ARTIGOS / TEXTO SELECIONADO PELOS EDITORES
O dano existencial no Direito do Trabalho
EXTRAPÍDO DO SITE "JUS NAVEGANDI"
Publicado em 04/2014. Elaborado em 10/2013.
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ASSUNTOS:
O dano existencial distingue-se do dano moral porque não se limita a uma
amargura, a uma aflição, caracterizando-se pela renúncia a uma atividade
concreta. No Direito do Trabalho pode se dar em casos de assédio moral e doença
ocupacional. Tais eventos causam prejuízos ao projeto de vida, às incumbências
do cotidiano, à paz de espírito.
1. INTRODUÇÃO
Oriunda do direito italiano, a teoria acerca do
dano existencial como espécie dos danos imateriais, distinto do dano moral, e
apto a fundamentar pleito ressarcitório, vem despertando gradativamente o
interesse da doutrina e da jurisprudência, em especial diante de seus
desdobramentos no âmbito do Poder Judiciário, instado a pronunciar-se sobre a
matéria, tanto na esfera cível como laboral.
A jurisprudência nacional já registra casos de
acolhimento de pedido de indenização fundado em prejuízo à vida do trabalhador
fora do ambiente laboral, em razão de condutas ilícitas praticadas pelo
empregador, citando-se a título de exemplo julgado proferido pelo Tribunal
Regional do Trabalho da 4ª Região, em março de 2012 (Processo
0000105-14.2011.5.04.0241).
A relevância do tema e suas prováveis
implicações no âmbito laboral e, por consequência, a necessidade de exame por
parte do Judiciário Trabalhista, diante do previsível incremento das demandas
envolvendo esta espécie de dano, motivaram o presente estudo.
2.EVOLUÇÃO
HISTÓRICA DO TRABALHO HUMANO
O trabalho foi concebido, originariamente, como
castigo e dor. A doutrina menciona que a palavra advém de tripaliare, torturar
com tripalium, máquina de três pontas. Para outra vertente, a palavra tripalium
significa cavalete de três paus, utilizado para conter os cavalos no momento de
lhes aplicar a ferradura. Desta noção surgiu o termo trapaliare, que designa
toda e qualquer atividade, inclusive a intelectual.1
Independentemente do sentido que lhe é
atribuído, é certo que em torno do trabalho as pessoas estruturam suas vidas,
do que decorre a relevância do estudo acerca de todos os aspectos sociais,
culturais e, especialmente, jurídicos nele envolvidos.
O trabalho passou por vários estágios de
evolução. Inicialmente, sua principal função era obter alimentos. Na sequência,
o homem, para prevenir ataques de animais ferozes, passou a fabricar
instrumentos de defesa. Nas lutas com outras tribos, os vencedores matavam os
adversários feridos. Com o passar do tempo, concluíram que, em lugar de matar,
seria mais adequado escravizar os prisioneiros e submetê-los ao trabalho. Os
excedentes passaram a ser vendidos, trocados ou alugados. A história registra
que os primeiros assalariados foram os escravos libertados por seus senhores e
que, para sobreviver, alugavam seus serviços a terceiros mediante pagamento.
À escravidão seguiu-se a servidão, amplamente
utilizada na sociedade feudal da Idade Média e vista como condição
intermediária entre a escravidão e a liberdade, na medida em que aos servos
eram assegurados alguns direitos, a exemplo da herança de animais e objetos
pessoais. Paralelamente à servidão, praticada no campo, desenvolveram-se no
meio urbano as corporações, centradas no ofício e na profissão. Os denominados
mestres da profissão mantinham sob sua direção os aprendizes e companheiros, a
quem eram assegurados salário, assistência médica e monopólio do ofício.
A invenção da máquina de fiar e a vapor provocou
profunda mudança nos métodos de produção, com reflexos nas relações entre
patrões e trabalhadores. Inexistiam leis regulamentadoras do trabalho, o que
propiciava ilimitada exploração dos operários.
A Revolução Francesa (1789), com seus ideais de
liberdade, igualdade e fraternidade, deu origem ao liberalismo, afastando a
intervenção do Estado da economia e conferindo-lhe a condição de mero árbitro
das disputas sociais, o que prejudicou sensivelmente o desenvolvimento do
direito do trabalho.
