Revendo meus escritos acerca da disciplina das relações de trabalho no Brasil à luz da Constituição da República, resolvi rever este artigo que foi publicado na Revista n. 29 de 2006, do TRT-15 de Campinas que havia produzido, em meio à produção acadêmica do meu curso de mestrado.
Parecem-me mui atuais aquelas proposituras e aquelas colocações calham como uma luva no ambiente político-econômico da crise que o Brasil.
Espero que gostem da leitura, embora seja puramente técnico-jurídica.
José A. Pancotti
ASPECTOS
DA HERMENÊUTICA CONSTITUCIONAL DOS DIREITOS SOCIAIS
José
Antonio Pancotti, mestre pelo Centro Universitário Toledo, Araçatuba-SP
INTRODUÇÃO
Buscar-se-á neste ensaio
demonstrar que os direitos sociais integram o conceito de direitos
fundamentais, não por serem arrolados no Título II da nossa Carta Política, mas
porque a República Federativa do Brasil definiu-se com um Estado Democrático de
Direito com fundamento na soberania, na cidadania, na dignidade da pessoa
humana, na igualdade, nos valores sociais do trabalho, da livre iniciativa,
dentre outros.
Pretende-se sustentar que os
direitos sociais, do ponto de vista científico, constituem pressupostos dos
direitos fundamentais, porque são instrumentos jurídicos “inclusão social” que
só com será efetiva, se fundamentada na cidadania.
O legislador constituinte de 1988 foi severamente
criticado por alguns e enaltecido por outros ao romper com a tradição do
constitucionalismo brasileiro, porque transpôs o rol dos “direitos sociais” do
Título da “Da Ordem Econômica e Social” para o Título “Dos Direitos e Garantias
Fundamentais”, na Constituição. No Brasil, tema adquiriu dimensão
constitucional em 1934, no Título “Da Ordem Econômica e Social”. Nesta posição,
vamos encontrá-lo nas Constituições de 1946, 1967 e na Emenda Constitucional nº
01 de 1969. A
transposição para o Título “Dos Direitos e Garantias Fundamentais” não foi por
mero capricho ou por amor à estética. Decorre, antes de tudo, da postura
ideológica e filosófica do constituinte.
Não se ignora, ao contrário, enfatiza-se os reflexos
desta opção ideológica do constituinte de 1988 na hermenêutica constitucional,
sem a pretensão de neste reduzido espaço, esgotar o tema.
A pesquisa se inicia pelo exame na doutrina nacional
e estrangeira, a noção do Estado Direito Democrático, inspirado no modelo Welfare state, a sua construção,
desenvolvimento e a crise que o coloca em uma verdadeira encruzilhada, quando
se propõe harmonizar o círculo entre
crescimento econômico (criação de riquezas), sociedade civil (coesão social) e
liberdade política. Segue-se no exame do significado e importância do que
se convencionou denominar de “ordem econômica e social”. Desenvolve uma breve
análise dos direitos fundamentais. Os direitos fundamentais e a nova concepção
de cidadania. No passo seguinte, enfoca-se os “direitos sociais” sob o influxo
dos direitos fundamentais.
1. DA ORDEM
ECONÔMICA E SOCIAL
1.1 - O Estado e
a economia – Welfare state
O Estado, na concepção clássica que tinha por
fundamento os ideais do liberalismo, era por natureza absenteísta,
reservando-se tão-somente atribuições restritas à produção do direito, garantia
das liberdades e da segurança. A Constituição limitava-se a definir a forma de
Estado, o regime político, a estruturação e organização do poder político e a
declaração dos direitos individuais. A noção de democracia era exclusivamente
política. Assim, não se admitia qualquer tipo de ingerência ou intervenção na
ordem natural da economia e não se cogitava de uma atuação em prol do bem estar social “que garante tipos
mínimos de renda, alimentação, saúde, habilitação, educação, assegurados a todo
cidadão, não como caridade, mas como direito político” [1].
O Estado pós-moderno, se caracteriza pela
intervenção na atividade econômica, criação das regras e adoção dos princípios
de direito econômico, além de intervir nas relações sociais, por meio de um
conjunto de disposições concernentes tanto dirigismo econômico, como no
estatuto do cidadão e nos direitos dos trabalhadores. As constituições dos
Estados pós-modernos definem os seus fins e programas de ação, sob enfoque de
uma orientação econômico-social com regras minuciosas e detalhistas, convivendo com normas genéricas que apenas enunciam
princípios gerais, cujo conteúdo e efetividade ficam postergados para serem
implementados ou desenvolvidos no futuro, conforme vier disciplinar o
legislador infraconstitucional. É o conceito de Constituição-dirigente[2] característica do Welfare state.
Os autores identificam os problemas teóricos
originados do aparecimento, consolidação e crise do Welfare state. Para uns, a evolução histórica e política das
sociedades industriais pode ser distinta em três fases: a primeira, por volta
do século XVIII, marcada pela luta em busca da conquista dos direitos civis (liberdade de pensamento,
de expressão); no período seguinte (século XIX), constatam-se
as reivindicações dos direitos políticos (participação e organização de
partidos, propaganda, votar e ser votado etc) que culminam com a consagração do
sufrágio universal. Finalmente, no terceiro período, o desenvolvimento da
democracia política aumenta o poder político das organizações operárias e o
acesso do operariado a um nível mínimo de instrução formal dá o tom das lutas e
da conquista dos “direitos políticos e sociais”. Para outros, a causa principal
da difusão do Welfare state foi
conseqüência da transformação da sociedade agrária em industrial.
Confrontando-se as duas correntes de pensamento,
infere-se que ambas possuem elementos que se somaram para impulsionar a criação
e desenvolvimento do Welfare state,
essencialmente porque os “benefícios sociais” têm alto custo para o Estado, mas
é um forte mecanismo de distribuição de renda e riqueza que reforça que
dinamiza da atividade econômica.
A crise do Estado assistencial é um fenômeno
presente. Entretanto, o fenômeno que os economistas designam como “crise
fiscal”, para definir o elevado endividamento público, não pode ser de
fundamento para sustentar a absoluta incompatibilidade de duas funções
relevantes do Estado: o fortalecimento do desenvolvimento social e o apoio à
acumulação capitalista, ainda que com graves ônus à despesa pública. A
harmonização destes dois grandes objetivos fundamentais deve ser a proposta do
Estado contemporâneo, o Estado de Democrático de Direito, em que convivem os
ideais da sociedade burguesa com uma forte atuação sindical operária e dos
partidos políticos, admitindo-se, paralelamente, atuação efetiva de
organizações não governamentais.
