quinta-feira, 24 de abril de 2014

CONTROVÉRSIA: IMPENHORABILIDADE DE BEM DE FAMÍLIA - PRINCÍPIO DA ISONOMIA


CONTROVÉRSIA: IMPENHORABILIDADE DE BEM DE FAMÍLIA - PRINCÍPIO DA ISONOMIA
Estudo de caso:

a impenhorabilidade do bem de família no RE 407.688-8/SP e as perspectivas da interpretação


Publicado em 04/2014. Elaborado em 09/2012.

Uma posição minoritária adotada pela magistratura atualmente é a de que a exceção à Lei da impenhorabilidade dos bens de família viola o princípio constitucional da isonomia. Esta é a posição que acreditamos ser mais convincente.

Palavras-chave: Impenhorabilidade. Fiador. Interpretação. Kelsen. MacCormick. Dworkin. STF. Jurisprudência. Princípios. Constituição. Imóvel. Contrato.



A Controvérsia
A controvérsia consiste em apurar a constitucionalidade do art. 3º, Inc. VII, da Lei nº 8009/90, com a redação da Lei nº 8245/91, que estabelece exceção à impenhorabilidade de um bem de família.
 O inciso em tela prescreve a possibilidade de que o bem de família do fiador do contrato de locação possa vir a ser penhorado para o pagamento de dívida do locatário.
A controvérsia se instaurou por observação da Emenda Constitucional nº 26 de 2000, que alterou a redação do artigo 6º da Constituição Federal, ampliando-o para abarcar também o direito à moradia entre os direitos sociais.

Houve algumas interpretações no sentido de que a Lei nº 8245/91 não seria compatível com a Constituição, em especial com a alteração provocada pela EC 26/2000. O recurso extraordinário 407.688-8/SP foi julgado improcedente pelo Superior Tribunal Federal, na medida em que este tribunal, por maioria, decidiu pela compatibilidade do art. 3º, inciso VII, com o direito de moradia previsto no art. 6º da Constituição Federal.