A intensa exploração dos trabalhadores deu
origem ao movimento sindical, iniciando na Inglaterra, a partir de pequenos
clubes que tinham em vista garantir direitos trabalhistas. A reunião dos
trabalhadores assegurou-lhes mais força de negociação, passando então o direito
do trabalho a ganhar contornos. Juntamente com o incremento dos sindicatos,
passou a intensificar-se a intervenção do Estado na economia e nas relações
entre os particulares, inclusive nos contratos de trabalho, o que propiciou o
efetivo nascimento do direito do trabalho.
TEXTOS
RELACIONADOS
A Constituição Mexicana de 1917 é apontada como
marco inaugural do constitucionalismo social, que representa a inclusão de
direitos trabalhistas e sociais na Constituição dos países. A Constituição
alemã de 1919 contemplou importante conjunto de direitos trabalhistas,
influenciando outras constituições europeias. Tinha início, assim, a
institucionalização do Direito do Trabalho, que tem como um de seus pontos
relevantes a criação da Organização Internacional do Trabalho (1919) e que
atingiu seu ápice nas décadas seguintes à Segunda Guerra Mundial, com o
aprofundamento do processo de constitucionalização dos direitos. Criava-se
dessa forma o chamado Estado de Bem-Estar Social.
Entretanto, no final do século XX iniciou-se,
nos países desenvolvidos, após a crise do petróleo de 1973/1974, processo de
reorganização do capital, com intensificação da concorrência interempresarial,
aumento das taxas de desemprego e agravamento do déficit fiscal do Estado,
inibindo seu papel de protagonista no incremento de políticas sociais. A
revolução tecnológica agravou o quadro, trazendo, dentre outras consequências,
a terciarização da atividade empresarial, a precarização das relações de
trabalho, o desemprego estrutural e a criação de outras formas de prestação do
labor, de que são exemplos o teletrabalho e o escritório em casa.
O Direito do Trabalho, em consequência do novo
cenário social e econômico, aliado ao fenômeno da globalização, sofreu
profundas transformações, com diminuição das normas de origem estatal e defesa
enfática da flexibilização e da desregulamentação. O Estado buscou afastar-se
das relações laborais, cedendo espaço aos sindicatos e conferindo maior
prestígio à negociação coletiva. Entretanto, os sindicatos, também eles
enfraquecidos, foram paulatinamente perdendo seus poderes de pressão e
barganha. Neste cenário, emergiram os direitos fundamentais como fator decisivo
para conter o avanço dos poderes empresariais e restabelecer o equilíbrio entre
tais poderes e os direitos dos trabalhadores. Arion Sayão Romita assinala que
“A função dos direitos fundamentais, em tal contexto, cresce de importância. O
núcleo duro representado pela gama de direitos denominados fundamentais resiste
ao embate dos novos acontecimentos de ordem econômica para reafirmar o império
da necessidade de respeito à dignidade da pessoa humana”.2
DIREITOS
FUNDAMENTAIS, DIGNIDADE HUMANA E RELAÇÕES DE TRABALHO
Para Arion Sayão Romita, “pode-se definir
direitos fundamentais como os que, em dado momento histórico, fundados no
reconhecimento da dignidade da pessoa humana, asseguram a cada homem as
garantias de liberdade, igualdade, solidariedade, cidadania e justiça.”3
Os direitos fundamentais e o princípio da
dignidade humana entrelaçam-se fortemente. O último é apontado como elemento
fundante, informador e unificador dos direitos fundamentais e uma das bases do
Estado de Direito Democrático, conforme previsto no inciso III, do art. 1º, da
Constituição Federal, servindo também como elemento orientador do processo de
interpretação, integração e aplicação das normas constitucionais e
infraconstitucionais.
