Prezados amigos,
É um tema polêmico, enfrentado com maestria pela Prof. Maria Sylvia Zanella Di Pietro, publicando pelo consultor jurídico.
Trago aqui a transcrição do artigo da Professora, porque a questão suscitada merece uma profunda reflexão.
A partir da Emenda Constitucional n. 20/98 o sistema previdenciário é exclusivamente contributivo, inclusive pelo servidor público, à semelhança de um seguro para amparo na velhice ou invalidez.
Assim, completado o período de carência para a aposentadoria (por idade, tempo de contribuição ou invalidez), o servidor aposenta.
Em seguida, descobre-se uma infração legal, passível de exoneração a bem do serviço público, acometida durante a sua atividade, pode transmitir seus efeitos para a inatividade, quando já havia direito adquirido?
O artigo examina a evolução legislativa a respeito, compara com o trabalhador filiado ao regime geral da previdência social que cometeu justa causa, na vigência do contrato e que não perde o direito à aposentadoria.
É muito interessante este artigo.
Daí, a minha ousadia de transcreve-lo abaixo.
José A. Pancotti
Cassação de aposentadoria é incompatível com regime previdenciário dos servidores
16 de abril de 2015, 8h00
A cassação de aposentadoria tem sido prevista como penalidade nos Estatutos dos Servidores Públicos. Na esfera federal, a Lei 8.112/1990, no artigo 134, determina que “será cassada a aposentadoria ou a disponibilidade do inativo que houver praticado, na atividade, falta punível com a demissão”. A justificativa para a previsão de penalidade dessa natureza decorre do fato de que o servidor público não contribuía para fazer jus à aposentadoria. Esta era considerada como direito decorrente do exercício do cargo, pelo qual respondia o Erário, independentemente de qualquer contribuição do servidor. Com a instituição do regime previdenciário contributivo, surgiu a tese de que não mais é possível a aplicação dessa penalidade, tendo em vista que o servidor paga uma contribuição, que é obrigatória, para garantir o direito à aposentadoria.
O regime
previdenciário contributivo para o servidor público foi previsto nas
Emendas Constitucionais 3/1993 (para servidores federais), 20/1998 (para
servidores estaduais e municipais, em caráter facultativo) e 41/2003
(para servidores de todas as esferas de governo, em caráter
obrigatório). No entanto, mesmo antes da instituição desse regime, já
havia algumas vozes que se levantavam contra esse tipo de penalidade. O
argumento mais forte era o de que a aposentadoria constituía umdireito do
servidor que completasse os requisitos previstos na Constituição: era o
direito à inatividade remunerada, como decorrência do exercício do
cargo por determinado tempo de serviço público. Alegava-se que a punição
era inconstitucional, porque atingia ato jurídico perfeito.
Com
esse argumento, algumas ações foram propostas pleiteando a invalidação
da punição, chegando, algumas delas, ao conhecimento e julgamento do
Supremo Tribunal Federal. A Corte não acolheu aquele entendimento. No MS
21.948/RJ, alegava-se a inconstitucionalidade dos incisos III e IV do
artigo 127, da Lei 8.112/90, que previam as penas de demissão e de
cassação de aposentadoria ou disponibilidade, sob o argumento de que,
quando aplicada a pena de demissão, o servidor já havia completado o
tempo para aposentadoria. O argumento foi afastado, sob o fundamento de
que o artigo 41, parágrafo 1º, da Constituição prevê a demissão; e que a
lei prevê inclusive a cassação de aposentadoria, aplicável ao inativo,
se resultar apurado que praticou ilícito disciplinar grave, quando em
atividade. O mesmo entendimento foi adotado no MS 22.728/PR, no qual foi
afastado o argumento de que a pena de cassação de aposentadoria é
inconstitucional por violar ato jurídico perfeito.
