Cavalcante traz solução
interessante, que passamos a transcrevê-la:
Considerando que não se pode negar vigência
(transformar em “letra morta”) o § 2º do art. 308 do CTB e tendo em vista que a
interpretação entre os dispositivos de uma mesma lei deve ser sistêmica, será
possível construir a seguinte distinção:
• Se o condutor, durante o “racha”, causou a
morte de alguém agindo com culpa INCONSCIENTE: aplica-se o § 2º do art. 302 do
CTB;
• Se o condutor, durante o “racha”, causou a
morte de alguém agindo com culpa CONSCIENTE: aplica-se o § 2º do art. 308 do
CTB[9].
Pareceu razoável a interpretação sugerida pelo
Cavalcante , pois ela busca preservar o texto de lei, de maneira que nenhuma
construção dogmática entre em contradição com a norma legal, estando esta
corrente mais de acordo com o modus operandi do método dogmático.
Com relação ao modus operandi do
método dogmático merecem ser apontadas as lições de Eugênio Raúl Zaffaroni
e José Henrique Pierangeli:
Frente a um conjunto de disposições legais, o
jurista comporta-se como físico: deve tomar os dados, analisá-los, estabelecer
as semelhanças e diferenças e reduzir o material com que opera a um conceito
único. Com essas unidades elabora uma construção lógica, que é uma teoria, em
que cada uma dessas unidades ou dogmas, encontra o seu lugar e sua explicação.
Cumprida esta tarefa, deve formular uma hipótese, a fim de averiguar se essa
teoria funciona de conformidade com o texto legal, isto é, se não há elementos
que se encontram sem explicação, ou seja, se alguma parte do todo se contradiz.
Este último passo é exigido porque nenhuma construção pode entrar em
contradição com o texto legal. Esse é o processo de verificação. A
construção não só não pode não deve ser contraditada pelos textos, mas tampouco
pode ser ela mesma contraditória. Em síntese, o jurista, como qualquer
cientista, deve elaborar um sistema não contraditório de proposições cujo valor
de verdade deve ser verdadeiro e que expliquem os fatos de seu horizonte de
projeção científico. (Manual de Direito Penal – parte geral. V. 1. 9a ed.
São Paulo: RT. 2011. p. 152).
Sendo assim, a solução dada pelo ilustre
doutrinador Cavalcanti está compatível com toda a dogmática e com a
jurisprudência (principalmente do Supremo Tribunal Federal), abrangendo
inclusive os conceitos de culpa consciente e culpa inconsciente,
equilibrando-se o fator culpabilidade com a pena que lhe corresponde, não
gerando interpretação que desconsidere o texto do Poder Legislativo (que aliás:
não são técnicos em direito, mas sim representantes do povo eleitos
legitimamente), muito embora devesse ser modificado o conteúdo do aludido
dispositivo no prazo de vacatio legis para evitar problemas futuros.
3. LESÃO
CORPORAL (ARTIGO 303, CTB)
Com relação ao crime previsto no artigo 303 do
CTB (lesão corporal culposa na direção de veículo automotor), a lei em comento
manteve a causa de aumento de pena de 1/3 à metade, só se adequando à nova
localização das hipóteses em que há ocorrência do aumento, que agora se
encontram no § 1º do artigo 302, e não mais no agora inexistente parágrafo
único do artigo 302.
Assim, manteve-se o aumento da pena de 1/3 até a
metade se o agente:
I - não possuir Permissão para Dirigir ou
Carteira de Habilitação;
II - praticá-lo em faixa de pedestres ou na
calçada;
III - deixar de prestar socorro, quando possível
fazê-lo sem risco pessoal, à vítima do acidente;
IV - no exercício de sua profissão ou atividade,
estiver conduzindo veículo de transporte de passageiros.
4. O
ACRÉSCIMO DO EXAME TOXICOLÓGICO AOS §§ 2º E 3º DO ARTIGO 306 DO CTB
Manteve-se inalterado o artigo
306, caput e o seu § 1º, que rezam:
Art. 306. Conduzir veículo automotor com
capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool ou de outra
substância psicoativa que determine
dependência: (Redação
dada pela Lei nº 12.760, de 2012)
Penas - detenção, de seis meses a três anos,
multa e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para
dirigir veículo automotor.
