quarta-feira, 29 de abril de 2015

SUPREMACIA DA GARANTIA DO CONTRADITÓRIO NO NCPC - TUCCI

PARADOXO DA CORTE

Supremacia da garantia do contraditório no Novo Código de Processo Civil


O novo Código de Processo Civil, finalmente sancionado em 16 de março de 2015 — Lei 13.105 —, não descurou a moderna linha principiológica que advém do texto constitucional. Pelo contrário, destacam-se em sua redação inúmeras regras que, a todo o momento, procuram assegurar o devido processo legal aos litigantes. Até porque, os fundamentos de um diploma processual devem se nortear, em primeiro lugar, nas diretrizes traçadas pela Constituição Federal.
Embora passível de críticas pontuais, o novoCodex encerra um modelo processual acentuadamente garantístico, governado pelos dogmas do due process of  law.
No que se refere ao princípio do contraditório, é de assinalar-se que  o objetivo precípuo da Comissão de Juristas que elaborou o respectivo Anteprojeto do CPC veio revelado na própria exposição de motivos, ao ser enfatizado, com todas as letras, que: “A necessidade de que fique evidente a harmonia da lei ordinária em relação à Constituição Federal da República fez com que se incluíssem no Código, expressamente, princípios constitucionais, na sua versão processual. Por outro lado, muitas regras foram concebidas, dando concreção a princípios constitucionais, como, por exemplo, as que preveem um procedimento, com contraditório e produção de provas, prévio à decisão que desconsidera da pessoa jurídica, em sua versão tradicional, ou às ‘avessas’. Está expressamente formulada a regra no sentido de que o fato de o juiz estar diante de matéria de ordem pública não dispensa a obediência ao princípio do contraditório [...]” (destaque meu).
Verifica-se, pois, que, em perfeita simetria com o princípio da publicidade e com o denominado princípio da cooperação entre os protagonistas do processo, a garantia do contraditório é expressamente contemplada no artigo 9º (“Não se proferirá decisão contra uma das partes sem que ela seja previamente ouvida”), e, ainda, de algum modo, referenciada nos seguintes artigos do CPC/2015: 10, 18, par. ún., 98, § 1º, VIII, 115, 135, 329, II, 371, capute § 2º,  372, 437, § 1º, 493, 503, § 1º, II,  511, 592, 853, 962, § 2º, 983, 1.023, § 2º, 1.036, § 2º. E isso bem demonstra a preocupação do legislador em resguardar, de forma pormenorizada, o contraditório, que é considerado cânone fundamental do processo. 
Não podendo ser diferente, os nossos tribunais também exaltam a garantia do contraditório: v., p. ex.: “[...] A intimação da parte agravada para resposta é procedimento natural de preservação do princípio do contraditório, nos termos do art. 527, V, do CPC. A dispensa do referido ato processual ocorre tão somente quando o relator nega seguimento ao agravo (art. 527, I), uma vez que essa decisão beneficia a agravada, razão pela qual se conclui que a intimação para apresentar contrarrazões é condição de validade da decisão que causa prejuízo aos recorrentes [...]” (STJ, 2ª Turma, AgRg. no REsp. 1.506.408-RS, Rel. Min. Herman Benjamin, v. u., j. 19/03/2015, DJe 06/04/2015); “[...] A jurisprudência do STJ consolidou-se no sentido de que, havendo elementos para a identificação dos interessados e sendo certo o domicílio, a intimação para participação no procedimento demarcatório de