Em decorrência desta crise, a postura
intervencionista do Estado é combatida nos últimos vinte anos, mediante ampla
campanha por meio de palavras chaves muito em voga: “diminuição do tamanho do
Estado”, “ajuste fiscal” e, no nosso caso, “redução do custo Brasil”, sob o
argumento de que o Estado do bem estar
social tem um custo econômico excessivamente elevado, acarretando uma
insuportável carga tributária para a sociedade. Daí, o acentuado discurso em
prol da desregulamentação das relações econômicas, flexibilização de normas ou
mesmo de redução dos direitos sociais, diminuição da carga tributária, a fim de
minimizar os custos de produção e tornar os produtos nacionais competitivos no
mercado internacional, por imperativo da globalização econômica ou da
integração dos mercados.
Na sociedade do chamado capitalismo maduro[3],
a intervenção do Estado deve, por princípio, limitar-se à complementariedade,
porque o capitalismo foi capaz de transformar a força de trabalho escravo em
trabalho livre, mas não de estabelecer a qualidade e a quantidade de trabalho
que necessita no processo de produção, de modo a absorver toda a força de
trabalho disponível. Assim, exige-se que o Estado desempenhe as funções de
proteção do trabalho, da seguridade social etc (formas de predisposição das
condições materiais da produção); crie motivações consentâneas com o processo
do trabalho (apoio à família e aos mecanismos de substituição da família –
agentes de socialização burguesa); regulamente a força de trabalho (formação
profissional, qualificação, requalificação, migrações internas, discipline as relações
de trabalho etc).
Enquanto se combate, no plano interno, a postura
estatal intervencionista, no plano internacional, cada vez mais, pugna-se por
mecanismos de nítido caráter protecionista. Assim, Estados que até pouco tempo
eram parceiros comerciais, de um momento para outro, instituem barreiras
alfandegárias entre si, a fim de preservarem mercados internos, numa verdadeira
necessidade de afirmação da soberania
econômica nacional.
Aliás, os perigos da globalização econômica são ressaltados pelo Professor Eros Roberto
Grau[4], que alerta para perda da importância dos conceitos
de “país” e de “nação” e do
comprometimento da noção de Estado que se coloca como um desafio em
harmonizar valores sem os quais a economia não sobrevive: o círculo entre crescimento econômico (criação de riquezas), sociedade
civil (coesão social) e liberdade política.
Acrescenta o Professor e Ministro do Supremo
Tribunal Federal que:
“[...]
a globalização ameaça a sociedade civil, na medida que: (i) está associada a
novos tipos de exclusão social, gerando um subproletariado (underclass), em
parte constituído de marginalizados em função da raça, nacionalidade, religião
e outro sinal distintivo; (ii) instala uma contínua e crescente competição
entre indivíduos; (iii) conduz à destruição dos serviços públicos (= destruição
do espaço público e declínio dos valores dos serviços por ele veiculados).
Enfim, a globalização, na fusão de competição global e de desintegração social,
compromete a liberdade.”
Não menos verdadeira é a constatação de que na
formação de blocos econômicos regionais (CEE, MERCOSUL, NAFTA etc) estimula-se,
no seu interior, a circulação de riquezas, com redução ou eliminação de tarifas
alfandegárias, moeda única etc, porém, desacompanhada do mesmo grau de
liberdade para circulação de pessoas e a troca de experiências culturais. Em suma, os seus benefícios no plano social
são meramente indiretos ou reflexos.
1.2 - Da ordem
econômica e social nas constituições
O título da “Ordem Econômica e Social” nas
constituições modernas foi introduzido nos primórdios do século XX com a
Constituição Mexicana de 1917 e a Constituição de Weimar de 1919. No Brasil,
surgiu a partir da Constituição de 1934. A Constituição Federal de 1988 dividiu a
matéria no Título VII, “Da Ordem Econômica e Financeira” e no Título VIII, “Da
Ordem Social”.
O regime constitucional vigente, além de instituir
as bases constitucionais do sistema econômico, legitima o Estado a se apropriar
das formas e dos meios de produção antes utilizados exclusivamente pela
iniciativa privada, para intervir na atividade econômica, em prol do
desenvolvimento econômico sustentado. A justificativa é a necessidade de
ordenar na vida econômica, impor condicionamentos e racionalizá-la, sem,
contudo, substituir ou concorrer com as atividades privadas, mas atuar
primordialmente dando-lhe suporte e, excepcionalmente, de forma direta, mas em
caráter supletivo.
Esta característica do Estado Democrático de Direito
reflete nas Constituições modernas muitas idéias que têm origem no Socialismo,
convivendo ou dando suporte às bases do Capitalismo moderno. Revela compromisso
de equilíbrio entre as forças políticas tradicionais, liberalistas, e o
atendimento das reivindicações populares de justiça social.
Em sucinta análise do art. 170 da Constituição
Federal, verifica-se que elenca os fundamentos e os princípios que se deve
pautar a conduta do Estado: livre iniciativa, propriedade privada, livre
concorrência, valorização do trabalho, justiça social etc. No art. 173,
disciplina a exploração direta da atividade econômica pelo Estado, que só será
permitida quando necessária aos imperativos de segurança nacional ou relevante interesse coletivo, conforme
definir a lei. Em seguida, traça regras para a criação de entes paraestatais
como instrumentos de intervenção na ordem econômica, fixando o regime jurídico
a que se submeterão, inclusive quanto às obrigações civis, comerciais,
trabalhistas e tributárias, em igualdade com o setor privado; fixa a
obrigatoriedade da licitação para a contratação de obras, serviços, compras e
alienações, em semelhança ao que se exige para os entes da administração
direta; finalmente determina que a lei estabelecerá a responsabilidade da
pessoa jurídica (empresa pública, sociedade de economia mista e subsidiárias)
por atos contra “ordem econômica e financeira” e contra a economia
popular.
São normas e princípios que traçam rumos a serem
seguidos e criam os mecanismos para alcançar os fins a que se propôs o
Estado do bem estar social. Assim,
toda espécie normativa infraconstitucional que contrariar tais regras e
princípios será reputada inconstitucional. No mesmo sentido, os atos e decisões
judiciais ou administrativas que se desvirtuarem do que preconizam os comandos
normativos e os princípios constitucionais.