Depois
da EC 20/98, o STF proferiu acórdão no MS 23.299/SP. O relator foi o
ministro Sepúlveda Pertence, que não enfrentou o tema diante da mudança
no regime jurídico da aposentadoria e adotou a mesma tese já aplicada
aos casos precedentes. Igual decisão foi adotada no ROMS 24.557-7/DF. No
julgamento do AgR no MS 23.219-9/RS, o relator anotou que, não obstante
o caráter contributivo de que se reveste o benefício previdenciário, o
STF tem confirmado a possibilidade de aplicação da pena de cassação de
aposentadoria. O julgado baseou-se, ainda uma vez, no precedente,
relatado pelo Min. Pertence.
Mais
recentemente, novo posicionamento foi adotado em acórdão proferido pela
2ª Turma (RE 610.290/MS, rel. min. Ricardo Lewandowski), em cuja ementa
consta que: “o benefício previdenciário instituído em favor dos
dependentes de policial militar excluído da corporação representa uma
contraprestação às contribuições previdenciárias pagas durante o período
efetivamente trabalhado.” Nesse caso, alegava-se que era
inconstitucional o dispositivo de lei estadual que instituiu o benefício
previdenciário aos dependentes de policial militar excluído da
corporação. A decisão foi pela constitucionalidade do dispositivo, por
se tratar de benefício previdenciário, de caráter contributivo. Ponderou
o ministro que “entender de forma diversa seria placitar verdadeiro
enriquecimento ilícito da Administração Pública que, em um sistema
contributivo de seguro, apenas receberia as contribuições do
trabalhador, sem nenhuma contraprestação”.
Note-se que o acórdão trata da cassação da pensão dos
dependentes e não da cassação de aposentadoria. O órgão especial do
Tribunal de Justiça de São Paulo, em acórdão proferido no MS
2091987-98.2014.8.26.0000, entendeu, por maioria de votos, que a
cassação de aposentadoria se tornou incompatível com a instituição do
regime previdenciário. A meu ver, adotou a tese correta.
É
possível reconhecer que a regra que permite a cassação de aposentadoria
gera dois tipos opostos de resistência: a) de um lado, a repulsa pela
penalidade em si, que é aplicada quando o inativo já está com idade
avançada e com grande dificuldade ou mesmo impossibilidade de encontrar
outro trabalho, seja no setor público, seja no setor privado; no acórdão
mencionado, proferido pelo Órgão Especial do TJSP, o inativo já tinha
se aposentado compulsoriamente por ter completado 70 anos de idade; b)
de outro lado, a extinção da penalidade de cassação de aposentadoria por
ilícito praticado quando o inativo ainda estava em atividade gera outro
tipo de repulsa, que é o fato de o servidor acabar não sendo punido na
esfera administrativa (ainda que possa ser punido na esfera penal e
responder civilmente pelos danos causados ao erário, inclusive em ação
de improbidade administrativa).
Há que
se ponderar que, em se tratando de pena de demissão, não há impedimento a
que o servidor volte a ocupar outro cargo público, uma vez que preencha
os respectivos requisitos, inclusive a submissão a concurso público,
quando for o caso. Se assim não fosse, a punição teria efeito
permanente, o que não é possível no direito brasileiro. E não há dúvida
de que, se vier a ocupar outro cargo, emprego ou função, o tempo de
serviço ou de contribuição, no cargo anterior, será computado para fins
de aposentadoria e disponibilidade, com base no artigo 40, parágrafo 9º,
da Constituição. Mesmo que outra atividade seja prestada no setor
privado ou em regime de emprego público, esse tempo de serviço ou de
contribuição no cargo em que se deu a demissão tem que ser considerado
pelo INSS, por força da chamada contagem recíproca, prevista no artigo
201, parágrafo 9º, da Constituição.