Os argumentos interpretativos
Cezar Peluso
O ministro Cezar Peluso inicia seu voto alegando que a lei em questão é constitucional abrindo exceção para a impenhorabilidade do bem de família. Em seguida, delimita a função e possibilidade de concretização dos direito sociais. Segundo a doutrina que o ministro utiliza, os direitos sociais ou direitos a prestações são “dependentes da atividade mediadora dos poderes públicos”.1 Logo, Peluso exclui a função de afirmação e garantia total dos direitos sociais e as atribui ao Poder Executivo. Para reforçar seu argumento, Peluso cita a doutrina de Starlet.
“(...) Importante é a constatação de que as diversas modalidades de prestações referidas não constituem um catálogo hermético e insuscetível de expansão, servindo, além disso, para ressaltar uma das diferenças essenciais entre os direitos de defesa e os direitos socais (a prestações), já que estes, em regra, reclama uma atuação positiva do legislador e do Executivo no sentido de implementar a prestação que constitui o objeto do direito fundamental”.
Fazendo uma interpretação teleológica do argumento, o judiciário não pretende assumir o papel de garantidor dos direitos sociais, pois prevê que não é no âmbito normativo, mas sim nas políticas públicas que se garantem esses direitos. Como já exposto, são direitos subjetivos, que a mera positivação não pode assegurar a eficácia. Dizer o contrário seria argumentar que o Direito teria o potencial de diminuir as desigualdades sociais mediante a simples atividade normativa. Segundo MacCormick, este argumento seria um argumento Interpretativo Sistêmico-Conceitual já que utiliza a doutrina dos direitos sociais como embasamento teórico para se fortalecer garantindo, desse jeito, a própria consistência dos direitos sociais no plano jurídico.
Após destacar que os direitos sociais (a prestações) são atribuições do legislativo e do Executivo, Peluso faz um contraponto afirmando que “o direito social de moradia – o qual, é bom observar, não se confunde, necessariamente, com direito à propriedade imobiliária ou direito de ser proprietário de imóvel – pode, sem prejuízo doutras alternativas conformadoras, reputar-se, em certo sentido, implementado por norma jurídica que estimule ou favoreça o incremento da oferta de imóvel para fins de locação habitacional, mediante previsão de reforço das garantis contratuais dos locadores”.2 Com esta afirmação, Peluso cria um argumento teleológico-finalístico já que, preocupado com a possibilidade de que o aceso à moradia seja prejudicado por conta desta decisão, opta pela improcedência do recurso como meio de garantir o maior acesso ao direito fundamental social à moradia.
Para coadunar com o argumento, Peluso utiliza o Direito Comparado como acessório à sua argumentação citando a Constituição portuguesa. Em seguida, para fechar seu argumento, ele se refere aos problemas e à onerosidade contratual enfrentada pelo locatário e, ao dar sentença contrária, acabaria por dificultar o acesso à moradia a várias pessoas por conta desta decisão.
“Castrar essa técnica legislativa, que não pré-exclui ações estatais concorrentes doutra ordem, romperia equilíbrio do mercado, despertando exigência sistemática de garantias mais custosas para as locações residenciais, com consequente desfalque do campo de abrangência do próprio direito constitucional à moradia”.3
Portanto, pelo já exposto, o ministro nega o provimento.
Eros Grau
Argumento interpretativo sistêmico a partir de precedentes, quando ele dá exemplos de REs 352.940 e 449.657, já julgados pela Corte, nos quais se afirma a não recepção da Lei nº 8.245/91 pelo artigo 6º da CF, com a nova redação conferida pela Emenda Consititucional 26/2000. Para MacCormick:
Os argumentos a partir de precedentes dizem que se uma disposição legal tiver sido anteriormente submetida à interpretação judicial, ela deverá ter que ser interpretada de acordo com a interpretação dada anteriormente pelas outras cortes.
Tal lei é também conhecida como Lei do Inquilinato e ressalva a penhora do imóvel residencial do fiador em contrato de locação, que é justamente se instala a controvérsia.
Posto isso, ele parte para uma abordagem a partir de princípios gerais, quando ele cita um dos princípios constitucionais mais relevantes da Constituição Federal, que é, na verdade, a base de muitos outros, a dignidade da pessoa humana. A proteção da dignidade humana implica garantir a subsistência do indivíduo e da família, o que abrangeria proteger também sua propriedade, ou seja, sua necessidade material básica.
Eros Grau traz também outro argumento principiológico para a questão, que seria o princípio da isonomia, dizendo que a afronta a ela está sendo ferida evidentemente. Para mostrar com mais clareza o problema, ele utiliza do reductio ad absurdum (redução ao absurdo), onde ele leva sua argumentação a uma hipótese extrema.