1.3 -
Interpretação especifica da ordem econômica na Constituição Federal
A peculiaridade da interpretação constitucional é o
fato de estar diante de um estatuto jurídico-político. Esta circunstância nos
leva a sopesar “valores[5]
políticos, econômicos e sociais” e perquirir, como eles interferem no plano
jurídico. Constatam-se os valores políticos pelos princípios expressos e
implícitos que a Constituição adota. Sabidamente, a Constituição não é um
simples conjunto de regras, mas de regras e princípios[6].
Estes é que vão dar coloração interpretativa às regras constitucionais. A
função dos princípios é exatamente orientar para uma exegese conforme os ideais
traçados pelo constituinte.
O Professor Gomes Canotilho[7] leciona que
através do [...] princípio da interpretação das leis em conformidade com a
constituição, se escolhe a interpretação sistemática que dá prevalência à
Constituição, ou seja, não contrária ao texto e programa da norma
constitucional. Por outras palavras, não se interpreta a lei a partir de uma
particular expressão da Constituição, mas dentro do seu conjunto sistemático.
É possível
sustentar, diante do sucinto quadro acima, que os ideais explícitos e
subjacentes no texto constitucional é de um Estado Democrático de Direito que
não abre mão de preservar e reforçar mecanismos de acumulação de Capital, mas
intervém para conter os abusos do poder econômico; desenvolver ações e reforçar
as bases de políticas sociais bem definidas para preservar valores típicos do
Socialismo: redução das desigualdades, distribuição de renda, acesso aos
serviços e bens públicos etc, em conformidade com os ditames da justiça social.
2. DOS DIREITOS
FUNDAMENTAIS
2.1 -
considerações iniciais
O estudo dos direitos fundamentais ganha especial
relevância, porque são alicerce do Estado Democrático de Direito, na medida em
que nele repousa e legitima-se. Assim, não há como dissociar a noção de Estado
de Direito e direitos fundamentais.
Não é por outra razão que o Mestre Perez Luño[8]
sustenta que há um nexo de interdependência genético e funcional entre o Estado
de Direito e os Direitos Fundamentais, ya
que el Estado de Derecho exige e implica para serlo garantizar los derechos
fundamentales, mientras que éstos exigem e implicam para su realización al
Estado de Derecho.
O enfoque temático deste modesto trabalho permite
fixar-se na noção de “direitos fundamentais”[9]
no sentido limitação imposta pela
soberania popular aos Poderes constituídos do Estado que dela dependem.São
fundamentais, como salienta José Afonso da Silva[10]
porque se trata de situações jurídicas sem
as quais a pessoa humana não se realiza, não convive e, às vezes, nem mesmo
sobrevive;
No
plano Direito Público Internacional, são diversos os instrumentos políticos e
jurídicos que revelam a preocupação em proteger o direito à vida, segurança,
dignidade, liberdade, hora, moral, propriedade, entre outros. É um
reconhecimento da necessidade primordial de proteção e efetividade do que se
convencionou denominar de “direitos humanos”.
No
plano jurídico interno de cada Estado, os Direitos Fundamentais se constituem
pelo conjunto de direitos e garantias de conteúdo negativo, cuja finalidade
básica é o respeito à dignidade da pessoa humana, contra o arbítrio estatal e o
estabelecimento de condições mínimas de vida e desenvolvimento da personalidade
no plano material e espiritual. Daí, Pontes de Miranda considerá-los
“supreaestatais” por que são direitos
frente ao Estado ou são devidos ao ser humano, por exigência da ordem jurídica
supraestatal, ou conseqüência da altura das liberdades no ambiente mesmo da Constituição.[11]
As
constituições dos Estados pós-modernos e os tratados internacionais recentes
revelam evolução da concepção de Direitos Fundamentais com significativa
ampliação, para compreender prestações positivas do Estado. Assim, nos
primórdios tinha significado vertical (na relação indivíduo x Estado). Hoje,
tem sentido horizontal (nas relações privadas). Agiganta-se, assim, a eficácia
de valores intrínsecos como a dignidade da pessoa humana e a igualdade entre os
homens.
Dentre
todos os valores que a Constituição Federal de 1988 define com fundamento do
Estado Democrático de Direito, sob o ponto de sua conexão íntima com os
direitos sociais, destacam-se a cidadania, a
dignidade da pessoa humana, da igualdade, os valores sociais do trabalho e da
livre iniciativa.
A
cidadania, como
ensina José Afonso da Silva[12], é o
reconhecimento do indivíduo como integrante da sociedade estatal. (...) consiste na consciência pertinente à sociedade
estatal como titular de direitos fundamentais. Não se resume à titularidade de direitos políticos, mas de
cidadão que requer providências estatais no sentido de satisfação de todos os
direitos fundamentais em igualdade de condições.
A dignidade da pessoa humana é um conceito que reúne dois
valores indissociáveis: pessoa humana e sua dignidade. A pessoa humana é o ser racional, dotado de livre
arbítrio que existe como fim em si mesmo, já que não pode servir de objeto-meio
para outros fins. Nisto difere das coisas, objeto-meio para a consecução de
fins outros. É por isso que a pessoa humana se revela como valor absoluto,
porque sua natureza racional
existe como fim em si mesma (Kant).
A dignidade é um atributo intrínseco da
pessoa humana, constituindo sua essência. O único ser que compreende um valor
interno, superior a qualquer outro, que não admite substituição por valor
equivalente. É o valor supremo do qual decorrem todos os direitos fundamentais.
Com efeito, não basta a liberdade formalmente declarada na Constituição, sem
que se reconheça a dignidade da pessoa, como condição mínima de existência.
Existência digna conforme os ditames da justiça social, como fim da ordem
econômica justa.
As
funções
sociais do trabalho
não só na liberdade de escolha da atividade ou profissão, mas de acesso ao
mercado de trabalho em igualdade de condições e sem discriminação, direito à
remuneração que assegure ao trabalhador e sua família existência digna. Os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa entram na formulação do conceito
do Estado neoliberal, em que a propriedade e o lucro se inserem contexto de
justiça social.
