sexta-feira, 5 de agosto de 2016

ABIGEATO (FURTO DE GADO) - NOVA LEI TRATAMENTO MAIS RIGOROSO

Prezados amigos.

Os atuais estudantes de direito penal, não ouvem mais os professores falaram sobre este fato típico penal - ABIGEATO.

No meu tempo de estudante - Magalhães Noronha - tratava com essa nomenclatura o crime de furto de gato, tão comum no Brasil rural.
O Código Penal de 1940 atribuía pena branda.

Sucede que com a valorização da carne e do preço de gado em pé, essa modalidade de crime voltou a ser amplamente praticada no Brasil Rural, nestes tempos de agronegócio.

Essa nova Lei vem tentar inibir a ação de bandidos no campo inclusive de receptadores de gado roubado.

Vale a pena ver o comentário que segue.


José A. Pancotti.

Opinião

Nova lei torna crime de furto de gado qualificadora residual

Chamou a atenção a publicação da Lei 13.330/16, que trata de forma mais rigorosa os crimes de furto de gado, conhecido como abigeato, e a receptação de animal, delitos bastante comuns nos municípios do interior e nas zonas rurais. Não se contentando com a proteção dada ao patrimônio pelo Direito Privado, o legislador decidiu reforçar a tutela desse interesse especificamente quanto aos animais domesticáveis de produção.
O Legislativo assim justificou a lex gravior:
O comércio clandestino de carne ou de outros produtos de procedência ilícita é um grave problema de saúde pública no país, exigindo a adoção urgente de medidas penais.[1]
O comércio de alimentos oriundos de animais furtados é, pois, uma atividade econômica clandestina que tem impactos negativos tanto do ponto de vista da sonegação de impostos, como em relação à saúde da população.[2]
Esse tratamento mais rígido se deu da seguinte forma: (a) acréscimo de nova qualificadora para o crime de furto (artigo 155, §6º do CP) e (b) criação de novo crime, de receptação de animal (artigo 180-A do CP).
Além da questionável proporcionalidade na fixação do patamar de pena, o legislador mais uma vez não primou pela melhor técnica. Em vez de acrescer duas qualificadoras, uma para o furto e outra para a receptação, já que a circunstância considerada é a mesma (conduta em face de semovente domesticável de produção), criou qualificadora para o furto, mas no caso da receptação preferiu instituir novo delito. As sanções da qualificadora e do novo crime são idênticas: 2 a 5 anos.
No que diz respeito à objetividade jurídica, o bem jurídico protegido é o patrimônio e a posse legítima. Quanto à receptação de animal, além do patrimônio do produtor, a conduta indiretamente pode atingir as relações de consumo e a própria saúde pública, além do interesse do Estado em evitar a sonegação de tributos e a competição econômica desleal entre comerciantes.
No que tange ao objeto material, a lei se refere ao gado ou animal como “semovente domesticável de produção”. Semovente nada mais é do que o bem móvel suscetível de movimento próprio.[3] A legislação não se restringe ao gado bovino, abarcando, além dos bovídeos, os equídeos, suínos, ovinos, caprinos, aves e pequenos animais (embora não se trate de legislação penal em branco, pode-se tomar como parâmetro o artigo 106 do Decreto 30.691/52). Os peixes também estão englobados: essa conclusão se extrai da análise do próprio Projeto de Lei 6.999/13 (origem da Lei 13.330/16), que foi bem claro em sua ementa no sentido de que dispõe sobre o abigeato e comércio de carne e outros alimentos. Ou seja, o propósito é a proteção de quaisquer animais criados para alimentação humana.
O animal deve ser domesticável, razão pela qual não é abrangido o animal silvestre que não possa ser domesticado. A conduta em face deste objeto material pode caracterizar delitos de furto e receptação (artigos 155 e 180 do CP) e/ou crime ambiental (artigos 29 a 32 da Lei 9.605/98).
A mesma solução se aplica ao animal domesticável de estimação, mesmo quando criado para negociação (ex: canil para venda de cães). Isso porque não é de produção, ou seja, não é criado para comercialização, abate e alimentação humana.
O animal não precisa ser subtraído ou mantido vivo: a lei expressamente insere como objeto material o animal abatido ou dividido em partes. Claro que a divisão não abrange o animal já transformado em produto industrializado mediante cortes comerciais, caso contrário o furto ou a receptação de carne proveniente de supermercado acarretaria o abigeato ou receptação de animal.