terreno de marinha deverá ser realizada de forma pessoal. A desobediência ao correto procedimento administrativo de demarcação ocasiona a sua nulidade por ofensa aos princípios do contraditório e da ampla defesa [...]” (STJ, 2ª Turma, AgRg. no Agravo em REsp. 598.403-RS, Rel. Min. Herman Benjamin, v. u., j. 16/12/2014, DJe 03/02/2015) ; “[...] Conquanto inexista previsão legal expressa quanto à necessidade da intimação do embargado para impugnar embargos declaratórios, a jurisprudência dos Tribunais Superiores pacificou-se no sentido de sua exigência, nos casos de resultado modificativo, sob pena de violação do princípio do contraditório e da ampla defesa. Precedentes: REsp. 686752-PA, Rel. Min. Eliana Calmon, DJ 27/06/2005; EEDAGA. 314.971-ES, Rel. Min. Luiz Fux, 1ª Turma, v. u., DJ  31/05/2004; REsp. 316.202-RJ, Rel. Min. Humberto Gomes de Barros, 1ª Turma, v. u., DJ 15/12/2003. É cediço na doutrina que: O princípio do contraditório é reflexo da legalidade democrática do processo e cumpre os postulados de todo e qualquer procedimento que o abandone. A técnica de reconstituição dos fatos através da fala de ambas as partes decorre da necessidade de o juiz prover, o quanto possível, aproximado da realidade. Trata-se de instituto inspirado no dever de colaboração entre as partes para com o juízo e na isonomia processual [...]” (STJ, 1ª Turma, REsp. 1.080.808-MG, Rel. Min. Luiz Fux, v. u., j. 12/05/2009, DJe 03/06/2009).
Apenas porá exemplificar, dentre as novidades de destaque do novo CPC, merece elogio a exigência de contraditório no âmbito do denominadoincidente de desconsideração da personalidade jurídica (artigo 133).  Dispõe, com efeito, o artigo 135, que: “Instaurado o incidente, o sócio ou a pessoa jurídica será citado para manifestar-se e requerer as provas cabíveis no prazo de 15 (quinze) dias”. Este era mesmo um tema que reclamava tratamento legislativo. A existência de duas categorias bem nítidas de “terceiros” impõe diferente solução na aferição da respectiva responsabilidade patrimonial. A situação na qual o sócio continua na administração da pessoa jurídica executada não é análoga àquela em que o sócio há muito tempo retirou-se do quadro social. A surpresa da desconsideração da personalidade jurídica para este último, supostamente responsável, recomenda a amplitude da defesa, centrada na sua participação efetiva no mencionado incidente processual.
A despeito da clareza do enunciado do caput artigo 9º, supra transcrito, cabe aqui uma rápida observação. Excepciona-se, nos incisos I a III, deste artigo 9º, o prévio contraditório naquelas situações de urgência ou que possam ocasionar a frustração do direito do requerente. O disposto no inciso I é bem abrangente, incluindo inúmeras situações nominadas no próprio diploma processual, como o arresto (artigo 301) e a busca e apreensão (artigo 536, parágrafo 1º).
Seja como for, em todas estas hipóteses, o contraditório se descortina “postcipato”, como, e. g., a técnica do procedimento monitório (CPC/2015, artigo 701), em que o pronunciamento jurisdicional perseguido é proferidoinaudita altera parte, diferindo-se para um momento ulterior a possibilidade de manifestação do outro litigante.
Frise-se que tal particularidade, admitida também em caráter excepcional em outras legislações modernas, não fere o devido processo legal.