O princípio da igualdade
deve orientar-se a partir da máxima de Aristóteles que preconiza tratamento igual aos iguais e desigual aos
desiguais, na medida dessa desigualdade.[13]
Não é fácil,
porém, determinar, em cada caso concreto quem são os iguais, quem são os
desiguais e qual a medida dessa desigualdade. Assim, o empregador no exercício
do poder legítimo de zelo, guarda e controle de seu patrimônio, tem o direito
de fazer revista íntima dos empregados da fábrica de jóias, na saída do
trabalho. Entretanto, se comete excessos e abusos à intimidade, incorre em
ofensa à dignidade da pessoa humana, ensejando a reparação por dano moral. É
razoável, porém, que a indenização seja atribuída em valor menor para os
funcionários do que para as funcionárias, sem ferir o princípio da igualdade. O
tratamento é desigual, justificando-se pelo maior grau de sensibilidade da
mulher, na preservação da sua intimidade. O princípio da igualdade legitima que
o juiz e o legislador dêem tratamento distinto, com fundamento razoável, sem
descambar para o arbítrio[14].
Neste sentido, a Constituição autoriza discriminações justificáveis, para
proteger grupos de pessoas que merecem tratamento diverso, quando assegura o
privilégio da posse de terras aos indígenas (CF/88, §2º art. 231); a proteção
ao mercado de trabalho da mulher (CF/884, art. 7º, XX); proibição do trabalho
noturno, perigoso ou insalubre do menor de 18 anos etc.
Não
é possível sustentar, como o saudoso Pontes de Miranda[15], que há direitos fundamentais
absolutos e relativos. Os absolutos existiram, não conforme a lei os cria ou
regula, mas a despeito das leis (“supraestatais”), como à liberdade pessoal, à
vida, à inviolabilidade do domicílio ou da correspondência, enquanto os
relativos valem conforme a lei, como o direito de propriedade.
Não
há como discordar do Professor Alexandre de Moraes[16] que preconiza o Princípio da relatividade ou convivência das
liberdades públicas, sob
o argumento de que os direitos humanos fundamentais não podem ser utilizados
com um verdadeiro escudo
protetivo da
prática de atividades ilícitas, nem tampouco como argumento para afastamento ou
diminuição da responsabilidade civil ou penal por atos criminosos, sob pena de
se consagrar o desrespeito a um verdadeiro Estado de Direito. Assim, há
julgados do Supremo Tribunal Federal que não se reconhece como absoluto a
inadmissibilidade de provas obtidas por meios ilícitos (CF/88, art. 5º, LVI),
como se observa do excerto de acórdão:
“Objeção
de princípio — em relação à qual houve reserva de Ministros do Tribunal — à
tese aventada de que à garantia constitucional da inadmissibilidade da prova ilícita se
possa opor, com o fim de dar-lhe prevalência em nome do princípio da
proporcionalidade, o interesse público na eficácia da repressão penal em geral
ou, em particular, na de determinados crimes: é que, aí, foi a Constituição
mesma que ponderou os valores contrapostos e optou — em prejuízo, se necessário
da eficácia da persecução criminal — pelos valores fundamentais, da dignidade humana,
aos quais serve de salvaguarda a proscrição da prova ilícita: de qualquer sorte —
salvo em casos extremos de necessidade inadiável e incontornável — a ponderação
de quaisquer interesses constitucionais oponíveis à inviolabilidade do
domicílio não compete a
posteriori ao juiz do processo em que se pretenda introduzir ou
valorizar a prova obtida na invasão ilícita, mas sim àquele a quem incumbe
autorizar previamente a diligência.” (STF, HC 79.512, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ
16/05/03)
Não
se desconhece ser possível sustentar que o direito subjetivo de não ser
torturado é absoluto, com amparo na regra do art. 5º, III da Constituição.
2.2 - Natureza das normas e o
conteúdo dos direitos fundamentais
Como
vimos acima, insigne Mestre Pontes de Miranda[17] os considerava “supraestatais”.
Para o Professor José Afonso da Silva[18] são situações jurídicas
(objetivas e subjetivas) definidas no direito positivo, em prol da dignidade,
igualdade e liberdade da pessoa humana. Trata-se, portanto, de normas de
direito constitucional, porquanto nascem e se fundamenta na própria
Constituição, tendo por fonte da soberania popular. Este mesmo autor se
posiciona no sentido de que a eficácia e aplicabilidade de tais normas dependem
muito do seu enunciado. Neste sentido, enfatiza, o § 1º do art. 5º da
Constituição Federal estatui que as normas definidoras dos direitos e garantias
fundamentais têm aplicação imediata. Ressalva, no entanto, que as normas que
definem os direitos econômicos e sociais são de eficácia limitada, porque dependem
de legislação ulterior que a discipline para a sua eficácia e aplicabilidade.
Curiosamente, há regras que não se qualificam como “direitos sociais”, mas que
definem direitos públicos subjetivos que dependem de normas
infraconstitucionais para ter eficácia. É o caso da gratuidade do registro de
nascimento e da certidão de óbito, aos reconhecidamente pobres (CF/88, art. 5º,
LXXVI) e a proteção aos locais de cultos e suas liturgias, para assegurar o
direito à liberdade de manifestação de crença religiosa (CF/88, art. 5º, VI).
Não
há dúvida que nas hipóteses em que a Constituição proclama a inviolabilidade do
direito à vida, à liberdade, à propriedade, à igualdade, à dignidade da
pessoa etc, nos termos em que se
desdobram nos incisos do seu art. 5º, tais normas têm eficácia e aplicabilidade plena e imediata.
Não se pode esquecer, porém, que há inúmeras situações em que se remete à lei
(espécie normativa infraconstitucional), a disciplina ou regramento para o
exercício deste ou daquele direito. Assim, não se encontra esta limitação
tão-somente em normas que estatuem o rol de direitos sociais. Por outro lado,
com ensina o Professor Canotilho[19] O fato de a Constituição ter
feito um esforço sistematizador, tornando mais extenso e completo o catálogo
dos direitos, liberdades e garantias, não está excluído que alguns dos direitos
econômicos, sociais e culturais, possam ser configurados como direitos de
natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias.
Enfim, a distinção que faz o Professor José
Afonso da Silva não parece ser critério definitivo (sob a ótica da eficácia e
aplicabilidade) para explicar a natureza jurídica das normas que disciplinam os
direitos e garantias fundamentais. Não se pode dele discordar, no entanto, que
por se tratar de direito positivo, o interprete fica limitado ao enunciado da
norma.