É possível a coautoria direta face a apenas um animal, abatido e dividido em partes. Não se enquadra como objeto material do abigeato ou da receptação de animal o seu fruto (ex: leite da vaca), utilidade que nasce e renasce da coisa, sem acarretar-lhe a destruição no todo ou em parte,[4] incidindo nesse caso a figura simples do furto ou receptação. Excepciona-se, contudo, essa regra se o fruto for uma cria, pois nesse caso se trata de semovente domesticável autônomo.
No caso de animal fugitivo, considerado coisa perdida (res desperdicta), existe delito especial, incidindo o princípio da especialidade para solucionar o conflito aparente de leis penais. Aquele que acha o animal e dele se apropria, deixando de restituir ao dono ou legítimo possuidor ou de entrega-lo à autoridade competente no prazo de 15 dias, comete o crime de apropriação de coisa achada (artigo 169, II do CP).
Pois bem. Quanto ao abigeato (crime de furto qualificado), se a subtração for de semovente domesticável de produção, ainda que abatido ou dividido em partes no local da subtração, a pena salta de 1 a 4 (figura simples) para 2 a 5 anos. Não cabe fiança em sede policial (artigo 322 do CPP), ou tampouco suspensão condicional do processo (artigo 89 da Lei 9.099/95).
A questão mais tormentosa diz respeito à coexistência de qualificadora do § 4º (ex: concurso de pessoas — pena de 3 a 8 anos) com a nova qualificadora autônoma do § 6º (abigeato — pena de 2 a 5 anos) do artigo 155 do CP. A maior celeuma não é a possibilidade de cumulação de qualificadoras, questão respondida afirmativamente pela jurisprudência: uma delas deve ser utilizada para qualificar o crime e a outra ser considerada circunstância agravante genérica, se encontrar correspondência (artigos 61 e 62 do CP), ou fazer o papel de circunstância judicial (artigo 59 do CP).[5] O grande problema para o qual o legislador não deu a resposta é: qual funcionará como qualificadora e qual servirá como agravante ou circunstância judicial?
A resposta é que deve o § 4º servir como qualificadora e o § 6º atuar como circunstância judicial. Em outras palavras: o abigeato é uma qualificadora residual, só prevalecendo quando da ocorrência de um furto simples ou majorado pelo repouso noturno. Senão vejamos.
O Projeto de Lei 6.999/13 (que resultou na Lei 13.330/16) deixou claro em seu artigo inaugural a intenção de agravar o abigeato. Caso preponderasse o § 6º como qualificadora e servisse o § 4º como agravante ou circunstância judicial, essa solução proporcionaria uma punição menor do que a que já incidiria, antes da Lei 13.330/16, com a mera aplicação do § 4º do artigo 155 do CP. Ou seja, a nova lei teria trazido à baila um benefício para aquele que praticasse o furto de semoventes, o que não foi a intenção do legislador (mens legislatoris) e da própria lei (mens legis).
À mesma conclusão se chega pelo cotejo com outro concurso de qualificadoras no Código Penal, relativo ao crime de lesão corporal. Havendo lesão corporal grave (§ 1º), gravíssima (§ 2º) ou seguida de morte (§ 3º) praticada com violência doméstica e familiar (§ 9º, todos do artigo 129 do CP), o próprio legislador forneceu a resposta. O § 10 pontua que a especificidade do objeto material (situação particular da vítima, no caso) é subsidiária, resultando na incidência da sanção cominada à qualificadoras do §§ 1º, 2º ou 3º, mas com pena aumentada em um terço. Essa mesma lógica deve prevalecer na análise do crime de abigeato qualificado pelas circunstâncias do § 4º, ou seja, preponderar as referidas qualificadoras fático-modais frente à particularidade do objeto material (animal).
Muito bem. Admite-se a cumulação da majorante do repouso noturno (artigo 155, § 1º do CP), ou seja, a existência de furto majorado qualificado. São circunstâncias diversas, que incidem em momentos diferentes da aplicação da pena. A posição topográfica do § 1º não é fator que impede a sua aplicação para as situações de furto qualificado, devendo ser levada a efeito uma interpretação sistemática.[6] Pela mesma razão o benefício do § 2º (furto mínimo) pode ser aplicado em conjunto com a qualificadora.[7]
É crível a aplicação do princípio da insignificância (inclusive pelo delegado de polícia)[8] para afastar a atipicidade material da subtração de animal ou suas partes, se presentes os requisitos jurisprudencialmente fixados, que não se resumem ao valor da res furtiva.[9] Vale recordar a posição dos Tribunais Superiores no sentido de que, enquanto o patamar do furto mínimo (artigo 155, § 2º do CP) é de um salário mínimo, o parâmetro do furto insignificante gira em torno de um terço desse valor.[10]