terça-feira, 28 de abril de 2015

STF: LEGALIDADE DECOBRANÇA DE I.R. SOBRE JUROS DE MORA - REPERCUSSÃO GERAL

NATUREZA DA VERBA

STF vai decidir legalidade de cobrança de IR sobre juros de mora


O Supremo Tribunal Federal decidirá se é constitucional a cobrança do Imposto de Renda sobre juros de mora incidentes sobre verbas salariais e previdenciárias pagas em atraso. O tema, com repercussão geral reconhecida por unanimidade no Plenário Virtual da corte, será debatido no Recurso Extraordinário 855.091, de relatoria do ministro Dias Toffoli.
O recurso foi interposto pela União contra acórdão do Tribunal Regional Federal da 4ª Região que declarou a inconstitucionalidade de dispositivos legais que classificavam como rendimentos de trabalho assalariado os juros de mora e quaisquer outras indenizações pagas pelo atraso no pagamento de remuneração salarial, e admitiam a cobrança de imposto de renda sobre essas parcelas.
O acórdão do TRF-4 assentou que o parágrafo único do artigo 16 da Lei 4.506/1964 (que classifica juros como sendo de natureza salarial) não foi recepcionado pela Constituição de 1988 e declarou a inconstitucionalidade parcial, sem redução de texto, do parágrafo 1º do artigo 3º da Lei 7.713/1988 e do artigo 43, inciso II, parágrafo 1º, do Código Tributário Nacional. Segundo o entendimento do TRT, os juros legais moratórios são, por natureza, verba indenizatória dos prejuízos causados ao credor pelo pagamento extemporâneo de seu crédito.
“A mora no pagamento de verba trabalhista, salarial e previdenciária, cuja natureza é notoriamente alimentar, impõe ao credor a privação de bens essenciais, podendo ocasionar até mesmo o seu endividamento a fim de cumprir os compromissos assumidos. A indenização, por meio dos juros moratórios, visa à compensação das perdas sofridas pelo credor em virtude da mora do devedor, não possuindo qualquer conotação de riqueza nova a autorizar sua tributação pelo imposto de renda”, diz trecho do acórdão impugnado.
A União recorreu do Supremo argumentando que o TRF-4, ao acolher arguição de inconstitucionalidade da legislação referente à matéria, decidiu em desacordo com a interpretação proferida pelo Superior Tribunal de Justiça em julgamento de recurso especial repetitivo. Alega que o fato de uma verba ter natureza indenizatória, por si só, não significa que o seu recebimento não represente um acréscimo financeiro, e requer seja reafirmada a compatibilidade dos dispositivos declarados inconstitucionais com o artigo 153, inciso III, da Constituição Federal.
Caso
No caso dos autos, um médico contratado como celetista por um hospital em Porto Alegre (RS) firmou acordo na Justiça do Trabalho para o recebimento de parcelas salariais que haviam deixado de ser pagas. Entretanto, no pagamento, observou a incidência de IRPF sobre a totalidade das verbas e ingressou com nova ação, desta vez para questionar a cobrança do imposto sobre parcela que considera ser de natureza indenizatória.
Em sua manifestação, o ministro Dias Toffoli explicou que o Supremo declarou a inexistência de Repercussão Geral no Agravo de Instrumento 705.941, que trata da matéria, por entender que a controvérsia tem natureza infraconstitucional. Contudo, destacou que o recurso ora em análise foi interposto com fundamento no artigo 102, inciso III, alínea b, da Constituição Federal, em razão do reconhecimento da inconstitucionalidade de dispositivo legal pelo TRF-4 , hipótese que, “por si só”, revela a repercussão geral da questão, pois “cabe ao Supremo analisar a matéria de fundo e dar a última palavra sobre a constitucionalidade das normas federais”.
O relator afirmou que deve ser aplicado ao caso o entendimento firmado pelo STF na Questão de Ordem no RE 614.232, de relatoria da ministra aposentada Ellen Gracie, no qual se entendeu que, apesar de anterior negativa de repercussão geral, a declaração de inconstitucionalidade de norma por Tribunal Regional Federal constitui circunstância nova suficiente para justificar o caráter constitucional de matéria e o reconhecimento da repercussão geral. O entendimento do ministro Dias Toffoli foi seguido por unanimidade em deliberação no Plenário Virtual da corte. Com informações da Assessoria de Imprensa do STF.