Os direitos fundamentais são também humanos, na
medida em que direitos de natureza de direitos humanos são declarados na
Constituição. Há, porém direitos fundamentais que não têm natureza de direitos
humanos. Os direitos humanos apresentam-se como o grupo de valores básicos para
a vida e dignidade humanas atribuídos universalmente. São valores ínsitos e
indispensáveis para o desenvolvimento do homem em sua dimensão biológica,
psíquica e espiritual. Eles são o conteúdo dos direitos fundamentais, porque
estes lhe dão apenas forma jurídica. A transformação daqueles valores
indispensáveis à vida e dignidade humanas em direitos subjetivos coincide com a
passagem do Estado monárquico absolutista francês à República, decorrente da
Revolução Francesa de 1798 e da Declaração dos Direito do Homem e do Cidadão
que lhe segue, também em 1789.
Os direitos fundamentais por declararem valores
primordiais tornados jurídicos, apresentam-se como a racionalização ética por excelência,
situando-se no ápice do ordenamento jurídico nacional. São direitos matizes de
todos os demais, por lhes dar fundamento e devem, portanto, ser dispostos na
lei máxima nacional, a Constituição. Os direitos fundamentais não têm uma
concepção jusnaturalista, pois são frutos da cultura humana e não algo
concedido pela natureza à pessoa humana desde o seu nascimento. Neste sentido,
pertinente a afirmação de Cláudia Toledo[20]:
Os direitos fundamentais são, destarte,
construídos, conquistados pelo homem, não lhe sendo meramente dados pela
natureza.
3. DOS DIREITOS
SOCIAIS
3.1 - Considerações iniciais
O
“problema social” surge a partir da “Questão Social”, em meados do século XIX,
como decorrência da “Revolução Industrial” que iniciou na Inglaterra no Século
XVIII. A “Questão Social” é um fenômeno que eclodiu em conseqüência da
concentração do capital industrial e da falta de condições de infra-estrutura
social do Estado. O quadro é reconhecido: o empobrecimento da massa de
trabalhadores, inclusive dos artesãos sem meios para massificação da produção
industrial; a aglomeração urbana resultante da migração da mão-de-obra do
campo; a desagregação familiar pela mobilização da mão-de-obra feminina e das
crianças para as fábricas; e o grande distanciamento entre classes sociais.
Tudo longe de constituir um fenômeno individual e transitório, era um problema
coletivo e duradouro que trazia graves prejuízos à ordem pública, social,
política e à atividade econômica.
Informa
Bobbio, Matteucci e Pasquino[21] que até o início do século XIX as
corporações de artes e ofícios desempenhavam inclusive a tarefa assistencial.
Com o fim destas corporações, as sociedades de socorro mútuo passaram a
desenvolver atribuições previdenciárias que não incorporavam a grande massa de
trabalhadores.
A
“Revolução Industrial” e a “Questão Social” são fenômenos que evidenciam o fim
de uma concepção orgânica de sociedade e do Estado, segundo Bobbio, Matteucci e
Pasquino[22]. Desde, então, ficou clara a
separação absoluta entre a sociedade e Estado, cabendo a este apenas a detenção
do poder político e a intervenção policial, para “restabelecer a ordem
pública”.
O
“problema social” que assustava a burguesia requeria pronta e eficaz
intervenção do Estado, porque cedo se concluiu que só colocar a polícia na rua
“para manter a ordem pública”, não seria a solução. Sentiu-se a necessidade da
intervenção estatal nas relações de trabalho, fixando garantias mínimas, para
desestimular as mobilizações torno de reivindicações operárias. Assim, passou a
limitar a jornada máxima diária, adotar medidas de higiene e segurança do
ambiente de trabalho, fixar remuneração mínima mensal etc. Somava-se a isto um
conjunto de medidas capazes de propiciar as massas trabalhadoras recobrarem os
valores individuais e profissionais, bem como políticas públicas de acesso ao
mercado de trabalho, à moradia, à educação, à assistência à saúde; a criação de
seguro ou previdência social etc.
3.2 - Dos direitos sociais nas
constituições
É
na Inglaterra e na Alemanha de Bismarck que se põem em prática, no final do
século XIX, uma legislação de disciplina da atividade nas fábricas e cria um
sistema de previdência social, com seguro obrigatório contra doença, velhice e
invalidez. A Bélgica e a Dinamarca aplicam a lei alemã no capítulo referente às
disposições de pensionistas (1891-1898). A Suíça cria a lei de seguro social,
através de Emenda Constitucional (1890). Esta emenda é a gênese da
constitucionalização dos direitos sociais. Segue-se a Constituição Mexicana de
1917 e a Constituição de Weimar de 1919. No Brasil, surgiu a partir da
Constituição de 1934 e mantido em todas as Cartas Políticas posteriores.
A
Constituição de 1988 discrimina o rol dos direitos sociais: a educação, saúde,
o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à
maternidade e à infância, assistência aos desamparados (art. 6º). O patamar
mínimo de direito dos trabalhadores urbanos e rurais são arrolados no art. 7º
da Constituição. No Título VII “Da Ordem Social” define as formas de custeio e de
seguro social (previdência social), a assistência social e a proteção à saúde;
o direito de acesso à educação, à cultura e aos desportos; o incentivo ao
desenvolvimento científico, à pesquisa e à capacitação tecnológica; a liberdade
de manifestação de pensamento, artística e cultural; garantia de meio ambiente
ecologicamente equilibrado; reconhecimento às diversas formas de organização
familiar, além da proteção à criança, ao adolescente e ao idoso; preservação
valores sociais e culturais e prestação de assistência às comunidades
indígenas.
Os
direitos sociais, na doutrina do Professor Alexandre de Moraes[23]:
[...]
se caracterizam como verdadeiras liberdades positivas, de observância
obrigatória no Estado Social de Direito, tendo por finalidade a melhoria das
condições de vida aos hipossuficiente, visando à concretização da igualdade
social, e são consagrados como de fundamentos do Estado Democrático, pelo art.
1º, IV, da Constituição Federal.