Tampouco existe óbice para o reconhecimento do furto de uso, pois a subtração da coisa alheia móvel infungível, com intenção de mero uso momentâneo (sem o fim de assenhoreamento definitivo — ex: subtrair cavalo para breve transporte), restituindo-a em seguida, afasta o fato típico pela ausência do elemento subjetivo.
A consumação se dá com a posse de fato da coisa, ainda que por breve espaço de tempo e seguida de perseguição ao agente, sendo prescindível a posse mansa e pacífica ou desvigiada.[11]
Noutro giro, vejamos o crime de receptação de animal (crime especial de receptação). Se o agente adquirir, receber, transportar, conduzir, ocultar, tiver em depósito ou vender, com a finalidade de produção ou de comercialização, semovente domesticável de produção, ainda que abatido ou dividido em partes, que deve saber ser produto de crime, a pena salta de 1 a 4 anos (receptação simples) para 2 a 5 anos.
Perceptível, no que concerte ao elemento subjetivo, a existência de finalidade especial: produção ou comercialização; esse elemento subjetivo especial coloca tal tipo penal dentre os poucos exemplos de crime mutilado de dois atos, pois presente a intenção de obter um benefício posterior.[12] Caso a aquisição, recebimento, transporte, condução, ocultação ou manutenção em depósito ocorra para consumo próprio ou de terceiros, aplica-se a figura simples do crime de receptação (artigo 180 do CP).
A receptação é um crime parasitário, pois não tem existência autônoma, reclamando a prática de um delito anterior.[13] A norma explicativa do § 4º do artigo 180 do CP (“a receptação é punível, ainda que desconhecido ou isento de pena o autor do crime de que proveio a coisa”) é perfeitamente aplicável ao artigo 180-A da Lei Penal, face à autonomia de qualquer modalidade de receptação em relação ao crime precedente.
Diferentemente da receptação qualificada do artigo 180, §1º do CP, na receptação de animal o agente não precisa estar no exercício de atividade comercial ou industrial (ainda que comércio irregular ou clandestino, inclusive em residência — artigo 180, § 2º do CP), mas apenas ter a intenção de comercializar ou produzir. Obviamente é preciso demonstrar com elementos concretos a presença dessa finalidade especial.
Ainda quanto ao elemento subjetivo, infelizmente o legislador utilizou a expressão “deve saber”, como já havia feito no § 1º do artigo 180 do CP. Haverá igual divergência quanto ao significado da expressão: (a) dolo eventual, abrangendo também o dolo direto,[14] posição ora adotada; (b) apenas dolo eventual; (c) elemento normativo do tipo, de graduação da censura da conduta.[15]
Lamentavelmente o legislador se olvidou de estender o benefício do § 5º do artigo 180 do CP (criminoso primário e coisa receptada de pequeno valor) ao novo crime de receptação de animal. Como seria desproporcional aplicar a benesse a um crime mais grave (artigo 180, § 1º do CP) e vedá-la ao delito de igual natureza e menos grave (artigo 180-A do CP), é perfeitamente possível a analogia in bonam partem, método de colmatação do ordenamento jurídico penal. Em consequência, aplicando-se a teoria da pior das hipóteses (sanção máxima), a incidência do menor percentual de diminuição (1/3) para a pena máxima da receptação de animal (5 anos) resulta em pena de 3 anos e 2 meses, dentro do patamar de concessão de fiança pela autoridade policial.
Caso o agente adquira ou receba animal que, por sua natureza ou pela desproporção entre o valor e o preço, ou pela condição de quem a oferece, deva presumir-se obtida por meio criminoso, responde pela figura culposa do artigo 180, §3º do CP, desde que haja elementos acerca da origem ilícita da res.
Nada impede o concurso de crimes entre crime ambiental de maus-tratos (artigo 32 da Lei 9.605/98) e abigeato ou receptação de animal, tendo em vista que há proteção a bens jurídicos distintos, ou tampouco a aplicação do princípio da consunção caso o animal seja atingido única e exclusivamente como meio para a concretização do furto ou receptação.
Por fim, interessante que no projeto de lei a conduta daquele que transporta e comercializa gado de procedência ignorada era tipificada também como crime contra as relações de consumo do artigo 7º da Lei 8.137/90. Após discussões, entendeu-se, acertadamente, por manter a conduta somente como delito de receptação no artigo 180-A do CP, evitando dupla tipificação.