Ele reitera insistidamente que o argumento principal do Min. Cezar Peluso visa apenas a questão econômica e a lógica de mercado, mas o Tribunal deve se pautar pela Constituição, que deve ser zelada acima de tudo.
Nesses termos, o Min. Eros Grau dá provimento ao recurso extraordinário.
Joaquim Barbosa
O voto do ministro Joaquim Barbosa constrói um argumento sistêmico, na modalidade conceitual e na modalidade baseada em precedentes. Segundo MacCormick, os argumentos conceituais dizem respeito à utilização de um conceito jurídico geral reconhecido e elaborado doutrinariamente, que seja aplicado consistentemente por todo o sistema jurídico ou que seja, ao menos, considerado conceitualmente consistente dentro de um ramo particular do Direito.
O ministro Joaquim Barbosa interpreta o art. 3º, inciso VII, da Lei nº8009/90, com a redação da Lei nº8245/91, como uma expressão do direito à liberdade, que é um direito fundamental constitucionalmente assegurado.
O ministro parte, então, do pressuposto que não há direito fundamental absoluto. Este conceito, caro ao direito constitucional, permite a modulação de direitos, para que se compatibilizem direitos da mesma natureza que entrem em conflito. O ministro estabelecerá que tanto o direito à moradia quanto o direito à liberdade são igualmente direitos fundamentais, e que um não pode prevalecer sobre o outro. Há de se proceder a uma análise caso a caso, para que a ponderação implique a compatibilização dos direitos em aparente oposição. Na medida em que a controvérsia ficou reduzida a um conflito de normais de direitos fundamentais que recebem igual tutela da Constituição, a Corte não deveria proceder ao estabelecimento de parâmetros e limites da compatibilização de ambas as normas.
O ministro faz uma ressalva argumentativa ao cogitar da aplicabilidade da limitação das normas em uma relação jurídica típica de direito privado. O ministro questiona se a violação do direito fundamental pode-se dar numa relação entre particulares. Consoante ao uso doutrinário da eficácia horizontal dos direitos fundamentais, o ministro argumenta que os direitos fundamentais se aplicariam igualmente nas relações privadas. Neste ponto, o ministro utiliza-se de um argumento baseado em precedente (RE 201.819) não como base para a argumentação da questão em tela, mas para corroborar a solidez do argumento da eficácia horizontal dos direitos fundamentais.
Verifica-se que há uma justificativa externa na sustentação da validade dos conceitos utilizados pelo ministro Joaquim Barbosa neste voto. Feita a defesa do princípio da eficácia horizontal dos direitos fundamentais e da inexistência de direitos absolutos, o ministro procede à justificativa interna da controvérsia.
A partir da construção das premissas de justificativa externa supracitadas, o ministro entende que a norma é clara ao prever que o indivíduo que dá o único imóvel como garantia da fiança o faz de espontânea vontade e colocando em risco a incolumidade de um direito fundamental social que a Constituição lhe assegura. Como não há direitos fundamentais absolutos, pode-se cogitar do fato de que um direito fundamental ceda o passo em favor  da afirmação de outro.
Diante dessa argumentação, o ministro nega provimento ao recurso extraordinário.
Ayres Britto
A argumentação do ministro Carlos Britto evoca a harmonização contextual, da tipologia sistêmica, e a argumentação conceitual. MaCormick define a harmonização contextual como a interpretação de conjunto. O ministro, ao buscar as oportunidades em que aparece a palavra “moradia”, intenciona identificar o tom usado para qualificar esse signo linguístico.
Das qualificações que a Constituição emprega para ao conceito de moradia, o ministro almeja reconhecer a interpretação mais consentânea com a ordem jurídica pensada pelo legislador constitucional.
A partir das qualificações encontradas na Constituição, e em especial a partir da qualificação de moradia como uma necessidade essencial, vital e básica do trabalhador e de sua família, o ministro Carlos Britto entende que o direito é essencial para assegurar a dignidade humana. Sendo direito fundamental de tamanha ordem de importância, este seria um direito indisponível, o que impediria sua limitação por um ato de vontade.
Cingindo-se à questão dos autos, o ministro quer fazer crer que o direito à moradia não pode ser recusado pelo indivíduo, porque direito indisponível. Ao receber a intervenção do relator, o ministro Cezar Peluso, o ministro Carlos Britto indica que a há uma diferença substancial entre a autonomia privada e à disponibilidade do direito de moradia. Ao limitar a indisponibilidade para o caso do contrato de fiação, o ministro furta-se a defender, como questiona o ministro Cezar Peluso, por que a indisponibilidade não pode ser evocada em casos de alienação.