Façamos
um paralelo com o trabalhador filiado ao Regime Geral de Previdência
Social. O que acontece quando demitido do emprego por justa causa, por
ter praticado falta grave? O trabalhador tem dois tipos de vínculos: a)
um vínculo de emprego com a empresa, regido pela CLT; e b) um vínculo de
natureza previdenciária, com o INSS. Se for demitido, mas já tiver
completado os requisitos para aposentadoria, ele poderá requerer o
benefício junto ao órgão previdenciário. Se não completou os requisitos,
ele poderá inscrever-se como autônomo e continuar a contribuir até
completar o tempo de contribuição; ou poderá iniciar outro vínculo de
emprego que torne obrigatória a sua vinculação ao regime de seguridade
social; ou poderá ingressar no serviço público, passando a contribuir
para o Regime Próprio, também em caráter obrigatório. De qualquer forma,
fará jus à já referida contagem do tempo de contribuição anterior. Para
fins previdenciários, é absolutamente irrelevante saber quantos
empregos a pessoa ocupou e quais as razões que o levaram a
desvincular-se de uma empresa e vincular-se a outra. Se for demitido,
com ou sem justa causa, nada pode impedi-lo de usufruir dos benefícios
previdenciários já conquistados à época da demissão.
A
mesma regra aplica-se aos servidores públicos celetistas e temporários,
que são necessariamente vinculados ao Regime Geral, nos termos do
artigo 40, parágrafo 13, da Constituição. Se forem demitidos por justa
causa, porque praticaram ilícito administrativo, essa demissão não os
fará perder os benefícios previdenciários já conquistados ou a
conquistar, mediante preenchimento do requisito de tempo de contribuição
exigido em lei. Com relação ao servidor efetivo, não é e não pode ser
diferente a conclusão, a partir do momento em que se alterou a natureza
de sua aposentadoria. Ele também passa a ter dois tipos de vínculos: um
ligado ao exercício do cargo e outro de natureza previdenciária.
Antes
da instituição do Regime Próprio do Servidor, a aposentadoria era um
direito decorrente do exercício do cargo, financiado inteiramente pelos
cofres públicos, sem contribuição do servidor, da mesma forma que outros
direitos previstos na legislação constitucional e estatutária, como a
estabilidade, a remuneração, as vantagens pecuniárias, as férias
remuneradas. Note-se que a pensão, ao contrário dos outros direito
ligados ao cargo, já tinha natureza previdenciária contributiva, desde
longa data.
Ocorre que houve declarada
intenção do governo de aproximar o regime de aposentadoria do servidor
público e o do empregado do setor privado. Tanto assim que o artigo 40,
parágrafo 12, da Constituição manda aplicar ao Regime Próprio, no que
couber, os “requisitos e critérios fixados para o regime geral de previdência social”.
Sendo de caráter contributivo,
é como se o servidor estivesse “comprando” o seu direito à
aposentadoria; ele paga por ela. Daí a aproximação com o contrato de
seguro. Se o servidor paga a contribuição que o garante diante da
ocorrência de riscos futuros, o correspondente direito ao benefício
previdenciário não pode ser frustrado pela demissão. Se o governo quis
equiparar o regime previdenciário do servidor público e o do trabalhador
privado, essa aproximação vem com todas as consequências: o direito à
aposentadoria, como benefício previdenciário de natureza contributiva,
desvincula-se do direito ao exercício do cargo, desde que o servidor
tenha completado os requisitos constitucionais para obtenção do
benefício.
Qualquer outra interpretação
leva ao enriquecimento ilícito do erário e fere a moralidade
administrativa. Não tem sentido instituir-se contribuição com caráter
obrigatório e depois frustrar o direito à obtenção do benefício
correspondente. Assim, se a demissão não pode ter o condão de impedir o
servidor de usufruir o benefício previdenciário para o qual contribuiu
nos termos da lei (da mesma forma que ocorre com os vinculados ao Regime
Geral), por força de consequência, também não pode subsistir a pena de
cassação de aposentadoria, que substitui, para o servidor inativo, a
pena de demissão.