sexta-feira, 24 de abril de 2015

É NECESSÁRIO APRIMORAR O DEBATE ACERCA DA TERCEIRIZAÇÃO

TRABALHADADOR E TRIBUTAÇÃO

É necessário melhorar o debate sobre o tema da terceirização


A retomada da tentativa de disciplinar mais amplamente os serviços prestados pelos terceirizados, que se deu com a apresentação do Projeto de Lei 4330 (“PL”), trouxe à tona velhas discussões relativas à precarização do contrato de trabalho e à mitigação de garantias ao trabalhador, especialmente em face da possibilidade de terceirização da atividade fim da empresa.
O discurso daqueles que apoiam a medida vai em outra direção: tendo-se em vista a realidade do mercado atual, que traz com ela diversas outras formas de contratação, nas quais a terceirização se insere, a modificação legislativa teria o benefício de melhor definir as responsabilidades, de forma a assegurar maiores garantias àqueles que são contratados como terceirizados. Nessa linha, o PL atribui à empresa contratante a responsabilidade pelas condições de segurança e saúde no trabalho, além de eventual treinamento para a capacitação do prestador.
Porém, ao lado das discussões de cunho trabalhista, todas muito relevantes e dignas de reflexão, há outros temas que devem ser avaliados com a mesma cautela. Um deles é a questão tributária-previdenciária envolvida. Nos termos do artigo 13 do PL, a responsabilidade pela retenção e pagamento da contribuição ao INSS seria do tomador, que teria o dever de reter 11% do valor da nota fiscal por ocasião do pagamento do serviço. Essa medida asseguraria igualdade de condições do terceirizado com o empregado efetivo, do ponto de vista previdenciário.
Contudo, uma análise do outro lado da moeda mostra que o empresário que optar pela terceirização em larga medida, contemplando também suas atividades-fim, ainda que tenha como contrapartida uma eventual redução de custos com mão de obra, experimentará um aumento de carga tributária em vista do pagamento da contribuição previdenciária da empresa sobre os valores pagos a título de remuneração aos terceirizados. Disso decorre um efeito colateral interessante do PL: o incentivo à terceirização resultaria em aumento das receitas da União, pelo alargamento da base da contribuição previdenciária. Ou seja, ainda que indiretamente, mais uma fonte de custeio aos cofres públicos, sem que haja o corte respectivo de gastos.
Em outra direção, há outros pontos que devem ser enfrentados: partindo-se da grande novidade do projeto, que é a possibilidade de terceirização de atividades-fim da empresa, seria defensável a dedutibilidade de tais pagamentos da base de cálculo do imposto sobre a renda e da contribuição social sobre o lucro, devidos pela pessoa jurídica. Essa possibilidade seria decorrente do enquadramento de tais despesas como operacionais (necessárias, usuais e normais, nos termos do artigo 299 do Decreto 3.000/99), interpretação reforçada pela contratação de terceiros para o exercício das atividades principais do negócio.
Além disso, a mesma discussão poderia ser colocada por ocasião da definição de créditos a serem apropriados para fins da aplicação da não cumulatividade no PIS/COFINS: seriam os valores gastos com a terceirização passíveis de serem classificados como insumos da pessoa jurídica e, assim, dedutíveis da base de cálculo do PIS/COFINS não cumulativos? Caso se entenda que a atividade é essencial para a consecução do objeto social da empresa, a resposta poderia ser positiva e traria mais benefícios ainda para a pessoas jurídicas tomadoras dos serviços.
Por fim, vale mencionar que o artigo 15 do PL determina que o recolhimento da contribuição sindical passaria a ser feita ao sindicato representante da categoria profissional correspondente à atividade exercida pelo trabalhador na empresa contratante (e não na empresa contratada), o que implicaria em eventual aumento de arrecadação de tais tributos para aquela e a respectiva redução para essa.
Não nos parece que o debate em torno do projeto tenha analisado tais temas de forma transparente, nem sequer que tenha havido reflexões sobre o eventuais impactos que a medida poderia causar nos cofres públicos, contrabalanceando o efeito mais direto do aumento das receitas previdenciárias.
Em resumo, essas questões, rapidamente levantadas no presente artigo, mostram a necessidade de se melhor debater sobre o tema da terceirização, considerando todas as consequências jurídico-tributárias  afetas às partes envolvidas na cadeia produtiva. Não se trata de, apenas, olhar para o trabalhador e para as garantias que seriam eventualmente mitigadas. Urge realizar-se uma reflexão mais ampla, que contemple o empresariado (tomadores e prestadores), o cenário econômico atual e os impactos tributários em torno do tema. Dessa forma, as discussões no Legislativo não seriam apenas mais ricas, mas, também, mais conscientes das questões em jogo.

quarta-feira, 22 de abril de 2015

NEGOCIAÇÃO COLETIVA NÃO ISENTA PAGAMENTO DE HORAS "IN ITINERE".