O ministro Carlos Britto, nesse caso, argumenta sobre a garantia de situação de terceiro; porém, ao haver primado pela construção conceitual da indisponibilidade de um bem essencial à vida do trabalhador e de sua família, o argumento de garantir direito próprio ou de terceiro não consegue corroborar sua tese, na medida em que em um ou outro caso, surgiriam respostas diferentes para o mesmo conceito defendido. Falta a esse argumento a consistência de que fala MacCormick para a justificação de argumentos. A incongruência no uso do conceito limita a força argumentativa do voto.
O ministro dá provimento ao recurso.
Gilmar Mendes
O voto do ministro Gilmar Mendes utiliza-se de um argumento sistêmico, na sua modalidade conceitual e na modalidade argumentação a partir de princípios gerais. Segundo MacCormick, os argumentos sistêmicos buscam sua coerência dentro do próprio sistema jurídico, “de modo a verificar como dar melhor sentido ao texto dentro do seu contexto”.4 MacCormick escreve que a intenção do autor é um elemento indeterminado da argumentação interpretativa, que está presente em todos os três tipos de argumentos expostos em sua obra.
Quando o ministro Gilmar Mendes procede a sua argumentação pela via da classificação do direito fundamental social à moradia, introduzido pela EC 26/200, como uma norma programática, ele busca a intenção do legislador como elemento de sua argumentação sistêmica. Defendendo o direito à moradia como uma cláusula programática, o ministro Gilmar Mendes entende que o legislador constitucional objetivou vincular a atenção do Estado, por intermédio do legislador ordinário e do Executivo, a determinado conteúdo de políticas públicas.
Admitindo-se as múltiplas possibilidades de execução dessa garantia de perfil institucional, a penhorabilidade não poderia ser alçada a uma categoria limitativa, por si só, do direito fundamental à moradia. Neste ponto, o ministro Gilmar Mendes recupera o argumento do ministro Joaquim Barbosa, para pôr em evidência a eventual linha de colisão de princípios constitucionais. Para fundamentar a prevalência da liberdade, como argumentado pelo ministro Joaquim Barbosa, o ministro Gilmar Mendes, busca o princípio da autonomia privada.
Segundo MacCormick, os argumentos de princípios gerais pregam a defesa da argumentação que esteja em maior consonância com o caso em questão. O princípio geral da autonomia privada é um princípio que “integra a própria ideia ou direito de personalidade”5 e é uma das bases do direito civil. Esse argumento pode ser lido à luz das argumentações precedentes, na medida em que serve como sustentáculo para a prevalência da liberdade frente ao direito à moradia, e serve como contra-argumento à tese do ministro Ayres Britto de que o direito à moradia seria indisponível. Não se poderia cogitar de um limite a um princípio basilar do direito privado, quando seu pleno gozo não contradissesse uma norma de direito constitucional, principalmente por suas características instrumentais.
Dessa maneira, o ministro Gilmar Mendes acompanha o voto do relator, desprovendo o recurso extraordinário.
Ellen Gracie
A ministra Ellen Grace limita-se a acompanhar o voto do relator. Não haveria necessidade de fazer um voto à parte, porque esse se destina a expor ou um voto dissidente, ou um trazer uma justificativa diferente da realizada pelo relator, mesmo que os votos fossem concordes.
Ao acompanhar o voto do relator, a ministra Ellen Gracie revela a aceitação da argumentação teleológica, na medida em que evidencia ser a finalidade da regra do art. 3º, inciso VII, da Lei nº8009/90, com a redação da Lei nº8245/91, o amplo acesso à moradia.
Para ressaltar a pertinência dos votos dos ministros divergentes, a ministra faz uma argumentação sucinta, em que destaca haver ponderado o direito à moradia e a necessidade de proteção à família, que, também por argumento teleológico, define ser a finalidade daimpenhorabilidade do bem de família. Por meio da ponderação, revela-se a utilização de um argumento sistêmico, na modalidade de harmonização contextual.
MacCormick define a harmonização contextual como um modo em que a disposição normativa é considerada “embutida em um esquema jurídico mais amplo”6. Mesmo que a ministra não utilize outros dispositivos proximamente relacionados, sua ponderação revela a busca pela harmonização no diploma normativo constitucional.  
Marco Aurélio
O Ministro Marco Aurélio utiliza dois argumentos. Um deles é o argumento interpretativo sistêmico de harmonização contextual. Para fundamentá-lo, ele regride à Constituição e questiona se houve preocupação em garantir a intangibilidade do bem de família. Ao afirmar que não houve essa preocupação, garante que ela só existe pela existência da lei 8.009/90 que garantiu esta exceção ao caso. Marco Aurélio utiliza este método não convencional e que difere do método pós-positivista de pensar que é tão presente no Supremo Tribunal Federal. Ao reduzir a regra constitucional a um simples enunciado, ele resolve o conflito e fundamenta seu primeiro argumento sem se preocupar com os possíveis princípios criados com tal regra.