Enquanto os “direitos individuais” que têm por
característica fundamental a imposição conduta negativa ou de não fazer para o
Estado, os direitos sociais exigem do Poder Público diversas atividades e
prestações positivas, com vistas à propiciar o bem estar e ao pleno
desenvolvimento da personalidade humana, sobretudo o amparo em momentos que,
por contingências da própria existência, exigem maiores recursos, quando têm
menos possibilidades de conquistá-los por seus próprios meios[24],
como na doença, infância, velhice etc.
É neste sentido que Canotilho[25]
afirma tratar-se de [...] direitos a
prestações significam, em sentido estrito, direito do particular obter algo
através do Estado (saúde, educação segurança social).
Canotilho e Vital Moreira[26]
ressaltam que a garantia de direitos mínimos dos trabalhadores, nestes termos:
[...] a
individualização de uma categoria de direitos e garantia dos trabalhadores de
caráter pessoal e político, reveste-se de um particular significado
constitucional, do ponto em que ela traduz o abandono de uma concepção
tradicional dos direitos, liberdades e garantias como direitos do homem ou do
cidadão genéricos e abstractos, fazendo intervir também o trabalhador
(exactamente: o trabalhador subordinado) como titular de direitos de igual
dignidade.
Esta postura intervencionista, no que toca especificamente
aos trabalhadores, revela o abandono da posição absenteísta do Estado, para
assumir postura pró-ativa em favor da igualdade substancial entre as partes no
contrato de trabalho, preservar a dignidade da pessoa humana do cidadão
trabalhador.
3.3 - Natureza
dos Direitos Sociais
Como visto acima, o Professor Canotilho[27]
ensina que muitos dos Direitos Fundamentais são direitos de personalidade e que hoje em dia, dada a
interdependência entre o estatuto positivo e o estatuto negativo do cidadão,
cada vez mais os direitos fundamentais tendem a ser direitos de personalidade.
O fator trabalho não é mais considerado algo
degradante e vergonhoso para o homem livre. O homem moderno não pode limitar-se
à vida contemplativa e à atividade militar, como os antigos. Ao contrário, o
trabalho tem hoje a concepção de um valor
social prestigiado, porque é a atividade
humana destinada a transformar ou
adaptar recursos naturais com o fim de produzir bens e serviços que satisfaçam
as necessidades individuais e coletivas[28].
A importância do trabalho não tem só esta dimensão
econômica, mas psicológica e ética que permite ao homem e à mulher realizar-se
como pessoa. Sob este aspecto, chega-se a divinizar o trabalho, sem considerar
apenas os seus fins sociais e econômicos.
É por isso que se pode dizer que o trabalho é
manifestação da personalidade, porque se constitui numa atividade que se pode
exercer com liberdade e dignidade, nos limites de aptidão profissional de cada
indivíduo. É através do trabalho que o indivíduo se realiza como pessoa, não só
para auto-sustentar, mas também para ganhar respeito no contexto social. O
trabalho fator fundamental de integração social com cidadania.
A proteção jurídica dos operários foi tolerada, nos
primórdios, por autodefesa do próprio capitalismo, mas hoje deve evoluir para
consolidar o respeito à dignidade da pessoa humana, do cidadão trabalhador e de
sua família.
No início, os direitos sociais foram concebidos para
preservar bens e valores que assegurem condições mínimas de vida digna, a determinado
grupo de pessoas: oportunidade de trabalho em ambiente higiênico (físico e
mental) e sem discriminação; remuneração que garanta o sustento próprio e da
família, assistência à saúde e previdência social. Eram os trabalhadores que
prestavam serviços subordinados – da fábrica (chapeleiro, calçadista, tecelão,
metalurgia, cerâmica etc) ou de serviços urbanos (ferroviários, tróleibus,
motorneiros e cobradores de bondes). Não beneficiava a generalidade da
população trabalhadora, como aqueles que prestavam serviços por conta própria –
autônomos – e os trabalhadores rurais, domésticos etc, embora vivessem em
condições sociais semelhantes, idênticas ou inferiores às várias categorias de
altos empregados..
O significativo avanço deu-se na medida em que à tutela
daqueles valores jurídicos somaram-se outros, como o acesso à moradia, à
educação, à cultura e aos desportos; o incentivo ao desenvolvimento científico,
à pesquisa e à capacitação tecnológica; a liberdade de manifestação de
pensamento, artística e cultural; garantia de meio ambiente ecologicamente
equilibrado; reconhecimento às diversas formas de organização familiar, além da
proteção à criança, ao adolescente e ao idoso; preservação valores sociais e
culturais e prestação de assistência às comunidades indígenas.
Nesta nova dimensão, os direitos sociais têm o
nítido propósito de assegurar vida digna, com perspectiva de “inclusão social”
e erradicação da pobreza, não podendo, portanto, ser restrito a um grupo social
(dos operários fabris e de serviços). A noção de vida digna passa a ter a
conotação de dignidade com cidadania. Um conceito de cidadania não mais
restrito à titularidade de direitos políticos, mas de cidadão com aptidão de
participar da vida do Estado, ou reconhecimento
do indivíduo como pessoa integrada na sociedade estatal[29].
Por esta razão que o Professor Canotilho sustenta
que os direitos sociais estão estreitamente associados a um conjunto de
condições que a moderna doutrina dos direito fundamentais designa como pressupostos dos direitos fundamentais:
“Considera-se
pressupostos de direitos fundamentais a multiplicidade de factores – capacidade
econômica do Estado, clima espiritual da sociedade, estilo de vida,
distribuição de bens, nível de ensino, desenvolvimento econômico, criatividade cultura,
convenções sociais, ética filosófica ou religiosa – que condicionam, de forma
positiva e negativa, a existência e proteção dos direitos econômicos, sociais e
culturais. Estes pressupostos são pressupostos de todos os direitos
fundamentais”
[30]
Além destes pressupostos que condicionam os direitos
fundamentais, existem os elementos estruturais que são a base da proteção dos
direitos sociais:
Assim, a
concepção da dignidade da pessoa humana e do livre desenvolvimento da
personalidade pode estar na origem de uma política de realização de direitos
sociais activa e comprometida ou de uma política quietista e resignada
consoante se considere que, abaixo de um certo nível de bem-estar material,
social, de aprendizagem e de educação, as pessoas não podem tomar parte da
sociedade como cidadãos e, muito menos, como cidadãos iguais, ou se entenda que
a cidadania social é basicamente uma conquista individual[31].