[1] Parecer da Comissão de Constituição e Justiça do Senado ao Projeto de Lei 6.999/13, que deu origem à Lei 13.330/16.
[2] Justificativa ao Projeto de Lei 6.999/13, que deu origem à Lei 13.330/16.
[3] GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro. v. 1. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 209.
[4] GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro. v. 1. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 217.
[5] STF, HC 99.809, Rel. Min. Dias Toffoli, DJ 23/08/2011.
[6] STF, HC 130.952, Rel. Min. Dias Toffoli, DJ 03/05/2016; STJ, HC 306.450, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, DJ 04/12/2014.
[7] STJ, EREsp 842425, Rel. Min. Og Fernandes, DJe 02/09/2011.
[8] CASTRO, Henrique Hoffmann Monteiro de. Delegado pode e deve aplicar o princípio da insignificância. Revista Consultor Jurídico, set. 2015. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2015-ago-18/academia-policia-delegado-aplicar-principio-insignificancia>. Acesso em: 18 ago. 2015.
[9] STF, HC 92.463, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 16/10/2007; STJ, HC 89.357, Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, DJ 11/03/2008.
[10] STF, HC 123.108, Rel. Min. Roberto Barroso, DJ 03/08/2015.
[11] STJ, REsp 1.524.450 (recursos repetitivos), Rel. Nefi Cordeiro, DJ 14/10/2015.
[12] SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito penal – parte geral. Curitiba: ICPC; Lumen Juris, 2007. p. 163.
[13] MASSON, Cleber. Direito penal esquematizado. v. 2. São Paulo: Método, 2014, p. 661.
[14] STF, HC 97.344, Rel. Min. Ellen Gracie, DJ 12/05/2009.
[15] BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal. v. 3. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 319.
 é delegado de Polícia Civil do Paraná, mestrando em Direito pela Uenp e especialista em Direito Penal e Processual Penal pela UGF. Professor da Escola da Magistratura do Paraná, da Escola do Ministério Público do Paraná, da Escola Superior de Polícia Civil do Paraná e da Escola Nacional de Polícia Judiciária. Também é professor e coordenador do Curso CEI e da Pós-Graduação em Ciências Criminais da Faipe. Redes sociais: Facebook, Twitter, Periscope e Instagram
Adriano Sousa Costa é delegado de polícia de Goiás, mestrando em Ciências Políticas pela UFG, professor titular da Escola Superior da Polícia Civil do Estado de Goiás, professor convidado do Ministério da Justiça (SENASP) e da rede LFG, professor da Especialização na PUC/GO, da FASAM e da FACNOPAR, professor universitário na UNIP/GO e UniAnhanguera/GO, e membro da Academia Goiana de Direito.


Revista Consultor Jurídico, 4 de agosto de 2016, 16h02

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