        O ministro desenvolve uma argumentação, em que busca na própria lei (que estabelece a impenhorabilidade do bem de família) a justificação para a compatibilização do inciso, afinal é a mesma lei que estabelece a exceção à impenhorabilidade. Sem a lei, a penhorabilidade seria constitucional como um todo; não pode, portanto, parte dela ser objeto da inconstitucionalidade. Veja que aqui não se discute questões de boa fé, justiça, equidade ou razoabilidade. A matéria julgada é a incompatibilidade entre o direito fundamental social à moradia e o art 3º, inciso VII, da lei 8009/90.
O segundo argumento é o de interpretação sistêmica que em utiliza a analogia. O ministro faz analogia do direito do trabalho com o direito à moradia. Enquanto no direito do trabalho se assegura o salário, no direito à moradia se assegura a propriedade.
Celso de Melo
O ministro Celso de Mello inicia seu voto fazendo uma referência ao conceito de eficácia jurídica da norma7 ao tratar do direito à moradia. Celso de Mello inicia com um tratamento especial à retrospectiva da Constituição Federal e do tratamento e preocupação que o Estado brasileiro apresenta ao assumir compromissos de incentivo à moradia em tratados internacionais. Celso de Mello utiliza-se de um argumento interpretativo sistemático histórico8 e em seguida tenta introduzir um argumento interpretativo sistemático harmônico contextual9 ao citar a Professora Maria Celina B. Moraes. Segue a citação:
No Estado Democrático de Direito, delineado pela Constituição de 1988, que tem entre os seus fundamentos a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, o antagonismo público-privado perdeu definitivamente o sentidos. Os objetivos constitucionais de construção de uma sociedade livre, justa e solidária e de erradicação da pobreza colocaram a pessoa humana – isto é, os valores existenciais – no vértice do ordenamento jurídica brasileiro, que de modo tal é o valor que conforma todos os ramos do Direito.(...).10       
Posteriormente, o Ministro recorre ao seu argumento central que é o de preservação do princípio de isonomia. Os dois primeiros argumentos serviram para condicionar a leitura para melhor absorção do seu argumento principal. Segundo MacCormick, este argumento seria classificado como Argumento Interpretativo Sistêmico a partir dos princípios gerais11. Segundo a ótica do Ministro, a negação do provimento ao recurso acabaria por “ferir de morte “ o princípio da isonomia. Segue a citação que o Ministro Celso de Mello utiliza:
“(...) veja-se a contradição: a Lei 8.245, de 1991, excepcionando o bem de família do fiador, sujeitou o seu imóvel residencial, imóvel residencial próprio do casal, ou da entidade familiar, à penhora. Não há dúvida que a ressalva trazida pela Lei 8.245, de 1991, inciso VII do art. 3° feriu de morte o princípio isonômico, tratando desigualmente situações iguais, esquecendo-se do velho brocardo latino: ubi eadem ratio, ibi eadem legis dispositivo, ou em vernáculo: onde existe a mesma razão fundamental, prevalece a mesma regra de Direito. (..)”.12       
A luz dos seus argumentos, o Ministro concede o provimento ao recurso interposto.
Sepúlveda Pertence
O Min. Sepúlveda Pertence aborda a questão com uma análise teleológica, pois se preocupa numa forma de dar efetividade ao direito fundamental da moradia. O seu entendimento é de que a lei viabiliza esse direito, pois permite que um número muito maior de pessoas tenha acesso à moradia por contratos de locação, bem alinhado ao ministro Cezar Peluso. Caso não houvesse essa garantia da figura do fiador, a maior parte da população não teria como dar outro tipo de garantia ao locador e, por isso, os contratos de locação nessas situações não se realizaram.
Nelson Jobim
O Min. Nelson Jobim faz uso do argumento teleológico-avaliativo para fundamentar o seu voto. Ele dá ênfase, principalmente, no aspecto prático da decisão do Tribunal. Como disse MacCormick, para o argumento teleológico, a legislação pode ser vista como algo que incorpora certos valores socialmente relevantes. Ou seja, não pode ser algo totalmente fora da realidade, pois tem suas consequências práticas na sociedade. Nesse caso, o ministro considerou que a decisão do Tribunal acarretaria uma impossibilidade ou uma dificuldade muito maior para outras pessoas terem acesso à locação de imóveis. Desse modo, implicaria também uma diminuição do acesso à moradia, direito esse tão aclamado pelos ministros que deram provimento ao recurso extraordinário.
Em um segundo momento, o ministro também utiliza a argumentação histórica, citando relevante caso que ocorreu, por volta dos anos 60, devido à Lei nº 1300/50, a Lei do Inquilinato, que acabou por contrair o mercado imobiliário de forma drástica, e, depois, as sucessivas tentativas de corrigir os problemas resultantes daquele ato normativo, como o Decreto-Lei nº 4, que funcionou como uma forma de viabilizar a liberação, em áreas comerciais, para locação, e, finalmente, a Lei nº 4591/64, também chamada de Lei de Condomínios e Incorporações, que fomentou o crescimento da aplicação de capital no ramo imobiliário.
 