A doutrina ressalta:
Quando a Constituição Federal elencou no seu
art. 1º, III, a dignidade da pessoa humana como um dos princípios fundamentais
da República, consagrou a obrigatoriedade da proteção máxima à pessoa por meio
de um sistema jurídico-positivo formado por direitos fundamentais e da
personalidade humana, garantindo assim o respeito absoluto ao indivíduo,
propiciando-lhe uma existência plenamente digna e protegida de qualquer espécie
de ofensa, quer praticada pelo particular, como pelo Estado.4
No âmbito das relações trabalhistas a simbiose
entre direitos fundamentais e princípio da dignidade ganha destaque e
relevância. O respeito aos atributos do trabalhador, atendida sua condição de
pessoa humana, é elemento fundamental para que não seja visto apenas como mera
peça da engrenagem e passe a ser reconhecido como homem, valorizando-se sua
integridade física, psíquica e moral. Para Rodrigo Goldschmidt, o direito
fundamental ao trabalho digno compreende o complexo de normas jurídicas que
visem não somente a garantir o posto de trabalho como fonte de rendimentos e de
sustento, mas também a fomentar condições dignas de labor, preservando a
higidez física e mental do trabalhador.5
Os direitos fundamentais foram concebidos
originariamente como direitos de defesa, para proteger o cidadão de
interferências indevidas do Estado. Atendida essa dimensão, ao Poder Público
era atribuída competência negativa, o que determinava a obrigação de respeitar
o núcleo básico de liberdades do cidadão. Trata-se da chamada eficácia
vertical, necessária, ante a manifesta desigualdade do indivíduo perante o
Estado, a quem são atribuídos poderes de autoridade. Para José Joaquim Gomes
Canotilho, a função de direitos de defesa dos cidadãos, exercida pelos direitos
fundamentais, compreende dupla perspectiva: 1) no plano jurídico-objetivo,
representam normas de competência negativa para os poderes públicos, proibindo
sua interferência na esfera jurídica individual; 2) no plano jurídico-subjetivo,
significam o poder de exercer positivamente direitos fundamentais (liberdade
positiva) e de exigir abstenções do Estado, a fim de evitar ações lesivas por
parte deste (liberdade negativa).6
Entretanto, com o evoluir das relações sociais e
o incremento de suas necessidades, observou-se a insuficiência desse mero dever
de abstenção. Surgiu então a chamada vinculação positiva dos poderes públicos,
que pressupõe a ação do Estado, que deve adotar políticas e ações aptas a
fomentar a preservação dos direitos e garantias dos indivíduos, concretizando
assim o ideário do Estado Social.
Historicamente, conferiu-se especial
proeminência à proteção dos direitos fundamentais em face do Estado, em razão
de que estes surgiram e afirmaram-se justamente como reação ao poder das
monarquias absolutistas.
Entretanto, em razão da manifesta superação do
tradicional conceito de que direito constitucional e direito privado ocupavam
posições estanques, divorciadas entre si, e diante da progressiva assimilação
da força normativa da Constituição, fez-se necessário refletir sobre o problema
da aplicação dos direitos fundamentais nas relações entre particulares. Segundo
Von Münch, “Uma vez desmoronado o dique que, segundo a doutrina precedente,
separava o direito constitucional do direito privado, os direitos fundamentais
se precipitaram como uma cascata no mar do Direito privado.”7.
Segundo a doutrina tradicional, dominante no
século XIX, os direitos fundamentais tinham por objetivo proteger o indivíduo
contra eventuais ações do Estado e, como tal, não apresentavam relevância nas
relações entre particulares. Entretanto, o reconhecimento de que os direitos
fundamentais não se limitam ao direito de defesa, para conter o poder estatal,
mas também compreendem postulados de proteção, conferiu supedâneo à teoria que
defende sua aplicação no âmbito do direito privado. Consoante afirma Konrad
Hesse “a liberdade humana pode resultar menoscabada ou ameaçada não só pelo
Estado, mas também no âmbito de relações jurídicas privadas”, razão por que “só
é possível garanti-la eficazmente considerando-a como um todo unitário”8
Com efeito, o desenvolvimento da sociedade
pulverizou o poder, antes concentrado nas mãos do Estado. As diversas formas de
organização surgidas na órbita privada passaram a assumir relevantes funções,
desenvolvendo-se também entre elas o fenômeno do poder, que deixou de ser
atributo exclusivo do Estado. Existe na sociedade contemporânea, marcada que é
pela complexidade, relações jurídicas entre particulares em que não impera o
dogma da igualdade, verificando-se amiúde verticalidade, desigualdade e
sujeição, com manifesta superioridade de uma das partes sobre as outras, o
justificar a adoção da teoria da chamada eficácia horizontal dos direitos
fundamentais.