LIMITE DA NEGOCIAÇÃO

Pagamento de horas in itinere é obrigatório, mesmo se houver norma coletiva


Mesmo que combinada coletivamente, a renúncia das horas in itinere, período gasto pelo empregado entre sua residência e o trabalho e vice e versa, não é válida. Esse entendimento tem como base a Súmula 8 do Tribunal Regional do Trabalho da 18ª Região (GO) e o fato de que há um limite para a negociação coletiva.
A decisão foi proferida pela 1ª Turma do TRT-18, que manteve entendimento de primeiro grau sobre a supressão do pagamento dessas horas. O caso é referente ao processo de um trabalhador contra uma empresa de Rio Verde (GO).  
Em seu argumento, a empresa defendeu que o tema foi pactuado por meio de norma coletiva e que no texto acordado “as horas in itinere não são devidas, por não se fazerem presentes os requisitos autorizadores do pagamento respectivo”.
Além disso, a empresa entendeu que o fornecimento de transporte não constituía condição essencial à prestação de serviços a empresa. Já que, afirmou a companhia, por estar situada em local de fácil acesso, o trabalhador conseguia chegar ao local de trabalho sem utilizar o benefício fornecido pela empresa.
Ao analisar os autos, a relatora do processo, desembargadora Iara Teixeira Rios, verificou ser presumida a dificuldade de acesso ao local de trabalho, já que a empresa está situada na zona rural.
A empresa alegou ainda que a incompatibilidade de horários não gera direito a horas in itinere. Em resposta, Rios citou que, segundo a Súmula 90 do Tribunal Superior do Trabalho, o fato mencionado pela companhia é fundamento para obtenção das horas.
Como complemento, a desembargadora citou fundamentos da decisão de primeiro grau, que decidiu pelo deferimento de horas de percurso acrescidas de 50% e que o fornecimento de condução pelo empregador atende a seus interesses econômicos.
Com a manutenção da condenação de primeiro grau, também foi conservado o direito ao recebimento do tempo à disposição da empresa; relativo à higienização, troca de uniforme e deslocamento até o relógio de ponto, que durava 30 minutos. Com informações do TRT-18. 
Processo: RO-0012232-55.2013.5.18.0101