§ 1o As condutas previstas
no caput serão constatadas
por: (Incluído
pela Lei nº 12.760, de 2012)
I - concentração igual ou superior a 6
decigramas de álcool por litro de sangue ou igual ou superior a 0,3 miligrama
de álcool por litro de ar alveolar;
ou (Incluído
pela Lei nº 12.760, de 2012)
II - sinais que indiquem, na forma disciplinada
pelo Contran, alteração da capacidade
psicomotora. (Incluído
pela Lei nº 12.760, de 2012)
A novidade trazida pela lei 12.971/14 diz
respeito ao § 2º do artigo 306, que inseriu a possibilidade de verificação de
influência de outra substância psicoativa por meio do exame toxicológico (que
não era antes previsto).
A redação anterior aparentemente só previa os exames
de alcoolemia, exame clínico, perícia, vídeo, prova testemunhal. Dissemos
“aparentemente”, pois já se admitia (e ainda se admite) “outros meios de prova
em direito admitidos”, sendo, portanto, de pouca relevância prática a
introdução da possibilidade de exame toxicológico, pois este já seria admitido,
enquadrando-o (pela redação antiga) na expressão “outros meios de prova em
direito admitidos” (esta expressão, aliás, reafirma o princípio da liberdade da
prova, com importante ressalva quanto ao direito à contraprova).
De toda forma, o legislador temeroso pelo
“jeitinho brasileiro” de tentar arrumar “manobras jurídicas”, pretendeu deixar
clara a possibilidade de realização de exame toxicológico.
No § 3º do artigo 306, também se inseriu a
expressão “toxicológicos”, harmonizando com o § 2º do artigo 306 (agora a pouco
estudado), trazendo que o COTRAN disporá também com relação aos distintos
testes toxicológicos para efeito de caracterização do crime tipificado no
artigo 306, caput do CTB.
Autor
Advogado. Especialista em direito público com
ênfase em direito constitucional, administrativo e tributário pela Escola
Paulista da Magistratura. Especialista em direito público pela Escola Damásio
de Jesus. Pós-graduando em direito contratual pela Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo. Extensão Universitária em Direito Imobiliário pela
Escola Paulista de Direito. Extensão Universitária em Recursos no Direito
Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Professor
conteudista do Atualidades do Direito dos editores Luiz Flávio Gomes e Alice
Bianchini. Possuiu vários artigos em revistas jurídicas, tais como Lex,
Magister, Visão Jurídica, muitas das quais com matéria de capa. Colaborador
permanente, a convite, da Revista COAD/ADV. Ex-Representante do Instituto
Brasileiro de Direito e Política da Segurança Pública (IDESP.Brasil).
Ex-estagiário concursado do Ministério Público de São Paulo. Fiscal do Exame
Nacional da Ordem dos Advogados do Brasil.
5. DA NOVA REDAÇÃO DO ARTIGO 308 DO CTB (CRIME DE PARTICIPAÇÃO EM COMPETIÇÃO AUTOMOBILÍSTICA EM VIA PÚBLICA)
O artigo 308 do CTB traz a previsão típica da conduta popularmente
conhecida como “racha”, vale dizer, a competição, disputa ou corrida não
autorizada.
A redação do preceito primário (caput do artigo 308) teve sua parte
final alterada. Veja-se:
Redação antiga - No Art. 308. Participar, na direção de veículo automotor,
em via pública, de corrida, disputa ou competição automobilística não
autorizada pela autoridade competente, desde que resulte dano potencial à
incolumidade pública ou privada:
Nova redação - “Art. 308. Participar, na direção de veículo
automotor, em via pública, de corrida, disputa ou competição automobilística
não autorizada pela autoridade competente, gerando situação de
risco à incolumidade pública ou privada:
Veja-se que a nova lei substituiu a expressão “resulte dano
potencial” por “gerando situação de risco”.