A controvérsia à luz da perspectiva positivista e pós-positivista da interpretação

Introdução

Como já mencionado anteriormente, a controvérsia aqui citada se trata, prioritariamente, da apuração da constitucionalidade do artigo 3º, inciso VII, da Lei nº 8.009/90, que foi incluído pela Lei 8.245/91. O artigo prevê a exceção à impenhorabilidade do bem de família caso a situação seja de obrigação de fiança concedida em contrato de locação. A discussão se dá em torno dos princípios constitucionais da isonomia e do direito à moradia, previstos, respectivamente, pelos artigos 5º e 6º da Constituição Federal. O questionamento feito é justamente se a exceção à Lei da impenhorabilidade do bem de família está em sintonia, ou não, com os citados princípios constitucionais.

Perspectiva positivista  

Para a análise efetiva da controvérsia apresentada, tomaremos como ponto de partida, no contexto positivista da teoria do Direito, a concepção kelseniana.
Kelsen constrói uma concepção escalonada do Direito, como um sistema em que uma norma possui a sua validade atribuída por uma norma superior e assim por diante. O fim desta sequência de atribuições desemboca na chamada ‘norma fundamental’, que seria a responsável por dar validade e coesão a todo o ordenamento. O jurista trata de um possível choque ou conflito entre as normas do ordenamento em duas circunstâncias diversas: entre normas de um mesmo patamar escalonado e entre normas de patamares diferentes.
 Em função do presente caso a ser analisado, daremos atenção à segunda possibilidade de choque entre normas. A exceção atribuída à Lei da impenhorabilidade do bem de família reflete um possível conflito entre os princípios constitucionais do direito à moradia e da igualdade entre indivíduos, ou seja, um conflito entre um dispositivo de escalão inferior com um de escalão superior, consequentemente, de uma norma que não está em harmonia com a norma que lhe atribui validade.
Primeiramente, Kelsen explica que a afirmação de que uma lei válida vai de encontro com a Constituição é algo controverso, uma vez que uma lei somente pode ser considerada válida se esta possuir sua validade na própria Constituição. Disso decorre a conclusão de que se uma lei é inválida, ou seja, não possui seu fundamento de validade na Constituição, esta não pode nem sequer ser considerada uma lei, já que não é juridicamente existente. E de uma lei inexistente não se pode afirmar coisa alguma.
Com isso, há um afastamento do conceito de ‘inconstitucionalidade’ tão presente na jurisprudência tradicional. Porém, se há um significado para este conceito é o de que uma determinada lei em questão, de acordo com a constituição, pode ser revogada não só por outra lei (princípio lex posterior derogat priori), mas também por um processo especial previsto pela própria Constituição. Porém, enquanto este determinado dispositivo normativo não for revogado, há a necessidade de ser considerado válido, consequentemente, constitucional.
O autor utiliza-se da moldura como metáfora para indicaro grau de determinação e de indeterminação que induzirão a margem de discricionariedade da autoridade. Para tanto, Kelsen utiliza-se do conceito de ato de vontade e de ato de conhecimento para indicar as implicações relacionadas à interpretação. Com o desenvolvimento das ideias de conhecimento científico e política do direito (ou política jurídica), Kelsen busca diferenciar os vieses com que podem ser analisadas as normas jurídicas no tocante à interpretação.
Nesse sentido, faz necessário o desenvolvimento de uma diferenciação entre interpretação autêntica e interpretação não autêntica. A interpretação autêntica é aquela que se porta como um ato de conhecimento e um ato e vontade, como criação normativa, e é feita por uma autoridade. Já a interpretação não autêntica é um ato de conhecimento na medida em que é apresentada pela ciência do Direito e um ato de política do Direito, quando se trata de uma escolha interpretativa. Ambas são feitas por outros que não a autoridade, como a doutrina ou o próprio destinatário da norma.
Por último, Kelsen dispõe sobre a questão da competência institucional para se fazer o controle de constitucionalidade e conclui que esta questão também deve ser enunciada pela própria constituição, porém diz que comumente esta competência é dada aos tribunais, já que são esses os aplicadores de lei. Uma vez que um último tribunal especial, hierarquicamente superior aos outros, decidir sobre a matéria da constitucionalidade, esta estará, por fim, transitada.
A questão em tela indica que a autoridade competente para examinar a constitucionalidade da norma, no Brasil, acaba tendo uma margem de aferição delimitada pela moldura. A moldura apresenta um determinado campo de interpretação possível, do qual o Supremo Tribunal Federal acolheu uma opção interpretativista.  
Ora, já que para o jurista se a norma não foi revogada, então ainda deve ser considerada válida e uma vez que considerada válida, deve ser aplicada. Então a exceção à Lei da impenhorabilidade, como não foi revogada, deve ser aplicada. Chegamos à conclusão de negar provimento ao recurso, levando em consideração, em termos positivistas, o texto normativo:
Art. 3º A impenhorabilidade é oponível em qualquer processo de execução civil, fiscal, previdenciária, trabalhista ou de outra natureza, salvo se movido:
VII - por obrigação decorrente de fiança concedida em contrato de locação.
Porém, em tese, já que o conflito se dá entre normas de escalões diferentes, a norma superior prevalece e o caso se resolve. Mas há uma sutileza complicadora. O problema a ser examinado aqui, para entender a controvérsia pela ótica positivista é: há, de fato, um choque entre normas de escalões diferenciados? Uma vez que estamos considerando um princípio subjetivo que permeia a unidade da Constituição como um todo, e não uma norma específica positivada, como podemos tratar de conflito normativo neste caso?
Somando-se a isso, ainda há a questão do julgamento do presente caso já está sendo feito no último tribunal especial que procura realizar o controle de constitucionalidade, o Superior Tribunal de Justiça.
Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe:
I - processar e julgar, originariamente:
a) a ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual e a ação declaratória de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal.
Logo, se comprovado o choque entre normas, e prevalecendo a norma que, em tese, é de escalão superior, a exceção à Lei da impenhorabilidade automaticamente seria, automaticamente, revogada em nome do dispositivo superior hierarquicamente.
São-nos apresentados dois problemas para definir a ótica positivista. O primeiro questiona se os princípios constitucionais, como igualdade e liberdade, são considerados normas, mesmo que sejam gerais, subjetivos e até mesmo, em muitas vezes, não sendo positivados? Mesmo que tenhamos o Art. 5º da Constituição Federal que enuncia ‘todos são iguais perante a lei’, não possuímos esse princípio isonômico, subjetivo positivado quanto ao caso que nos é apresentado. E para um positivista, como Kelsen, a regra deve ser levada, nas palavras de Adrian Sgarbi como ‘tudo ou nada’.
Se considerarmos, que mesmo assim, os princípios são normas, então estes prevalecem sobre o Art. 3º, inciso VII da Lei 8.009/90. Caso não, e esta nos parece ser a possibilidade mais plausível de acordo com o positivismo, logo, não estamos diante de um conflito normativo e a exceção à Lei é valida e aplicável. Isso ocorre pelo fato de um princípio jurídico não firmar uma consequência jurídica precisa para um caso, também, preciso. E considerando essa característica vital dos princípios normativos, a visão kelseniana, como uma visão prioritariamente positivista, não aceitaria o preceito de um princípio ser considerado norma.
O segundo problema trata de perceber que a decisão tomada pelo STF para o caso, automaticamente confirma a validade do artigo ou o revoga, o que fragiliza a hipótese de ‘Enquanto, porém, não for revogada, [a lei] tem de ser considerada válida’, já que este é o próprio mérito da questão presente. Ou seja, o STF não pode aplicar o artigo simplesmente porque não houve revogação ainda, como ocorre com os tribunais de primeira instância, já que o Supremo é o próprio responsável para decidir a questão. Neste caso, Kelsen somente diz que este é o órgão competente, como autoridade, para realizar o controle de constitucionalidade e este deve ter a palavra final para tal, porém como tomar uma devida decisão plausível, infelizmente, ainda nos é pouco definido.  Deixo, então, a resposta para a questão tratada acima.
  Em suma, para Kelsen, a resolução dos problemas normativos acaba recaindo nas mãos da autoridade competente.