segunda-feira, 20 de abril de 2015

ERRO ACERCA DE FATO ESSENCIAL E EMBARGOS DE DECLARAÇÃO

Erro sobre fato essencial e cabimento dos embargos de declaração

Às três hipóteses de cabimento dos embargos de declaração expressamente autorizadas pelo CPC se soma outra não expressa, jurisprudencialmente aceita, de sentença prolatada com fundamento em fato essencial equivocadamente considerado.
A elevação do volume da demanda jurisdicional e da correspondente resposta apresentada pelo Poder Judiciário é fato notório, além de formalmente identificado pelo Relatório “Justiça em Números”, do Conselho Nacional de Justiça.
Tal acréscimo da produtividade dos já sobrecarregados magistrados brasileiros — os quais, a propósito, situam-se entre os mais produtivos do mundo —, traz consigo a elevação do risco de prolação, em um ou outro caso dentre os numerosos feitos mensalmente sentenciados, de provimento excepcionalmente prolatado com base em fato essencial equivocadamente considerado pelo julgador.
Identificando o erro sobre fato, o parágrafo 1.° do artigo 485 Código de Processo Civil delimita que há “há erro, quando a sentença admitir um fato inexistente, ou quando considerar inexistente um fato efetivamente ocorrido”, conclusão adotada a partir de “atos ou de documentos da causa” (inciso IX do mesmo artigo).
Em princípio, a oposição de embargos de declaração em casos que tais não estaria permitida pela redação restritiva dos incisos I e II do artigo 535 do Código de Processo Civil. Tal oposição estaria franqueada apenas aos casos de omissão jurisdicional na análise de pedido expresso da parte ou às hipóteses de obscuridade ou de contradição observadas internamente ao ato jurisdicional embargado.
Qual expediente processual deve o procurador, então, adotar ao observar que a sentença restou prolatada com base em pressuposto de fato equivocado? Deve opor os aparentemente descabidos embargos de declaração? Ou deve desde logo interpor o recurso de apelação, partindo da premissa de que o magistrado sentenciante não poderá retificar a sentença, pois ela não conta precisamente com os vícios da omissão, contradição ou obscuridade em sua conceituação precisa?
Ao deslinde da questão, é relevante ter em mente a premissa de que o processo é instrumento eminentemente público, por meio do qual se dá a exteriorização e a eficácia de uma das três funções do poder do Estado: a função ou o poder jurisdicional. Pela atuação dessa importante função de poder implementa-se um particular e grave serviço público: a prestação jurisdicional. É por esse serviço que o Estado age para analisar e afirmar a existência de direitos e para garantir os parâmetros de seu exercício, pacificando conflitos de interesses.
Princípios constitucionais como o da efetividade da jurisdição e da tutela jurisdicional, da eficiência, da razoável duração dos processos e da justiça, interpretados em conjunto com princípios processuais como da instrumentalidade, impõem uma proveitosa mudança de paradigmas interpretativos sobre os limites da atuação do julgador no momento posterior à prolação de sentença. Há que se repesarem os valores que informam a existência tanto do processo em si considerado quanto do modelo processual adotado, redefinindo-se a técnica processual para que as justas expectativas que se depositam sobre a existência e finalidade do processo sejam adequadamente atendidas.
Sobre o tema, vale a lição de Michele Taruffo:
Um modelo processual – e isso vale para todos os modelos de processo – nasce assim da combinação de escolhas ideológicas e de instrumentações técnicas. Combinações variáveis sobretudo em função da variedade das escolhas ideológicas, dado que a técnica, em si considerada, é neutra e vazia. Isso implica que a análise de um modelo processual deve ter em consideração primeiramente a sua dimensão ideológica, sendo a dimensão técnica importante, mas não decisiva. (Cultura e processo. Rivista Trimestrale di Diritto e Procedura Civile, Milano, v. 63, n. 1, p. 63-92, Mar. 2009, tradução nossa, p. 71-72).
O processo civil, pois, deve ser instrumento justo e ético de obter a tutela jurisdicional. O respeito à justiça e à ética impõe aos atores do processo e, portanto, a esse próprio instrumento, a irrestrita observância dos princípios constitucionais que lhe são afetos e o respeito aos parâmetros processuais predeterminados.
Assim, princípios como o do devido processo legal, do prévio contraditório, da ampla defesa, da razoável duração do processo e da eficiência, da razoabilidade e proporcionalidade e da efetividade da prestação jurisdicional devem ser constantemente curados pelo juiz e pelas partes na busca do processo ético e justo.