Com efeito. Não se concebe cidadania sem respeito à
dignidade da pessoa humana. Não é sem razão que o art. 1º da Constituição
Federal proclama entre os fundamentos do Estado Democrático de Direito a cidadania (II) e a dignidade da pessoa humana (III). Estes dois princípios
fundamentais têm dimensão além das relações entre a pessoa humana e o Estado,
na medida em que transcende para relações privadas. Neste sentido, o direito passa a tutelar as manifestações da
personalidade, através dos princípios jurídicos da “boa fé nos contratos”, da
“solidariedade social”, da “função social do contrato”, da “finalidade social
do direito”, da razoabilidade e da proporcionalidade, da equidade e
equivalência das prestações, do acesso à justiça, da efetividade do processo
etc. São princípios que visam proclamar valores e idéias universalmente
indissociáveis da trilogia: ética, a
moral e o Direito, eixo que dá às normas sociais caráter homogêneo e
legitimidade.
Esta nova concepção de cidadania decorre da idéia de
Constituição dirigente[32]
que não se conforma com um rol de direitos sociais cuja efetividade fique na
dependência do momento político e das vicissitudes da vida econômica. Esta nova
dimensão de cidadania deve ser construída a partir do enriquecimento dos
direitos fundamentais, com a participação ativa do indivíduo.
Neste contexto, a disciplina das relações de
trabalho (empregado x empregador) é apenas um aspecto dos direitos sociais. É
um regramento que insere em um conjunto maior de medidas interventivas e
protecionistas do Estado, com a especificidade de tutelar da pessoa humana do
cidadão trabalhador. Esta postura intervencionista protecionista, sem cunho
paternalista, se materializa em “políticas públicas” que tenham a
potencialidade de incrementar o desenvolvimento material, intelectual, cultura
e espiritual a pessoa humana, a partir da preocupação de eliminar barreiras e
oferecer oportunidade de inclusão social.
Assim, a inserção dos direitos sociais como
subespécie de direitos fundamentais se justifica, ainda mais, porque o trabalho
é manifestação da própria personalidade humana e vital para a cidadania.
3.4 - A desregulamentação,
a flexibilização, a terceirização[33]
e a hermenêutica constitucional
Como já ressaltado neste trabalho, ultimamente
difundiu-se a preocupação de que os encargos atribuídos ao Estado do bem estar social acarreta custos
econômicos e financeiros excessivamente elevados e, por conseguinte, uma
insuportável carga tributária para os cidadãos em geral. Estes custos
tornam a produção econômica menos competitiva no mercado internacional, não
compatível com um “capitalismo maduro”.
Com esta visão, a partir da década de 1980,
acentuou-se o discurso em prol da “desregulamentação” das relações econômicas e
sociais e da “flexibilização” ou mesmo de redução dos direitos sociais, dentre
tantos outros meios, para minimizarem os custos de produção, a fim de tornar a
produção nacional competitiva no mercado internacional, por imperativo da
globalização econômica ou pela integração dos mercados. Outro meio de redução
de custo de produção foi a idealização da “terceirização de serviços”, pelas
empresas.
A Constituição
admite expressamente a “flexibilização” de alguns direitos sociais como a
redução salarial (art. 7º, VI), a ampliação de jornada máxima de trabalho (art.
7º, XIII, XIV), mediante controle sindical. Em todas estas hipóteses, o
constituinte brasileiro admitiu que a convenção e o acordo coletivo de trabalho
são os instrumentos de flexibilização das regras trabalhistas. Isto porque, o
papel tradicional destes pactos normativos sempre foi de alteração dos níveis
salariais e das condições de trabalho para melhorá-los, nunca para reduzir
vantagens, como se passou a admitir. A Constituição não impede, pelo contrário,
legitima a ampliação de certos direitos e vantagens, como a participação nos
lucros e resultados; ampliação do prazo do aviso prévio (“aviso prévio
proporcional”); elevação da taxa de adicionais de remuneração (serviços
extraordinários, insalubridade, periculosidade, etc). Entretanto, admitiu a
“flexibilização” de direitos dos trabalhadores como forma de redução de custos,
em prol da manutenção de postos de trabalho etc.
No que se refere à redução de direitos e vantagens,
contudo, a “flexibilização”, ainda que sujeita ao controle sindical, por meio
de negociação coletiva, não pode ser ampla e irrestrita, a ponto de reduzir
vantagens que a Constituição Federal erigiu como direitos e garantias mínimas,
indispensáveis a uma vida digna do trabalhador e sua família. Abaixo deste
patamar mínimo de proteção ficará seriamente comprometido um padrão de vida com
dignidade e cidadania. Logo, se constituiria em uma afronta às normas e
princípios de Direitos Fundamentais. Reforça este argumento, o fato de a norma
constitucional trazer alguns benefícios ao empregado que expressamente declara
serem vantagens mínimas (salário mínimo, adicional de remuneração por trabalho
extraordinário, insalubre e perigoso, gratificação de natal com base no salário
integral, trabalho noturno superior ao diurno, abono de férias de 1/3 do
salário normal etc,). Não se admite a supressão, nem a redução do valor de tais
benefícios, ainda que mediante acordo ou convenção coletiva de trabalho. Sempre
que a “norma coletiva” assim dispuser deve ser considerada inconstitucional.
O argumento de que a Constituição, ao admitir a
redução salarial e a ampliação prejudicial de jornada, por serem as cláusulas
mais importantes do contrato de trabalho, legitima a redução de outros
direitos, não procede. Isto porque, a redução salarial é medida
excepcionalíssima para permitir que a empresa supere período de dificuldade
econômico-financeira. A sua disciplina infraconstitucional é rigorosa, tanto
que para ter validade, fica condicionada à limitação de retirada de pro labore dos sócios. A ampliação
prejudicial de jornada é restrita a um grupo de trabalhadores que têm por
benefício jornada reduzida de seis horas (CF/88, art. 7º, XIV).
No tocante à “terceirização” a Constituição é silente e a disciplina jurídica é toda
infraconstitucional. Aliás, é precária a legislação sobre terceirização de
mão-de-obra. A lacuna legislativa ensejou a construção jurisprudência pelo
Tribunal Superior do Trabalho, através da Súmula 331. Não há uma definição
jurídica do instituto. Dir-se-á, porém, que se fundamenta no princípio da livre iniciativa (CF/88, art. 1º, IV e
art. 170). Tem prevalecido a máxima: se não há regra que proíba, permite-se a
terceirização de atividade-meio, jamais da atividade-fim do empreendimento
empresarial.