Ao explicar a tese que advoga a aplicação dos
direitos fundamentais nas relações jurídicas entre particulares, Jane Reis
Gonçalves Pereira afirma que esta toma em consideração, principalmente, a
dimensão funcional dos direitos fundamentais. Quando se examina os direitos
fundamentais a partir de sua finalidade – que é, precipuamente, garantir níveis
máximos de autonomia e dignidade aos indivíduos - , mostra-se razoável defender
sua aplicação em todas as hipóteses onde possa haver comprometimento dessa
esfera de autogoverno. Para esse efeito, é irrelevante que a redução do âmbito
da autonomia decorra de ato de um poder privado ou de um poder público. “Se uma
das partes encontra-se em situação de sujeição, seu poder de autodeterminação
resta aniquilado, não havendo como cogitar-se de aplicação do princípio da
liberdade.9
A experiência demonstra a pertinência da
observação. O âmbito laboral, em razão de suas particularidades, em especial a
subordinação jurídica do empregado, é propício à chamada horizontalização dos
direitos fundamentais, ou seja, à aplicação desses direitos a relações entre
particulares. Como consequência imediata da celebração do contrato de trabalho,
surge para o empregador os poderes de organização, fiscalização e disciplina do
trabalho, que encontram fundamento no art. 2º da Consolidação das Leis do
Trabalho, segundo o qual empregador é “a empresa, individual ou coletiva, que,
assumindo os riscos da atividade econômica, admite, assalaria e dirige
a prestação pessoal de serviços.”(grifos acrescidos). Consequência do
poder diretivo assegurado ao empregador é a sujeição do empregado, que assume
dependência hierárquica perante o empregador. Há, portanto, manifesta
assimetria de poder, circunstância que pode fomentar a exacerbação das
faculdades próprias dos poderes de direção e disciplinar enfeixados nas mãos do
empregador, afetando, dentre outros, os direitos da personalidade do
trabalhador.
3.DIREITOS
DA PERSONALIDADE
A doutrina assinala que, embora o reconhecimento
dos direitos da personalidade, como categoria de direito subjetivo, seja
relativamente recente, sua tutela jurídica já existia na Antiguidade, com a
punição de ofensas físicas e morais à pessoa. A efetiva construção de sua
dogmática, entretanto, somente foi possível no final do século XX, em razão do
redimensionamento da noção de respeito à dignidade da pessoa humana (art. 1º,
III, da CF/88). “A importância desses direitos e a posição privilegiada que vem
ocupando na Lei Maior são tão grandes que sua ofensa constitui elemento
caracterizador de dano moral e patrimonial indenizável, provocando uma
revolução na proteção jurídica pelo desenvolvimento de ações de
responsabilidade civil e criminal: [...]”.10
Sobre o conceito dos direitos da personalidade,
afirma a doutrina:
Conceituam-se os direitos da personalidade como
aqueles que têm por objeto os atributos físicos, psíquicos e morais da pessoa
em si e em suas projeções sociais.
A idéia a nortear a disciplina dos direitos da
personalidade é a de uma esfera extrapatrimonial do indivíduo, em que o sujeito
tem reconhecidamente tutelada pela ordem jurídica uma série indeterminada de
valores não redutíveis pecuniariamente, como a vida, a integridade física, a
intimidade, a honra, entre outros.11
Os direitos da personalidade representam
consequência do reconhecimento da dignidade humana. No ordenamento jurídico
brasileiro, sua proteção tem base constitucional, como se observa,
exemplificativamente, do teor do art. 5º, da Carta Magna, e também do art. 6º,
que assegura, dentre outros, o direito ao trabalho. Tais direitos compreendem
núcleo mínimo assegurador da dignidade humana, o que alcança o trabalhador. A
intangibilidade da dignidade do ser humano e o disposto nos arts. 12, 186 e 927
do Código Civil legitimam a reparação de danos causados por ação ou omissão que
implique violação dos direitos da personalidade.
Flaviana Rampazzo Soares assevera:
São as condutas que afetam os direitos da
personalidade as que mais causam danos de natureza extrapatrimonial, pois
afetam o equilíbrio da pessoa, atingindo a sua essência e, em última análise, a
sua dignidade, tornando conveniente a atuação da responsabilidade civil para
cessar a desarmonia ocasionada pelo ofensor.
Os interesses ligados à existência da pessoa
estão intimamente relacionados aos direitos fundamentais e, consequentemente,
aos direitos da personalidade. Da ampla tutela dos mesmos, resulta a
valorização de todas as atividades que a pessoa realiza ou pode realizar, pois
tais atividades são capazes de fazer com o que o indivíduo atinja a felicidade,
exercendo, plenamente, todas as suas faculdades físicas e psíquicas, e a
felicidade é, em última análise, a razão de ser da existência humana.12
4. DANOS
MATERIAIS E IMATERIAIS
A responsabilidade civil incluía,
tradicionalmente, apenas os danos materiais, que alcançavam os danos emergentes
e os lucros cessantes. No Brasil, até o advento da Constituição Federal de
1988, a indenização por danos extrapatrimonais era reconhecida em caráter
excepcional. A admissão da reparabilidade dos danos extrapatrimoniais somente
passou a existir, de forma ampla, a partir da atual Carta Magna, mas sob a
denominação de dano moral. No contexto nacional, a exemplo do que se verifica
no direito comparado, historicamente doutrina e jurisprudência classificaram o
dano injusto indenizável em dano patrimonial – aquele que atinge diretamente o
patrimônio suscetível de valoração econômica imediata – e em dano moral –
aquele que causa abalo pisológico, emocional, aflição, sensação dolorosa ou
angústia, a que foi acrescentado, posteriormente, o dano estético como terceira
categoria de dano indenizável.