Portanto, o que se espera do processo, sob o aspecto ontológico, verdadeiramente, é o resultado prático, substancial, material que ele serve a viabilizar. Assim não fosse, o processo assumiria papel principal, em vez de seu papel assessório e instrumental. Mais que o exclusivo direito de acesso ao Poder Judiciário ou que o direito de ver judicialmente apreciada certa pretensão, o processo deve servir eficazmente à efetiva tutela jurisdicional de direitos. A existência de direitos e seu livre exercício devem ser prestigiados pelo processo, que utilmente serve senão que para lhes garantir o reconhecimento e para permitir sua fruição. Nesse contexto, “o processo justo está diretamente relacionado com a justiça do seu resultado”, conforme leciona Sergio Chiarloni (Giusto processo, garanzie processuali, giustizia della decisione. Rivista Trimestrale di Diritto e Procedura Civile, Milano, v. 62, n. 1, p. 129-152, Mar. 2008., p. 146, tradução nossa).
A retratação sentencial proposta permite que o provimento judicial seja prontamente ajustado e mesmo integralmente substituído, em caso de o próprio magistrado sentenciante apurar a procedência dos esclarecimentos fáticos contidos na peça de embargos de declaração. Acelera-se, assim, a efetiva e justa prestação jurisdicional, ensejando ainda, eventualmente, o adiantamento do encerramento do feito. Mais que isso, a retratação permitirá entregar ao verdadeiro sucumbente os ônus do decurso do tempo de tramitação processual, desestimulando comportamentos meramente protelatórios.
Não se pretende com o processo apenas encenar um pseudo-resultado, assim entendido o resultado técnico dissociado da justa solvência de uma crise de interesses. Para que o resultado eficaz seja alcançado, o juiz deve analisar a crise que lhe é apresentada tomando em conta de consideração todas as circunstâncias fáticas relevantes ao encontro da solução legítima e justa.
O exercício do juízo de retratação sentencial é, nesse contexto, justamente a oportunidade ensejada ao magistrado para que substitua um seu anterior entendimento formalmente expressado, por outro pronunciamento ajustado aos exatos fatos relevantes do processo.
Alguns dispositivos contidos no Código de Processo Civil preveem a possibilidade do exercício do juízo de retratação da sentença. Dentre eles, destaca-se o artigo 463 e seus incisos I e II. Esse dispositivo consagra a ideia de que o Juízo de primeiro grau encerra a sua jurisdição no caso concreto com a prolação da sentença, não podendo mais revê-la senão apenas para lhe corrigir meras inexatidões ou, por meio de embargos de declaração, para integrá-la, suprimindo omissão, contradição ou obscuridade dela constante. Neste último caso, somente reflexamente à correção da mácula objeto da oposição declaratória poderá atribuir efeitos infringentes e eventualmente modificar substancialmente o teor da sentença embargada.
O cabimento da retratação de sentença por decorrência do julgamento dos embargos de declaração, pois, não enseja dúvida. Para que isso ocorra, contudo, o ato deve estar formalmente maculado pelo vício da omissão, da contradição ou da obscuridade. Se um desses vícios houver, caberá ao julgador revisar sua sentença para torná-la formal e materialmente justa. Note-se, todavia, que tal expediente processual tem como objetivo estrito a declaração do verdadeiro sentido, ou a integração, de uma decisão portadora de omissão, de obscuridade ou de contradição em seus próprios termos. Os embargos de declaração, portanto, permitem que o juiz revisite apenas internamente sua sentença, cotejando a mútua adequação de seus próprios termos, em princípio sem nova apreciação dos fatos que lhe deram ensejo.
Todavia, a justa prestação jurisdicional não pode ser negada pelo exclusivo argumento da impossibilidade de superação, no caso concreto, do disposto no artigo 463 do Código de Processo Civil ou da máxima de que “o juiz esgota sua jurisdição com a prolação de sentença”.
O dever de observância irrestrita e incondicionada dos termos materiais desse dispositivo legal (artigo 463, CPC) não pode suplantar o dever do magistrado com a entrega da justa tutela jurisdicional, com a instrumentalidade material do processo e com o valor da justiça.
A ampliação, no caso concreto, das hipóteses de cabimento do juízo de retratação de sentença é medida necessária ao real cumprimento de postulados constitucionais, sobretudo ao da efetividade da prestação jurisdicional e ao da justiça das decisões emanadas do Poder Judiciário.