Levando-se em conta que a intenção do legislador foi caminhar pelo
enrijecimento do rigor punitivo desta norma penal, entendemos que a
substituição de tais expressões teve por objetivo deixar claro que o crime do
artigo 308 do CTB é de perigo abstrato, pois fala em risco, e não dano
potencial. Aliás, “dano potencial” é uma expressão mais forte, vale dizer,
demonstra que a situação de portabilidade de dano é concreta (crime de perigo
concreto), e dentro do inter criminis, está mais próximo do resultado
danoso, ao passo que gerar “situação de risco” é algo que está um pouco mais
longe de se concretizar (perigo abstrato).
Ao nosso ver essa foi a finalidade da alteração das expressões, afinal
não há outro motivo para a modificação, levando-se em conta que a lei não
contém palavras inúteis.
No preceito secundário do artigo 308 do CTB, houve aumento da máxima de
2 anos para 3 anos, transformando-o em um crime de médio potencial ofensivo.
Todavia, como a pena mínima permaneceu em seis meses, continua sendo
possível, para a modalidade do caput, a suspensão condicional do processo, nos
termos da lei 9099/95.
6. COMENTÁRIOS
AOS §§ 1º E 2º DO ARTIGO 308 DO CTB
O art. 308 passou a ter duas formas qualificadas:
§ 1o Se da prática do crime previsto no caput resultar lesão corporal de
natureza grave, e as circunstâncias demonstrarem que o agente não quis o
resultado nem assumiu o risco de produzi-lo, a pena privativa de liberdade é de
reclusão, de 3 (três) a 6 (seis) anos, sem prejuízo das outras penas
previstas neste artigo.
§ 2o Se da prática do crime previsto no caput resultar morte, e as
circunstâncias demonstrarem que o agente não quis o resultado nem assumiu o
risco de produzi-lo, a pena privativa de liberdade é de reclusão de 5 (cinco) a
10 (dez) anos, sem prejuízo das outras penas previstas neste artigo.”
Aparentemente pretendeu o legislador com estas duas formas qualificadas
torna-los crimes preterdolosos, onde há dolo no antecedente e culpa na
consequência.
Todavia, no nosso sentir, não pretendeu a nova lei aniquilar o
entendimento do Supremo Tribunal Federal (HC 101.698) tendente ao
reconhecimento do dolo eventual em tais casos envolvendo “racha”, haja vista
que os §§ 1º e 2º rezam que se “as circunstâncias demonstrarem que o agente não
quis o resultado nem assumiu o risco de produzi-lo” há incidência do crime do
artigo 308, § 1º ou § 2º (a depender do resultado: lesão ou morte). Sedo assim,
se as circunstâncias demonstrarem que o agente assumiu o risco de produzir um
dos resultados descritos no parágrafos citados haverá indubitavelmente dolo
eventual.
Pela nova redação é forçoso concluir que ainda é possível que em casos
de morte decorrente de “racha” haja o reconhecimento do dolo eventual, exceto
se as circunstâncias fáticas demonstrarem que o agente não quis o resultado nem
assumiu o risco de produzi-lo.
Podemos trazer à baila os seguintes exemplos com circunstâncias fáticas
diferentes para melhor compreensão dos novos institutos:
Exemplo 1: Dois indivíduos, cada um com o seu respectivo veículo
automotor, em via pública, nas proximidades de uma escola movimentada (em
horário de saída escolar), resolvem participar de disputa não autorizada pela
autoridade competente, e neste ato um deles em alta velocidade, varando vários
sinais vermelhos, atropela 5 (cinco) crianças que atravessavam faixa de
pedestres. Neste caso, está realmente caracterizado o dolo eventual, não
podendo se inferir que o agente não correu o risco de produzir o resultado
morte dos transeuntes daquela localidade, eis que varou sinais vermelhos em
pleno horário de saída escolar. O agente deverá ser processado e condenado por
homicídio doloso (artigo 121 do Código Penal), bem como pelo crime do artigo
308, caput do Código Penal, ambos em concurso formal de crimes, e ser
levado a júri, isso em razão do dolo eventual.