A Constituição não arrolou o exercício da livre iniciativa como um princípio
fundamental isolado e absoluto, porque expressamente jungiu, atrelou e limitou-o
aos valores sociais do trabalho,
outro princípio fundamental do Estado Democrático de Direito (CF/88, art. 1º,
IV). Não é demais lembrar que os princípios fundamentais da dignidade da pessoa humana e da cidadania (CF/88, art. 1º, II, III),
igualmente fundamento do Estado Democrático de Direito, convergem para os
objetivos fundamentais de uma sociedade
livre, justa e solidária (CF/88, art. 3º, I). Não há aí conflito de
princípios fundamentais, porque os princípios dos valores sociais do trabalho e
da livre iniciativa só têm sentido se interpretados de formar harmônica,
porque um é complementar do outro. Daí, serem indissociáveis.
Afronta, portanto, direitos e princípios
fundamentais a terceirização de mão-de-obra, em que o atravessador, as pessoas
que praticam a merchandage, não anota
a Carteira de Trabalho, remunera o trabalhador com salário inferior ao “piso da
categoria”, não fornece equipamentos de proteção contra acidente de trabalho,
nem presta os primeiros socorros em caso infortunística. A afronta se torna
mais grave se o contrato de trabalho estabelece o ganho por unidade de produção
(peça de sapato, confecção de vestuário, tonelada de cana cortada, caixa de
laranja colhida etc), condicionando o valor da remuneração à produção diária,
isto é, proporcional ao esforço físico durante à jornada. Esta forma de
remuneração foi apontada como provável causa de morte de onze (11)
trabalhadores rurais em serviço de corte de cana, por exaustão, no Estado de
São Paulo, diagnosticada como “parada cardio-respiratória”, por excesso de
trabalho[34].
Estas condições de trabalho são degradantes, em
relação aos trabalhadores que têm vínculo direto com as Destilarias de Álcool e
Usinas de Açúcar, no interior do Estado de São Paulo. Os empregados destas
agroindústrias desfrutam de situação privilegiada, na maioria dos casos, porque
recebem os benefícios da legislação social, circunstância nem sempre alcançada
pelos trabalhadores de “empresas terceirizadas”. A terceirização nestes moldes afronta
Direitos Fundamentais do cidadão trabalhador.
CONCLUSÃO
É costume sustentar-se que no Brasil predominou uma
tendência estatizante que refletiu intensamente na elaboração do texto
constitucional de 1988, especificamente no que se refere aos direitos sociais.
Diz-se que a conseqüência foi a concessão paternalista de numerosos benefícios
trabalhistas e a criação de um sistema de previdência social excessivamente
generoso, incompatível com a realidade social e econômica do País. O Brasil
estaria, então, na contramão da história, pois os principais países do mundo
ocidental, como os Estados Unidos da América, Inglaterra, Alemanha, França,
Itália, Espanha vêm há algum tempo se afastando do modelo Welfare state.
Não há dúvida que o modelo clássico do Welfare state, tal como concebido nos
seus primórdios está sofrendo revisão porque a sua evolução se faz necessária.
O seu aprimoramento se dará através de um processo paulatino de atualização e
adaptação aos tempos modernos e que se convencionou denominar de “capitalismo
maduro” e da globalização.
O capitalismo no Brasil, porém, não está mais
estruturado ou assentado em uma economia rural de latifúndio “semi-feudais”,
como as fazendas de café de Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo ou de
rústicos engenhos de cana para produção de açúcar do Nordeste, nem em meia
dúzia de fábricas rudimentares e incipientes, como se encontrava no primeiro
quartel do século XX.
O desenvolvimento industrial e tecnológico
transformou o parque industrial do País entre os mais desenvolvidos do globo.
As agroindústrias de produção de açúcar e álcool para combustível, de sucos de
frutas e o agrobussines são a
expressão da pujança agropecuária. Vários setores industriais é o berço de
tecnologia de ponta, como as montadoras de veículos e máquinas pesadas, da
aviação civil, de eletro-eletrônico, da construção civil e metalurgia, por
exemplo. O setor financeiro é um dos mais avançados do mundo (não sei se para a
felicidade ou infelicidade do povo). No campo da energia temos uma estrutura
gigantesca usinas hidroelétricas e estamos às vésperas da auto-suficiência de
produção de petróleo[35].
Não é possível enumerar de forma exaustiva o avanço tecnológico e o crescimento
econômico do País. Constata-se uma acumulação de capital talvez aquém do
desejável, mas muito significativo.
Por outro lado, pelos dados do IBGE, em outubro de
2003[36]
o País contava com 10.335.962 empresas urbanas na informalidade que ocupavam
13.830.868 trabalhadores, dentre estes, trabalhadores por conta própria,
pequenos empregadores, trabalhadores sem carteira assinada e trabalhos não
remunerados. Em 2004[37],
17,8% da população não dispunha de água encanada, 34,5% não tinha esgoto. Neste
mesmo ano, segundo dados do IBGE, a taxa de analfabetismo era de 10,5% entre
homens e 10,8% entre mulheres. Se acrescentarmos estes aos dados da população
sem moradia digna, residindo em favelas, palafitas nas periferias urbanas e os
trabalhadores rurais expulsos do campo sem trabalho, o quadro se agrava ainda
mais.
Os dados disponíveis permitem constatar um brutal
descompasso no desenvolvimento econômico e social. Diante deste quadro, cabe
pergunta inevitável: considerando os altíssimos níveis de trabalho e atividade
informais, a taxa crescente de desemprego, a falta de oportunidade de trabalho
para a população jovem, a péssima distribuição de renda e o restritivo acesso
da população de baixa renda aos serviços públicos básicos, como falar em Direitos Fundamentais
como cidadania, igualdade, dignidade, liberdade, direitos da personalidade,
acesso à justiça etc, para esta parcela da sociedade?
A conclusão é inevitável, aquilo que se convencionou
denominar de “inclusão social” é pressuposto essencial para a efetividade dos
direitos fundamentais. E a inclusão social só se dará pela efetividade dos
direitos sociais preconizados pela “Constituição Cidadã”, amparados pelo manto
da imutabilidade prejudicial, contemplada no art. 60, § 4º da Constituição
Federal.
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