A finalidade da presente proposição de afastamento da limitação legal em questão é ensejar que o magistrado sentenciante reveja, com vista nos reais fundamentos de existência do processo e nos princípios constitucionais e direitos fundamentais, seu inicial entendimento veiculado pela sentença que, equivocadamente, restou fundada sobre erro de fato.
Evidentemente que a presente hipótese não visa a estimular a oposição dos embargos de declaração em toda e qualquer hipótese de mera insatisfação da parte com o resultado do julgamento ou em relação a erro sobre fato que não seja relevante ao deslinde do feito. O presente artigo visa, antes e exclusivamente, a destacar meio processual de correção imediata, em caso de erro sobre fato essencial, de ato sentencial cuja reforma pelo órgão revisor mostra-se de pronto identificada pelo próprio magistrado sentenciante.
Ao fim e ao cabo, com a extensão jurisprudencial das hipóteses de cabimento dos embargos de declaração, que podem ser opostos também em face de sentença prolatada a partir de erro sobre fato relevante, pretende-se atribuir máxima eficácia aos princípios da efetividade da jurisdição e do devido processo legal material, ou substantive due process of law.
Se a necessidade de reforma da sentença originária, porque prolatada com erro sobre fato, é admitida pelo próprio juízo sentenciante, por qual razão remeter tal declaração ao Órgão recursal? Por que esperar que órgão jurisdicional superior reveja uma determinada sentença fundada em erro sobre fato essencial, se o próprio órgão que a prolatou admite a necessidade dessa pronta retificação? Não parece haver mesmo sentido em submeter a parte prejudicada a esse desnecessário lapso temporal.
A vinculação do magistrado é certamente com o cumprimento da lei, mas também e sobretudo com o respeito e com a eficácia dos princípios constitucionais, dos direitos fundamentais e, de resto, com a realização da Justiça no caso concreto. Nesse contexto, em sendo o caso de aferição de erro sobre fato essencial, deverá o magistrado sentenciante desde logo prestigiar a via da retratação de sentença, dando acolhimento aos embargos de declaração.
O exercício da judicatura indica que hipóteses que tais – de erro judicial sobre fato relevante — são casos ínfimos em relação ao elevado número de sentenças proferidas mensalmente por cada magistrado brasileiro. Justamente por serem excepcionais, essas hipóteses merecem da jurisdição tratamento também excepcional, mediante a admissão e acolhimento dos embargos de declaração opostos ao fim de prontamente corrigi-los.
O Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça chancelam o entendimento aqui esposado. Essas Cortes sufragam, com efeito, o cabimento dos embargos de declaração também em face de provimento jurisdicional que, a despeito de não contar com contradição, obscuridade ou omissão no conceito técnico estrito, foi prolatado com base em pressuposto de fato equivocadamente considerado pelo julgador. Nesse sentido da serventia dos embargos de declaração para corrigir também esse quarto possível vício da sentença, veja-se: STF: STA 446 MC-AgR-ED/CE; SS 4119 AgR-ED/PI; AI 492629 AgR-ED-ED/RS; RE 203981 ED/PE; RE 193775 ED/SP; RE 203054 ED/RS; RE 191203 AgR-ED/SP; STJ: EDAGRESP 412393; EADRES 720186; ADRESP 1242507; RESP 1065913.
Nesse último julgado, aponta de forma precisa o Relator, Ministro Luiz Fux, então no STJ:
(...) 2. Assim, há erro de fato quando o juiz, desconhecendo a novação acostado aos autos, condena o réu no quantum originário. "O erro de fato supõe fato suscitado e não resolvido", porque o fato "não alegado" fica superado pela eficácia preclusiva do julgado - tantum iudicatum quantum disputatum debeat (artigo 474, do CPC). (...). 3. A interpretação autêntica inserta nos §§ 1º e 2º dissipa qualquer dúvida, ao preceituar que há erro quando a sentença admitir um fato inexistente, ou quando considerar inexistente um fato efetivamente ocorrido, sendo indispensável, num como noutro caso, que não tenha havido controvérsia, nem pronunciamento judicial sobre o fato. (STJ; REsp 1.065.913; 1.ª Turma; DJE 10/09/2009).
Ao magistrado, portanto, cabe cuidar da efetividade de sua atividade decisória, cotejando os resultados dela decorrentes com os objetivos da própria existência do valioso serviço jurisdicional que está a prestar. Cabe-lhe, no desencargo dessa função de poder, sindicar a justiça de sua sentença, em verdadeiro exercício de saneamento material da justa tutela jurisdicional.
Isso porque a tutela jurisdicional não existe senão para ser justa.