Progressivamente, no Brasil e no mundo, cresceu
o reconhecimento da valorização do ser humano, considerado como um valor em si,
o que propiciou maior interesse pela tutela dos direitos imateriais, com a
ampliação de seu âmbito de proteção. Passou-se a contemplar não apenas os danos
morais propriamente ditos, e sim qualquer dano extrapatrimonial de relevo, do
ponto de vista jurídico, ao desenvolvimento da personalidade, o que inclui,
dentre outros, o direito à integridade física, à estética, às atividades de
convivência e de relação. O novo paradigma da indenização passou a ser a ampla
indenização dos danos extrapatrimoniais, considerados gênero, e dos quais o
dano moral é espécie.13
5.O
DANO EXISTENCIAL
Deve-se à doutrina italiana a construção de nova
moldura da responsabilidade civil, incluindo nos danos indenizáveis nova
categoria, denominada “dano existencial”, fundada nas atividades remuneradas ou
não da pessoa, relativa aos variados interesses da integridade física e mental,
de que são exemplos as relações sociais, de estudo, de lazer, comprometidas em
razão de uma conduta lesiva.
A nova categoria passou a ser estudada em razão
de que, no direito italiano, segundo a lei, somente são admitidas duas espécies
de dano indenizável praticado contra a pessoa, quais sejam: a) o dano
patrimonial, fundado no art. 2.043 do Código Civil; e b) o dano
extrapatrimonial, previsto no art. 2.059 do mesmo Código, com a ressalva,
entretanto, de que a indenização somente é devida nos casos previstos em lei ou
se o dano for causado por uma conduta criminosa.
A falta de previsão em lei para a reparação do
dano imaterial decorrente de ato ilícito civil levou a doutrina italiana, no
início dos anos 60, a classificar nova espécie de dano injusto causado à
pessoa, que foi denominado de dano à vida de relação e que consiste na ofensa
física ou psíquica a uma pessoa, que obstaculiza, total ou parcialmente,
usufruir as benesses propiciadas por atividades recreativas, fora do âmbito
laboral, como praticar esportes, frequentar clubes e igrejas, fazer turismo,
dentre outras. A lesão provoca intensa interferência no estado de ânimo e, por
consequência, no seu relacionamento social e profissional, reduzindo as chances
de progresso no trabalho, com reflexo patrimonial negativo. Como exemplos, a
doutrina cita erros médicos que comprometem a higidez física e impossibilitam a
prática de esportes.14
O reconhecimento do dano à vida de relação, que
exigia repercussão no patrimônio da vítima para gerar indenização, fundamentou
os estudos que culminaram na admissão do dano existencial, mais amplo que o
primeiro, pois enseja indenização independentemente do prejuízo financeiro e
representa consagração da tutela da dignidade humana em sua plenitude. “O dano
existencial, ou seja, o dano à existência da pessoa, portanto, consiste na
violação de qualquer um dos direitos fundamentais da pessoa, tutelados pela
Constituição Federal, que causa uma alteração danosa no modo de ser do
indivíduo ou nas atividades por ele executadas com vistas ao projeto de vida
pessoal, prescindindo de qualquer repercussão financeira ou econômica que do
fato da lesão possa decorrer.”15
A sentença 500, de 22.07.1999, proferida pela
Corte de Cassação Italiana, é apontada como prova de reconhecimento, pelo
Judiciário, da nova tendência doutrinária, na medida em que admitiu a pretensão
indenizatória fundada tão somente na injustiça do dano e a não lesão a uma
posição constitucionalmente garantida. Em um segundo momento, considerado de
maior relevo, a mesma Corte de Cassação Italiana proferiu a sentença 7.713, de
07.06.2000, reconhecendo expressamente o dano existencial. Trata-se de ação em
que o pai foi condenado a pagar indenização pelo dano existencial causado ao
filho, em razão da conduta omissiva do genitor, que resistiu inflexivelmente ao
adimplemento das prestações de alimentos, somente vindo a efetuar o pagamento
anos depois do nascimento do filho e em razão de determinação judicial, conduta
que ofendeu o direito do autor de ser tratado com a necessária dignidade e
comprometeu seu desenvolvimento.