Perspectiva pós-positivista

Já nessa perspectiva pós-positivista, tomaremos como ponto de partido, para uma maior elucidação da questão, o ponto de vista de Ronald Dworkin.
A perspectiva de Dworkin, como um grande representante do pós-positivismo, nos introduz a ideia da validade dos princípios como ferramentas para a resolução de problemas jurídicos. Não há, com isso, uma desvalorização da norma em si, apenas uma complementação para uma maior gama de possibilidades dentro do ordenamento jurídico.
Essa linha de pensamento vê no positivismo clássico uma simplificação do que seria o Direito e suas possibilidades de atuação. Dworkin irá afirmar que essa simplificação se dá justamente pelo fato do positivismo descreve o Direito como um conjunto de regras válidas ou inválidas de acordo com um critério de pertencimento ao ordenamento. Outro problema do positivismo seria o afastamento da moral, como algo diferente do Direito em si, promovendo a pouca preocupação com o conteúdo de uma norma e muito mais com a validade desta dentro do ordenamento.
O Direito para Dworkin seria então, ‘um conjunto de regras jurídicas e de princípios morais; princípios estes que não são remissíveis a um critério de validade como o da regra de reconhecimento de [Herbert] Har ’. Os citados princípios seria uma fonte alternativa do Direito para a resolução dos chamados, casos difíceis, que não se adéquam perfeitamente a uma regra positivada.
Tendo em vista esses critérios dworkinianos, podemos observar de antemão que, para o pós-positivismo, os princípios constitucionais que permeiam o nosso ordenamento brasileiro são aceitos sem muita oposição. Logo, teríamos de levar em consideração um possível problema de inconstitucionalidade quando tratamos da controvérsia dada, mesmo que seja um choque entre uma norma positivada e um princípio subjetivo.
O que leva a decisão, segundo Dworkin, é a escolha. O que ocorre é que existe a possibilidade de existir mais de uma, ou até inúmeras, respostas plausíveis. Dirá Dworkin:
É tão tolo quanto arrogante pretender que exista, de algum modo latente na controvérsia, uma única resposta certa. É mais sensato e realista admitir que, embora algumas respostas possam estar evidentemente erradas, e alguns argumentos possam ser nitidamente ruins, existe ainda assim um conjunto de respostas e de argumentos que devemos reconhecer, desde qualquer ponto de vista objetivo ou neutro, como igualmente bons.
Se for assim, a escolha de um deles é apenas uma escolha e não uma decisão imposta pela razão.
O jurista irá desenvolver a ideia de que existe uma resposta para cada problema jurídico, mas apenas se fossemos, como em sua metáfora, o ‘Juiz Hércules’, possuidores de todo o conhecimento, todo o tempo para decidir, poderíamos chegar à resposta totalmente adequada para a questão (theory that best fits and justifies the law as a whole - law as integrity). Como, na realidade, não contamos com essas ferramentas, poderão existir diversas respostas para a questão, o que irá depender da interpretação.
Para Dworkin, o direito é prática social dotada de finalidade, que não pode estar desvinculada com a evolução cultural da própria sociedade. Por essa razão, Dworkin estabelece seu entendimento da prática da interpretação, como sendo uma interpretação construtiva. Para reportar a essa ideia, ele utiliza a metáfora do romance em cadeia, pela qual a interpretação não seria propriamente invenção e não seria subjetiva – não seria subjetiva no sentido de que as decisões não surgem de uma tábula rasa, mas de pressupostos de um sistema; logo, as interpretações são construídas em perspectiva moduladas.
Para Dworkin não é possível nem desejável que se separem o Direito e a filosofia política. Para os positivistas, o Direito e a Política são esferas independentes, mesmo que articuladas. Para Dworkin, a orientação da filosofia política não pode ser separada do Direito, porque a os princípios e as regras do Direito são opções políticas, expressam melhor a finalidade da prática social. Não se elinima o problema da divergência, mas passa a ser possível chegar a uma resposta adequada (única resposta correta), que será a melhor resposta possível.
Em suma, a resposta escolhida para a solução da controvérsia deve ser aquela que está mais bem interpretada e fundamentada. Adrian Sgarbi afirma:
Uma justificativa pode ser melhor que a outra com base em duas dimensões diferentes: ela pode se mostrar mais adequada, no sentido de que exige menos material considerado como ‘erros’, ou pode se mostrar uma justificativa moral política sólida.

