domingo, 8 de junho de 2014

RICARDO TADEU MARQUES FONSECA - PRIMEIRO DESEMBARGADOR CEGO DO BRASIL - René Ruschel.

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Sociedade

Brasiliana

As aparências enganam

Primeiro desembargador cego do Brasil, Ricardo Fonseca supera os preconceitos. Por René Ruschel
por René Ruschel — publicado 06/06/2014 04:35, última modificação 06/06/2014 15:34
João Thibes
Sobre a mesa de trabalho, papéis, livros e um retrato da família. Em uma das paredes, o quadro de São Francisco de Assis. Em outra, gravuras dos prédios da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, em São Paulo, e da Universidade Federal do Paraná, em Curitiba. Ao fundo, sobre um acanhado balcão, uma foto sua ao lado do então presidente Lula durante uma cerimônia no Tribunal Regional do Trabalho (TRT). “Quando o presidente Lula assinou minha nomeação, pediu que eu fosse a Brasília, pois queria me conhecer. Fui com a família para uma audiência de 15 minutos que durou uma hora e meia. Ele mesmo se convidou e disse que viria à minha posse em Curitiba. E veio.” Explica-se: Ricardo Tadeu Marques da Fonseca é o único desembargador deficiente visual do País. E Lula o nomeou para a função.
A vida desse paulistano de 55 anos, filho de uma família de classe média (o pai foi executivo de uma multinacional), graduado e mestre pela USP e doutor em Direito das Relações Sociais pela Federal do Paraná, é uma história de provações. Nasceu prematuro, aos seis meses de gestação. Sobreviveu, mas as sequelas deixaram marcas. Uma paralisia cerebral afetou as pernas e os braços. Deu os primeiros passos aos 3 anos, após delicada cirurgia. Os movimentos dos braços desenvolveram-se por causa de uma intensa e contínua fisioterapia. Uma diplegia o obriga a caminhar com dificuldade.

Desde a infância teve a visão reduzida. O aprendizado escolar exigia o reforço da mãe em casa. “Não enxergava os exercícios na lousa. Matérias que precisavam usar o quadro-negro, como matemática, eram muito difíceis de aprender. As demais eu prestava muita atenção para fazer as provas.” Os professores insistiam: Fonseca deveria ser transferido para o Instituto de Cegos Padre Chico, tradicional escola paulistana que atende crianças deficientes visuais ou com baixa visão. A família não aceitou e o filho retribuiu. O futuro juiz estudou em escolas regulares e se empenhou em levar uma vida normal. “Descobri muito cedo que precisava superar a falta da visão. Participava das brincadeiras na hora do recreio, discutia e brigava como qualquer garoto. Apanhei e bati, mas sempre reagi ao que a vida me impôs. Nunca acreditei nem aceitei quando me diziam não.”
Aos 23 anos, quando cursava o terceiro ano de Direito no Largo de São Francisco, em São Paulo, com o agravamento da retinopatia da prematuridade, doença originária da infância, perdeu totalmente a visão. “Foi uma fase muito difícil. Suplantei com o apoio da família, dos amigos e da minha então namorada, depois esposa. Passei a gravar as aulas para ouvir em casa e a estudar para as provas orais.” Espírita, superou o fatídico destino de forma pragmática. Da mesma forma que o assustou, a perda o motivou a lutar ainda mais, a vencer novas barreiras. Não restava outro caminho. “Nos primeiros anos, não parei para pensar nas consequências. Era muito jovem e se parasse talvez não fosse suportar. Aos 42 anos não suportei e fui obrigado a fazer análise durante nove anos.”
Em 1990, prestou concurso para a magistratura, foi aprovado, mas não assumiu. O tribunal de São Paulo entendeu que o fato de ser cego o impedia de exercer a função. “Doeu muito. Não esperava que o Judiciário fosse tão refratário.” O argumento legal brotou de um precedente do Supremo Tribunal Federal (STF) de 1981, segundo o qual um cego estava limitado pelo fato de não ter acesso à prova real ou não poder enxergar uma testemunha ou réu.
Fonseca não desistiu. Um ano depois, prestou concurso para o Ministério Público Federal e entre mais de 4,5 mil candidatos acabou em sexto lugar. Por 18 anos exerceu a carreira de procurador até ser nomeado em 2009 para a função de desembargador do TRT em Curitiba.
A rotina no tribunal não é diferente daquela dos demais. “Jamais admiti trabalhar menos que meus colegas.” Recebe 400 processos por mês. “Eu os conduzo num ritmo de leitura dinâmica. Não utilizo o programa de voz do computador.” Seu sentido mais apurado é a audição. “Aprendi que o mundo das imagens é ilusório. Quando você é deficiente visual, os sentidos vão direto à essência do ser humano. A aparência muitas vezes nos engana.” A prática de mais de 30 anos no Direito o levou a reconhecer pela voz se alguém está nervoso e se o nervosismo é mero temor reverencial ou mentira.
Sua maior tristeza é nunca ter visto o rosto das filhas. A mais velha, advogada, 29 anos, faz doutorado na USP. A mais nova, de 24, é estilista. Gostaria também de ter visto as cidades pelas quais passou. Ainda assim, se define como otimista e bem-humorado.
Uma vez por mês participa do “sarau do tribunal”, quando servidores e convidados se reúnem para cantar, ler poesias e conversar. “Se o direito é técnica, a justiça é arte. Para se fazer justiça é preciso ter convívio com a arte, com o talento de cada um”, resume.
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