DANO
EXISTENCIAL NO DIREITO DO TRABALHO
Dano existencial, como visto, é a lesão ao
conjunto de relações que propiciam o desenvolvimento normal da personalidade
humana, alcançando o âmbito pessoal e social. “É uma afetação negativa, total
ou parcial, permanente ou temporária, seja a uma atividade, seja a um conjunto
de atividades que a vítima do dano, normalmente, tinha como incorporado ao seu
cotidiano e que, em razão do efeito lesivo, precisou modificar em sua forma de
realização, ou mesmo suprimir de sua rotina” [...] Significa, ainda, uma limitação
prejudicial, qualitativa ou quantitativa, que a pessoa sofre em suas atividades
cotidianas”.16
O dano existencial distingue-se do dano moral
porque não se restringe a uma amargura, a uma aflição, caracterizando-se pela
renúncia a uma atividade concreta. O dano moral propriamente dito afeta
negativamente o ânimo da pessoa, estando relacionado ao sentimento, ou seja, é
um sentir, enquanto o dano existencial é um não mais poder fazer, um dever de
mudar a rotina. O dano existencial frustra projeto de vida da pessoa,
prejudicando seu bem-estar e sua felicidade. “Destarte, o dano existencial
difere do dano moral, propriamente dito, porque o primeiro está caracterizado
em todas as alterações nocivas na vida cotidiana da vítima em todos os seus
componentes relacionais (impossibilidade de agir, interagir, executar tarefas
relacionadas às suas necessidades básicas, tais como cuidar da própria higiene,
da casa, dos familiares, falar, caminhar, etc.), enquanto o segundo pertence à
esfera interior da pessoa.”17
No âmbito do Direito do Trabalho, o dano
existencial pode estar presente na hipótese de assédio moral. Este,
sabidamente, compromete a saúde do trabalhador, que apresenta, segundo as
pesquisas, desde sintomas físicos, que incluem dores generalizadas, dentre
outros males, até sintomas psíquicos importantes, com destaque para distúrbios
do sono, depressão e ideias suicidas. O evento, além de causar prejuízos
patrimoniais, pelo comprometimento de capacidade laboral, pode ensejar
sofrimento, angústia, abatimento (dano moral) e também prejuízos ao projeto de
vida, às incumbências do cotidiano, à paz de espírito (dano existencial).
O trabalhador vítima de LER/DORT também pode
padecer de dano existencial. As expressões "Lesões por Esforços
Repetitivos (LER)" e "Distúrbios Osteo musculares Relacionados ao
Trabalho (DORT)" abrangem os distúrbios ou doenças do sistema
músculo-esquelético-ligamentar, que podem ou não estar relacionadas ao
trabalho. As Lesões por Esforços Repetitivos (LER) contemplam problemas distintos,
de causas diversas. Quando alguma destas enfermidades tiver como fator
desencadeante os movimentos repetitivos merecerá o enquadramento como LER. Se
os esforços repetitivos em questão forem executados no exercício da atividade
laboral, a LER então se equipará à DORT, em razão do nexo causal (ocupacional),
caracterizando-se como doença ocupacional (art. 20, § 2º da Lei 8.213/91). As
lesões do sistema músculo-esquelético prejudicam não somente a atividade
laboral, mas também as tarefas do dia a dia, tais como a higienização pessoal,
a execução de instrumentos musicais e outras atividades de lazer,
caracterizando-se, assim, o dano existencial.
O fundamento legal da reparação do dano
existencial é encontrado nos arts. 1º, III, e 5º, V e X, da Constituição Federal,
que consagram o princípio da ressarcibilidade dos danos extrapatrimoniais. O
Código Civil também empresta amparo à indenização, consoante se extrai do
disposto nos arts. 12, caput, 186 e 927. Tais dispositivos são aplicáveis no
âmbito laboral, em razão da previsão contida no art. 8º, parágrafo único, da
Consolidação das Leis do Trabalho, que autoriza a aplicação subsidiária do
direito comum ao Direito do Trabalho.