Exemplo 2: Dois indivíduos, cada um com o seu respectivo veículo
automotor, em via pública, dentro de uma zona industrial, praticamente
inabitável, de madrugada, resolvem tirar “racha”, sendo que estavam reunidos
naquele local vários espectadores para assistir o “pega”. E um dos
condutores de um dos veículos, acreditando em suas habilidades, faz forte curva
próximo aos espectadores, contudo por sua negligência, imprudência ou
imperícia, atropela alguns deles, levando-os à óbito. Trata-se de culpa consciente,
haja vista que, acreditando em suas habilidades, levou à falsa ideia de que
nada aconteceria naquele fatídico dia. Neste caso o agente atropelador deverá
se processado pelo crime do artigo 308, § 2º do CTB (homicídio culposo na
direção de veículo automotor qualificado pela “racha”).
Exemplo 3: Dois indivíduos, cada um com o seu respectivo veículo
automotor, em via pública, dentro de uma zona industrial, praticamente
inabitável, de madrugada, resolvem tirar “racha”, sendo que surge em meio à
corrida na frente de um dos veículos um animal, obrigando o indivíduo que
pilotava o referido veículo a realizar manobra brusca, fazendo com que
atingisse um andarilho que catava papelões em frente a uma indústria, levando-o
a óbito. Há neste caso culpa inconsciente do condutor atropelador, pois não
imaginou que surgiria um animal em sua frente de inopino, levando-o a fazer
manobra não prevista, atingindo pessoa que imaginou não estar ali naquele local
e horário. Neste caso estaríamos diante de caso de culpa inconsciente, o que,
diante de brilhante solução dada por Márcio André Lopes Cavalcante, levaria o
agente a responder pelo delito do artigo 302, § 2º do CTB.
Exemplo 4: se durante o “racha”, um dos competidores vê um desafeto seu,
e atira o carro sobre ele, levando-o a óbito, será caso de homicídio doloso,
deverá responder pelo delito do art. 308, caput, do CTB em concurso formal com
o art. 121 do CP.
Em que pese seja ainda possível o reconhecimento do dolo eventual, é
cediço que os juízes terão com a nova previsão legal mais cautela quando da
análise das circunstâncias envolvendo a “racha” e o resultado morte, e , com
isso, teremos uma clara tendência em enfraquecer teses pretendendo o
reconhecimento do dolo eventual, buscando-se uma pena mais significativa, que
levaria o caso a júri.
NOTAS
[1] BARROS, Francisco Dirceu de. Direito Penal – parte geral. Rio de
Janeiro: Campus Jurídico. 2014. p. 9.
[2] COSTA JUNIOR, Paulo José da. Comentários ao Código Penal. 3ª ed.
São Paulo: Saraiva p. 6 apud in BARROS, Francisco Dirceu de. Op.cit.
. p. 9.
[3] CERNICCHIARO, Luiz Vicente. Direito Penal na Constituiçào. p.
88 apud in BARROS, Francisco Dirceu de. Op.cit. . p. 9.
[4] BARROS, Francisco Dirceu de. Op. cit.. p. 9.
[5] Idem.
[6] NUCCI, Guilherme de. Leis penais e processuais penais comentadas –
volume 2. 7ª ed. São Paulo: RT. 2013. p. 716.
[7]http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1245895&filename=Tramitacao-PSS+1+CCJC+%3D%3E+PL+2592/2007
[8] GOMES, Luiz Flávio. Nova lei de trânsito: barbeiragem e derrapagem
do legislador (?). Disponível em:
http://atualidadesdodireito.com.br/lfg/2014/05/13/nova-lei-de-transito-barbeiragem-e-derrapagem-do-legislador/.
Acesso em 13 de maio de 2014.
[9] CAVALCANTE, Márcio André Lopes. Comentários à Lei 12.971/2014, que
alterou o Código de Trânsito Brasileiro. Disponível em:
http://www.dizerodireito.com.br/2014/05/comentarios-lei-129712014-que-alterou-o.html.
Acesso: 13 de maio de 2014.