João Ubaldo Ribeiro
Acho que todo mundo já se intrigou, ou se intriga a cada dia, com a constatação de que a vida pública, segundo os que exercem o poder político, é duríssima e exige todo tipo de sacrifício e, não obstante, ninguém que está no poder quer deixá-lo. É um paradoxo curioso e não duvido que, entre parlamentares, por exemplo, exista quem tenha a cara de pau de afirmar que com isso se demonstra o espírito cívico do brasileiro, disposto a doar a própria vida à nação, pois, conforme está no Hino Nacional, quem adora a pátria não teme a própria morte, quanto mais algumas inconveniências perfeitamente suportáveis para um espírito forte, determinado e norteado por ideais.
Estamos fartos de saber que é tudo mentira e
enrolação safada e que, entre nós, o habitual para quem chega ao poder,
em qualquer dos níveis da federação, é furtar de todas as formas
concebíveis, desde material de escritório a verbas públicas, direta ou
indiretamente, ou se beneficiar de sua condição de maneira indevida,
seja por meio de privilégios legais mas indecentes, imorais e abusivos,
seja por tráfico de influência. Ninguém tem ideal nenhum e muito menos
se organiza em grupos ou partidos para procurar fazer valer princípios
ou visar ao bem comum. O negócio aqui no Brasil é se fazer e tirar do
mandato ou cargo público o maior proveito pessoal possível e todos os
partidos obedecem a um mesmo manual de conduta, partido aqui não quer
dizer nada.
O poder engorda e os poderosos vivem
bem-dispostos e cevados, com todos os dentes. Nenhum deles,
evidentemente, admite que se apropria criminosamente do que não lhe
pertence ou se aproveita de vantagens ilegítimas. Mas a parentela viceja
e o patrimônio prospera. Quantos, por este nosso Brasil afora, não são
conhecidos em suas cidades como habilidosíssimos ladrões, que nasceram
em famílias para lá de mal remediadas e hoje estão entre as grandes
fortunas dos Estados de onde vieram, ou mesmo do Brasil? Ou, se não
estão entre as grandes fortunas, se encontram entre os mais bem
aquinhoados, com terreninhos, fazendinhas, gadinhos, apartamentozinhos e
a família toda bem colocada.
E também, apesar dos
percalços da vida pública, o poder com toda a certeza libera endorfinas
formidáveis, de modo que seus ocupantes têm o riso fácil, são generosos e
de boa convivência, em paz com a vida. Não sei se contribui para isso o
fato de que os mais poderosos entre eles não têm, nem nunca vão ter,
problemas de moradia, problemas de aposentadoria ou problemas de
tratamento de saúde, nunca entraram numa fila, nunca precisaram penar à
porta de alguma repartição pública, nunca tiveram que se preocupar com o
futuro e ficarão impunes, com a fortuna intacta, não importa em que
falcatruas sejam pilhados. É, isso deve favorecer um pouco a calma e a
tranquilidade deles.
Já nos acostumamos a ver os nossos
governantes e qualquer parlamentar, seja senador, seja deputado estadual
ou federal, assim como vereadores, serem qualificados de larápios e
ninguém mais se espantar, ou mesmo se interessar, quando alguém comenta
que o governador Fulano é ladrão, o deputado Sicrano levou comissão em
todas as obras de seu reduto eleitoral, o prefeito Beltrano tomou uma
grana pesada de empreiteiras e imobiliárias, o desembargador tal usando
seu nome vendeu duas dúzias de sentenças a peso de ouro, o vereador Unha
Grande cobra por serviços legislativos e por aí vai, qualquer
compatriota sabe essas coisas de cor, parecem fazer parte de nossa
identidade. Talvez simbolicamente, pelo menos um governante nosso, o lulista Paulo Maluf,
está sendo procurado pela Interpol e, se sair do Brasil, vai preso. Em
verdade lhes digo: Não se fará justiça enquanto essa lista da Interpol
não contiver alguns milhares de nomes genuinamente brasileiros.
Somos assim desde o nosso começo. Em nossa vida pública, muito raramente servir foi a diretriz, servir-se
tem sido a norma. Nos Estados Unidos, por exemplo, o governo,
diferentemente daqui, não costuma ocupar as principais manchetes. E as
capitais, para surpresa de muitos, não são, como no Brasil, as maiores
cidades de cada Estado. Ao contrário, são cidades pequenas, destituídas
de qualquer glamour e sem nada do movimento das grandes metrópoles. Aqui
não, aqui, como se gravita em torno do Estado e do poder, onde o Estado
se mete em tudo e a burocracia parasítica e dispendiosa, a ganância
fiscal, a roubalheira e a ineficiência fazem parte de um aparato
secularmente estabelecido, as capitais são de longe as maiores cidades.
Hoje deve ser mais fácil roubar do que há
relativamente poucos anos. A máquina do Estado tornou-se um Leviatã
disforme e teratoide, em que ninguém de fato se entende, nem lhe conhece
os labirintos institucionais e jurídicos. O dinheiro é cada vez mais
volátil e portável pelos ares, ninguém sabe o tamanho e as ramificações
dos tentáculos da corrupção e ainda moramos num país com muitos
municípios onde, se quiser, o prefeito saca o dinheiro do governo,
enfia-o na algibeira e se pirulita para sempre, e isso já aconteceu
várias vezes. Ou até é pego, mas não dá em nada, o processo rola
indefinidamente, o senador "Esse-Menino" é padrinho do rapaz, o juiz é
gente do senador, a acusação faz corpo mole e, sabem como são essas
coisas, o pessoal acaba esquecendo e não é nem impossível que o
indigitado, munido da bênção do padrinho de um punhado de ordens
judiciais, se eleja prefeito novamente.
Por essas razões e por outras, não deve causar
espanto anunciarem tanto dinheiro gasto em campanhas para conquistar
prefeituras minúsculas e inexpressivas. Compra-se em grosso, é exigência
da economia criada em torno das eleições, que envolve muitas
atividades. Não tem nada a ver com o interesse público. Bem verdade que
quem acaba pagando somos nós, mas, pasmem, foi combinado que não faz
parte da democracia brasileira dar palpite sobre como gastam nosso dinheiro.
Fonte: http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,nao-sirvo--sirvo-me 29-07-2012
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