Na esfera judicial, o tema vem encontrando
acolhimento, conforme se constata, exemplificativamente, de julgado proferido
pelo Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região em 14.03.2012, e cuja ementa
ora se transcreve:
DANO EXISTENCIAL. JORNADA EXTRA EXCEDENTE DO
LIMITE LEGAL DE TOLERÂNCIA. DIREITOS FUNDAMENTAIS. O
dano existencial é uma espécie de dano imaterial, mediante o qual, no caso das
relações de trabalho, o trabalhador sofre danos/limitações em relação à sua
vida fora do ambiente de trabalho em razão de condutas ilícitas praticadas pelo
tomador do trabalho. Havendo a prestação habitual de trabalho em jornadas
extras excedentes do limite legal relativo à quantidade de horas extras, resta
configurado dano à existência, dada a violação de direitos fundamentais do
trabalho que integram decisão jurídico-objetiva adotada pela Constituição. Do princípio
fundamental da dignidade da pessoa humana decorre o direito ao livre
desenvolvimento da personalidade do trabalhador, nele integrado o direito ao
desenvolvimento profissional, o que exige condições dignas de trabalho e
observância dos direitos fundamentais também pelos empregadores (eficácia
horizontal dos direitos fundamentais). Recurso provido.
(0000105-14.2011.5.04.0241 RO. TRT/4ª Região. 1ª turma. Relator Desembargador
José Felipe Ledur).
Há que considerar, entretanto, não obstante a
relevância do tema e a indispensabilidade de emprestar-se concretização ao
princípio e valor constitucional da dignidade humana, que a matéria deve ser
enfrentada pelo Judiciário Trabalhista com a necessária prudência, sob pena de
banalização de tão importante instrumento de tutela, apto, em razão de sua
natureza e desde que adequadamente interpretado, à preservação da normalidade
do cotidiano do trabalhador. Incumbe, portanto, ao magistrado agir com
ponderação, considerando todas as circunstâncias do caso concreto e aquelas
previstas de lei, de molde a aferir a real corporificação do dano existencial
e, achando-se este presente, fixar quantia que, concomitantemente, desestimule
a reincidência e compense a privação sofrida pelo trabalhador vítima do dano
existencial, sem onerar excessivamente o ofensor e sem enriquecer a vítima,
atendendo, assim, aos fins da responsabilidade civil.
6. CONCLUSÃO
O trabalho, concebido inicialmente como castigo
e dor, ocupa posição central no cotidiano das pessoas, que em torno dele
estruturam suas vidas.
A evolução do direito do trabalho foi lenta,
mostrando-se como marco relevante à consolidação e reconhecimento dos direitos
sociais a sua constitucionalização, que deu origem ao chamado Estado de
Bem-Estar Social.
Entretanto, a reorganização do capital,
precipitada pela crise do petróleo de 1973/1974, provocou o afastamento do
Estado das relações laborais, compelindo os trabalhadores a buscar nos direitos
fundamentais ponto de apoio para conter os avanço dos poderes empresariais e
restabelecer o equilíbrio entre tais poderes e os direitos dos laboristas.
Os direitos fundamentais, entrelaçados com o
princípio da dignidade humana, inicialmente concebidos como direitos de defesa
em face do Estado, assumiram nova feição, prestando-se também a evitar lesões e
a fundamentar reparações por atos ilícitos, inclusive aqueles praticados por
particulares, neste contexto inserido o empregador.
Os direitos da personalidade representam
consequência do reconhecimento da dignidade humana e sua violação enseja
reparação dos danos causados.
A responsabilidade civil incluía
tradicionalmente apenas os danos materiais. A admissão da reparabilidade dos
danos extrapatrimoniais somente passou a existir de forma ampla, no cenário
nacional, a partir da Constituição Federal de 1988, mas sob a denominação de
dano moral.
Deve-se à doutrina italiana a construção de nova
moldura da responsabilidade civil, incluindo nos danos indenizáveis nova
categoria, denominada “dano existencial”, que consiste em lesão ao conjunto de
relações que propiciam o desenvolvimento normal da personalidade humana,
alcançando o âmbito pessoal e social.
O dano existencial distingue-se do dano moral
porque não se limita a uma amargura, a uma aflição, caracterizando-se pela
renúncia a uma atividade concreta.
No âmbito do Direito do Trabalho pode estar
presente, exemplificativamente, nas hipóteses de assédio moral e doença
ocupacional, na medida em que tais eventos, além de ensejar sofrimento e
angústia (dano moral), também podem causar prejuízos ao projeto de vida, às
incumbências do cotidiano, à paz de espírito (dano existencial), registrando-se
acolhimento, pela magistratura trabalhista, de pedido de indenização calcado em
renúncia involuntária às atividades cotidianas do trabalhador em razão de
conduta ilícita do empregador (TRT/4ª Região. Processo
0000105-14.2011.5.04.0241).