Não se pode invocar, para afastar essa conclusão, o caráter solidário do regime previdenciário. Não há dúvida de que a solidariedade é
uma das características da previdência social, quando comparada com a
previdência privada. Podemos apontar as seguintes características do
seguro social e que o distinguem do seguro privado: a) obrigatoriedade, pois protege as pessoas independentemente de sua concordância, assegurando benefícios irrenunciáveis; b) pluralidade das fontes de receita,
tendo em vista a impossibilidade dos segurados manterem, por si, o
sistema e cobrirem todos os benefícios; daí a ideia de solidariedade,
que dá fundamento à participação de terceiros que não os beneficiários
no custeio do sistema; c) desproporção entre a contribuição e o benefício, exatamente como decorrência da pluralidade das fontes de receita; d) ausência de lucro, já que é organizada pelo Estado.
O fato de ser a solidariedade uma das características do seguro social não significa que os beneficiários não tenham direito de receber o benefício. Eu diria que a solidariedade até reforça o direito, porque ela foi idealizada exatamente para garantir o
direito dos segurados ao benefício. De outro modo, não haveria recursos
suficientes para manter os benefícios da previdência social. A
solidariedade significa que pessoas que não vão usufruir do benefício
contribuem para a formação dos recursos necessários à manutenção do
sistema de previdência social; é o caso dos inativos e pensionistas e
também dos servidores que não possuem dependentes mas têm que contribuir
necessariamente para a manutenção do benefício; são as hipóteses em que
à contribuição não corresponde qualquer benefício. Mas para os
servidores assegurados, à contribuição tem necessariamente que
corresponder um benefício, desde que preenchidos os requisitos previstos
na Constituição e na legislação infraconstitucional. A regra da
solidariedade convive (e não exclui) o direito individual ao benefício
para o qual o servidor contribuiu.
A solidariedade não afasta o direito individual dos
beneficiários, já que o artigo 40 da Constituição define critérios para
cálculo dos benefícios, a saber, dos proventos de aposentadoria e da
pensão, nos parágrafos 1º, 2º e 3º. Não há dúvida de que a contribuição
do servidor, quando somada aos demais requisitos constitucionais, dá direito ao recebimento dos benefícios.
O
já transcrito argumento utilizado pelo Min. Lewandowski com relação à
pensão é inteiramente aplicável à aposentadoria. Note-se que o caráter
contributivo e retributivo do regime previdenciário do servidor também
foi ressaltado na ADI nº 2010. Para o Relator, a “existência de estrita
vinculação causal entre contribuição e benefício põe em evidência a
correção da fórmula, segundo a qual não pode haver contribuição sem
benefício”.
A relação entre benefício e
contribuição decorre de vários dispositivos da Constituição, mas consta
expressamente do artigo 40, parágrafo 3º. O que ocorre é que a
legislação estatutária não se adaptou inteiramente ao novo regime de
aposentadoria e continua a prever a pena de cassação de aposentadoria,
sem levar em consideração que ela se tornou incompatível com o regime
previdenciário. Além disso, há uma resistência grande dos entes públicos
em abrir mão desse tipo de penalidade, seja por não terem tomado
consciência das consequências de alteração do regime do servidor, seja
por revelarem inconformismo com a incompatibilidade da referida
penalidade com o regime previdenciário contributivo agora imposto a
todos os servidores.
Mas o fato é que a
pena de cassação de aposentadoria deixou de existir para cada ente
federativo a partir do momento em que, por meio de lei própria,
instituíram o regime previdenciário para seus servidores. Isto não
impede que o servidor responda na esfera criminal e no âmbito da lei de
improbidade administrativa e que responda pela reparação civil dos
prejuízos eventualmente causados ao erário. A cassação de
disponibilidade continua a existir, porque a disponibilidade continua a
ser uma decorrência da estabilidade do servidor, independentemente de
qualquer contribuição previdenciária.
Maria
Sylvia Zanella Di Pietro é advogada e professora titular aposentada de
Direito Administrativo da Universidade de São Paulo (USP).
Revista Consultor Jurídico, 16 de abril de 2015, 8h00