A nossa posição

Uma posição minoritária adotada pela magistratura atualmente é a de que a exceção à Lei da impenhorabilidade dos bens de família viola o princípio constitucional da isonomia. Esta é a posição que acreditamos ser mais convincente, seguindo a linha de pensamento dos Ministros Eros Grau, Carlos Brito e Celso de Melo.
Primeiramente, discordamos sobre a possibilidade de impenhorabilidade do bem de família já no caso do locatário, uma vez que este exerceu seu direito à liberdade e por livre e espontânea vontade assumiu um compromisso, testemunhando que possuiria condições de honrar com seus compromissos. Como foi posto pelos Ministros que se mostraram contra o provimento, se o fiador gozar do direito à impenhorabilidade, este fato pode causar descrédito aos contratos de locação. Porém, a nosso ver, a questão se inicia na própria promulgação da Lei 8.009/90, que já abre precedentes para que se desconfie do próprio locatário. Se o fiador pode ser desonesto ao afirmar que pode honrar com um compromisso sendo que não pode, o mesmo ocorre com o locatário.
Porém, uma vez que a lei se encontra em vigor, não faz mais sentido em levantar a questão da desconfiança, uma vez que esta deveria ter sido tratada logo num processo de legislação, já que a desconfiança também pode ser proveniente da conduta do próprio locatário. A análise que fazemos aqui não é mais se a Lei de fato faz justiça ou não, mas o porquê de se dar, ao locatário e ao fiador, tratamentos diferenciados. O Problema da isonomia reside no fato da fiança ser contrato acessório, que não pode trazer mais obrigações do que o contrato principal que é o de locação. Uma vez que se protege o direito à moradia do detentor de obrigação contratual principal, não faz sentido não oferecer a mesma garantia ao indivíduo que possui um papel secundário.
Outro fator que contribui para essa visão é fato das obrigações de ambos, locatário e fiador, possuirem a mesma natureza jurídica: o contrato de locação. A função social dos contratos encontra fundamento na função social da propriedade, que deve ser concebida em sentido amplo. A isonomia é tida aqui como um caminho para a manutenção do direito à moradia. Se existe a isonomia entre locatário e fiador, ambos tem seu direito resguardado pela Lei.
Além disso, o argumento utilizado pelo Ministro Cezar Peluso, o qual evidencia o possível problema de se afetar o mercado e privar o direito à moradia em maior escala, nos parece bastante hipotético, uma vez que não temos fonte alguma que possa embasar esse tipo de argumento. Pode ser que afete o mercado, pode ser que não. Dificilmente podemos tomar uma posição baseada em um argumento duvidoso frente a um argumento sólido como o da violação da isonomia.

Bibliografia


Fontes primárias


RE 407.688-8/SP

Constituição Federal

Lei 8.009 de 1990

Fontes Doutrinárias


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SGARBI, Adrian. Clássicos da teoria do Direito. 2ª edição - Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2009.

KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 8ª edição – São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009.

DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos à Sério. 1ª edição – São Paulo: Editora Martins Fontes, 2002.

SAENGER, Glaucia Fernandes Paiva. Ensaio sobre o pós-positivismo jurídico: terceira via ou continuidade das escolas jusnaturalista e juspositivista? Jus Navigandi, Teresina, ano 17, n. 3209, 14 abr. 2012. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/21507>.

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