Registra-se, entretanto, a necessidade de o tema
ser enfrentado com a necessária prudência pelo Poder Judiciário, que deve estar
atento e vigilante para coarctar eventuais atitudes passíveis de por em risco a
credibilidade deste importante instrumento de tutela, que se mostra apto, em
razão de sua natureza e desde que adequadamente interpretado, à preservação da
dignidade da pessoa humana do trabalhador.
REFERÊNCIAS
ALMEIDA NETO, Amaro Alves de. Dano
existencial – A tutela da dignidade da pessoa humana. Disponível em www.mp.sp.gov.br/portal/page,
acesso em 19.12.2012.
BAEZ, Narciso Leandro Xavier; LEAL, Rogério
Gesta; MEZZAROBA, Orides. (coord.) Dimensões Materiais e Eficaciais dos
Direitos Fundamentais. São Paulo: Conceito Editorial, 2010.
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SOARES, Flaviana Rampazzo. Responsabilidade
Civil por Dano Existencial. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora
Ltda, 2009.
NOTAS
1 FERRARI, Irany. História do Trabalho. In:
NASCIMENTO, Amauri Mascaro. FERRARY, Irani. SILVA FILHO, Ives Gandra Martins da
(org.). História do Trabalho, do Direito do Trabalho e da Justiça do
Trabalho. 3ª edição. São Paulo: LTR, 2011, p.13-14.
2 ROMITA, Arion Sayão. Direitos
Fundamentais nas Relações de Trabalho. São Paulo: LTR, 2005, p. 393.
3 ROMITA, Arion Sayão. Op. Cit., p. 36.
4 ALMEIDA NETO, Amaro Alves de. Dano
existencial – A tutela da dignidade da pessoa humana. Disponível em www.mp.sp.gov.br/portal/page,
acesso em 19.12.2012.
5 GOLDSCHMIDT, Rodrigo. Saúde mental do
trabalhador: direito fundamental social, reparação civil e ações afirmativas da
dignidade humana como forma de promoção. . In: BAEZ, Narciso Leandro
Xavier; LEAL, Rogério Gesta; MEZZAROBA, Orides. (coord.) Dimensões
Materiais e Eficaciais dos Direitos Fundamentais. São Paulo: Conceito
Editorial, 2010, p.209.
6 CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito
Constitucional e Teoria da Constituição. 3ª ed. Almedina: 1999, p. 383.
7 MÜNCH, Ingo von. Drittwirkung de
derechos fundamentales em alemania. Apud PEREIRA, Jane Reis Gonçalves. Apontamentos
sobre a Aplicação das Normas de Direito Fundamental nas Relações Jurídicas
entre Particulares. In: BARROSO, Luís Roberto (organizador). A nova
interpretação constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 121.
8 HESSE, Konrad. Significado de los
derechos fundamentales. Apud PEREIRA, Jane Reis Gonçalves. Apontamentos
sobre a Aplicação das Normas de Direito Fundamental nas Relações Jurídicas
entre Particulares. In: BARROSO, Luís Roberto (organizador). A nova
interpretação constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 138.
9 PEREIRA, Jane Reis Gonçalves. Apontamentos
sobre a Aplicação das Normas de Direito Fundamental nas Relações Jurídicas
entre Particulares. In: BARROSO, Luís Roberto (organizador). A nova
interpretação constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p.
148-149.
10 DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito
Civil Brasileiro. 19ª ed. 1º v. São Paulo: Saraiva, 2002, p.118.
11 GAGLIANO, Pablo Stolze. PAMPLONA FILHO,
Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil. Parte Geral. V. I. São
Paulo: Saraiva, 2002, p. 144.
12 SOARES, Flaviana Rampazzo. Responsabilidade
Civil por Dano Existencial. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora
Ltda, 2009, p. 37.
13 SOARES, Flaviana Rampazzo. Op. Cit. p. 40.
14 ALMEIDA NETO, Amaro Alves. Op. Cit.p. 18
15 ALMEIDA NETO, Amaro Alves. Op. Cit. p.25.
16 SOARES, Flaviana Rampazzo. Op. Cit. p.44.
17 SOARES, Flaviana Rampazzo. Op. Cit. p.99.
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